da Revista Lacuna
por Rafael Alves Lima (entrevistador)
Era setembro de 1976. Poucas semanas após a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek e o infortunado bronze de João do Pulo em Montreal, os anos de chumbo no governo Geisel engatinhavam no (até hoje inconcluso) caminho “lento, gradual e seguro” em direção à democratização no nosso país. No campo psi, a Lei 4.119 de 1962, que regulamenta a profissão de psicólogo, entrava na puberdade; o Conselho Federal de Psicologia, que nascera em 71, era ainda criança, enquanto os conselhos regionais e suas atribuições regulatórias ainda estavