Como viver e agir num tempo de desfaçatez e mentiras ou lágrimas de crocodilo não salvarão os mortos. Por Paulo César Endo

 

Há no Brasil subnotificações grosseiras tanto sobre os infectados quanto sobre os mortos. Muitos estão sendo enterrados sem diagnóstico e aqueles que tentaram fazer o teste, antes de terem problemas respiratórios graves, não têm conseguido. Então, sem eufemismos, vivemos no país uma mentira em relação ao número de mortos e ao número de infectados. Não temos testagem suficiente e em todo canto profissionais de saúde já reclamam de não ter o básico para trabalhar. O colapso já chegou.

Não se pode acreditar nos gráficos coloridos e na evolução que tem circulado, simplesmente porque é possível duvidar dos critérios para a aferição desses dados que não nos chegam verossímeis. Subnotificações acontecem em todos os estados e em todas as cidades do Brasil. (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/estados-e-municipios-no-pais-relatam-subnotificacao-gigantesca-de-casos.shtml).

Vivemos sob uma colcha de retalhos de meias verdades que não fazem uma verdade inteira. Vivemos a denegação no Brasil, do Brasil e para o Brasil.

Ao mesmo tempo o atual líder do governo é o rei das mentiras e pretende, continuadamente e  a golpes de machado, fazê-las se converterem em verdades. Trabalha todos os dias para convencer as pessoas que as falácias que profere são maiores, mais importantes e se superpõem ao que as pessoas veem, sentem e percebem.

A consequência mais desastrosa, porém, hoje está nas mãos dos prefeitos e governadores, até porque estamos sem presidente. Eles terão de decidir- no escuro – se a quarentena continuará ou não num contexto em que o dinheiro do governo federal não chegou às mãos das pessoas que precisam dele urgentemente. Enquanto Guedes-Bolsonaro procrastinam.

A equação que estourará o país é a que faz a somatória do sofrimento, devido ao isolamento, somado à penúria da vida sem salário e sem rendimentos. A única equação que funcionará é, obviamente, isolamento + rendimento ou seja cidadãos + governo, por enquanto temos apenas matáveis + desgoverno.

Tem sido comum perguntarem estarrecidos aos psicanalistas sobre a eventual patologia do atual presidente incapaz de reconhecer o que o mundo todo reconhece e vê. Negando a evidência de hospitais e cemitérios lotados; zombando de uma doença que mata pessoas e para a qual não há cura; rindo e fazendo pilhéria enquanto pessoas sofrem. Em geral respondemos com tentativas de leituras sobre a dinâmica do tempo presente que nos concerne, e não com tentativas de utilizar categorias nosográficas para discriminar, xingar  ofender ou caracterizar definitivamente alguém com quem não temos contato pessoal e de trabalho.

A psicanálise é um instrumento de pensamento, compreensão e trabalho ante o sofrimento psíquico e não uma maneira de domesticar e capturar pessoas e processos nas categorias e conceitos que inventa e elabora. Isso já faz abundantemente o atual desgoverno, bem como já fez e faz uma certa psiquiatria à qual a psicanálise se opõe.

A potência política da psicanálise não está, portanto, em atribuir a quem quer que seja o rótulo de perverso, neurótico, deprimido, etc. fora do contexto do trabalho analítico e do tratamento mas, quando possível indicar, a partir do que que seu trabalho com pessoas já evidenciou e tornou possível, dinâmicas inconscientes engendradas e manifestas pelos sujeitos no campo político e social, onde também se movem e existem, e que contaminam e interferem, queiramos ou não, em outras pessoas, grupos, comunidades, cidades e por vezes num país inteiro. Essas dinâmicas são muito complexas e diversas e Freud deu apenas o primeiro passo ao revelá-las em seu texto de 1921, Psicologia das massas e análise do eu.

Nesse ponto creio ser importante e necessário recorrer à psicanálise para pensar  no que vemos e ouvimos nos atuais discursos e atos oficiais e oficiosos do governo, e o poder de contaminação e inscrição que podem se revelar nos sujeitos impactados direta ou indiretamente pelas ações ou inações do governo que atualmente preside o país.

A denegação é um mecanismo de defesa psíquico descrito por Freud em 1925, há quase um século atrás, e depois amplamente aprofundado por psicanalistas e pesquisadores que vieram depois. Trata-se de recortar a realidade ao sabor dos mecanismos de defesa próprios ao narcisismo.

Poderíamos, a princípio, pensar num narcisismo agigantado, expansivo, mas é o contrário o que acontece: ele é miúdo, pequeno e precisa com urgência fagocitar a realidade para continuar sobrevivendo, negando-a artificialmente. Tal mecanismo carece justamente de negar tudo o que não se submete ao seu vórtice pulsional, desse modo, tal mecanismo é potencialmente destrutivo já que o que está acima de tudo e todos é apenas o que o sujeito julga lhe pertencer e o que não pode reconhecer, admitir ou aceitar como diverso, diferente e verdadeiro nessa diferença. Ou seja, tudo o que está fora do alcance narcísico se torna alvo do abuso de poder político. O efeito possível é a negação radical e desesperada de tudo o que afronta a mesmidade e entra em cena a persecutoriedade como instrumento de auto proteção exacerbado.

Esse des-reconhecimento, no caso brasileiro, atiça o radicalismo mais perigoso entre pessoas e grupos que de modo simétrico não podem ver seu líder acima do Brasil e de todos ser derrotado, humilhado e desmascarado. Cria-se uma aura de crendices em torno dos que necessitam de mitos e capitães do mato de um lado e, de outro, dos que precisam de um emissário servil capaz de atuar cegamente em nome da elite predatória que o apoia e o ajudou a chegar ao poder.

Como brinde o eleito alimenta a fantasia de que o país lhe pertence e a mais ninguém e que, quando encontra oposição, divergência, ou simplesmente quando não é atendido de modo absoluto e concordante, tem o direito de se plantar na posição inarredável de que o país pertence a ele e a sua prole e em nome disso, ameaça a todos. Essa é a verdade suprema que jair eleva acima de quaisquer outra.

Ele fica triste e desesperado, e pode ir às lágrimas, para evidenciar seu sofrimento e penúria. Não se conforma de que o mundo todo queira – e necessita urgentemente-, retirar de suas mãos o brinquedo que acredita ser seu, mas que antes ele havia tomado de milhões de outras e outros que o partilhavam: o conjunto de brasileiros e brasileiras que não reconhecem o país como sua propriedade exclusiva.

A realidade negada, nesse caso, é a de que um país é por definição um lugar diverso, complexo e partilhado sem o que não seria um país. Ou seja, se fosse um brinquedo nas mãos de uma criança que crê possuí-lo jamais se consolidaria como um país, mas permaneceria no estado de horda, posse e propriedade exclusiva de um tirano qualquer, freudianamente falando.

A preservação dessas duas possibilidades (é um país e é o meu brinquedo) é suportada pela denegação na qual peças de um quebra cabeças são recortadas e mutiladas para se encaixarem perfeitamente num jogo com regras arbitrárias onde uma só pessoa joga e vence sempre.

Muitas são suas formas e expressões que infletem e orientam governos e governantes e, talvez, o negacionismo no campo social e político, seja uma delas. O terraplanismo, a revolução de 1964, o Brasil comunista, o coronavírus como ativista do socialismo, etc. são exemplos de denegação que se expressam de forma mais destrutiva, e profundamente perigosa, para os brasileiros e brasileiras, na frase subentendida e implícita ‘bolsonaros acima de tudo e acima de todos’. Uma célula familiar sem princípios e valores partilhados quer impor a verdade única do sem-partido único a despeito do mundo.

Se aprontam todos os dias para se elevarem acima do Brasil e de Deus que tanto proferem. Tal confrontação messiânica sempre atrairá os que querem e precisam de algo ou alguém acima de tudo e todos, mas não é o caso hoje da maioria, nem do Brasil e nem do mundo e o mito se autodesmistifica.

Na terça feira (31/03), diferentemente de todos os outros dias da crise mundial, o líder do desgoverno aparece em pronunciamento nacional com a cara lavada, sem as ironias que larga todos os dias na cara dos cidadãos brasileiros, sem as frases de efeito/sem efeito que costuma proferir, sem as piadinhas auto referentes que sempre faz em suas redes e nos pronunciamentos anteriores. Quis dar a entender que é um líder sério, conspícuo e empenhado. No mesmo pronunciamento, contudo, utiliza de forma leviana outro pronunciamento do diretor-geral da OMS para declarar, de forma mentirosa, que ele e a OMS estão alinhadíssimos e em perfeita concordância. Sabemos que se trata de um mentiroso mal intencionado e incorrigível, e embora para nós suas mentiras aproximem o país do precipício, para ele é apenas uma brincadeira com seu brinquedo, por isso as piadinhas e os gracejos diante do terrível soam sempre grotescas e perigosas.

O líder do desgoverno em reunião na última terça fez uma cena, chorou em reunião no período da tarde, apareceu maquiado e concentrado no pronunciamento que fez à nação com o único objetivo de dessa vez, com maior ênfase cênica, zombar e abusar do seu exercício corriqueiro de transformar fatos em crendices, riscos em pilhéria, verdades inexoráveis em palhaçada. Brincou de ser sério na imensa brincadeira em que transformou uma doença mundial e, mais uma vez, zombou dos que correm riscos.

No conjunto, a situação brasileira está sendo levada ao seu limite. O pacto social que mal existia está sendo rasgado todos os dias, o acordo em torno de regras, regulamentos e leis está sendo corroído no nariz dos tribunais e do parlamento, e a mentira se tornou um meio de degradar a palavra para  convertê-la em ruídos, ante os quais é impossível ouvir, compreender e se fiar.

Vários pastores, adeptos ferrenhos do desgovernado, contribuem para propagar a pandemia como doença de satã, enquanto nos cultos das igrejas de malafaia e companhia a pandemia se espalha.

Uma onda de mentiras assola o Brasil e, tal como as fake news, a aposta que faz jair é na incapacidade das pessoas em discernir, conferir, confiar e estabelecer contratos, pactos e acordos num jogo em que ele joga sozinho com seus filhotes siameses.

Na verdade, contudo, ele é a pantomima de um país que teme impor castração àquele que prefere gritar ao invés de dizer, que prefere ironizar ao invés de reconhecer fatos e prefere à violência à palavra.

A mentira torna-se nesse caso um sinônimo da violência. Tem servido para colapsar a convivência, produzir oposições e gerar conflitos que sem a confiança no dizer se tornam insolúveis. Muito se fala sobre a aposta do desgovernado no caos, e é verdade, mas é necessário examinar os elementos desse caos e, certamente, o mais severo entre eles é a crença que se aprofunda, de que a palavra não é fiável para compreender, esclarecer e dirimir conflitos. A palavra deve ser jogada na lata do lixo como objeto inútil e descartável.

Curiosamente hoje é o momento em que ela deveria ser afirmada urgentemente como ato. Ato de palavra através das instituições, que devem sua existência à confiabilidade que o dizer funda ao ser proferido. Nesse momento os líderes do parlamento e do tribunais superiores deveriam demonstrar sua capacidade de arriscar tudo por ela. Mas eles também hesitam e fingem acreditar no que o líder do governo diz e desdiz.

Assim eles colocam as palavras no saco todos os dias com receio, justamente, daquilo que só a palavra poderia enfrentar: a violência desmesurada  e o espalhafato infundado, sob a forma de mentiras e zombarias que se esgotam em si mesmas minando a credibilidade e a própria linguagem que decai. Contra ruídos então apenas ruídos. Contra pronunciamentos em cadeia nacional, panelas.

Esse nível mais tacanho de ser e existir empurra pouco a pouco a nação e suas instituições para o abismo e nos encurrala no inacreditável, já que não há mais no que acreditar.  Um cidadão desgovernado e mentiroso afunda uma nação inteira em ódio, mentiras e ao mutismo. Chegamos ao fim de um ciclo que se iniciava. Ele geraria possivelmente líderes com as coragens necessárias para existir como nação, e não apenas como uma província subalterna que obedece aos piores desejos, hábitos e comportamentos norte-americanos.

O atual líder do governo, professa seu amor ao líder norte americano, ao mesmo tempo que se revela incapaz de enunciar sua diferença que se escancara num apaixonado I love you. É a frase da subalternidade proferida em inglês por quem não entende o idioma. ‘I love you’, diz um jair enternecido, mesmo que isso implique no fim prematuro de milhares de vidas de brasileiras e de brasileiros. Nesse caso o amor não salvará, mas matará.

Chegamos ao limite constatado, mas não suposto. Nunca imaginamos que chegaríamos a tanto.  Denunciamos e vemos o descalabro, mas nada nem ninguém parece capaz de detê-lo e a cada dia sabemos que o preço a pagar por isso serão um amontoado de cenas dantescas e fétidas que ainda iremos presenciar. Quando a primavera chegar será nossa a imensa tarefa de restaurar a credibilidade no imenso universo fake no qual hoje habitamos e que não conseguimos defraudar.

 Mas hoje, encerrar o ciclo em que palavras barateadas são vendidas no atacado ou lançadas, descartáveis, na lata do lixo parece um futuro distante.  Num momento que ainda não vemos, mas podemos imaginar, como sugere Edson Sousa, reiniciaremos o ciclo onde ‘dar a palavra’  será o ponto de partida, para que se reinaugure os acordos e as partilhas entre mulheres e homens, sepultando o ciclo de monstruosidades jamais vista no país.

A monstruosidade, entretanto, já parece ter sido constatada pela maioria, mas ainda deixará sua prole solta e viva a ser domesticada em lutas a serem travadas na arena política que se anuncia após a pandemia.

Teremos chegado, com a máxima e incontornável clareza, a seguinte constatação: o atual líder do governo passará por cima de tantos corpos quantos forem necessários para chegar onde pretende, como de resto prometeu quando ainda estava em campanha. Trabalha para se perenizar no lugar que alcançou e, provavelmente jamais alcançará novamente, salvo pelo uso da força bruta.

Ainda há algum lastro para que seja a palavra o antídoto para o veneno implantado no país a partir de 2018, desde que não sejamos nós a exercitar o negacionismo ao supor que, se nada for dito e feito, isso terminará em 2022.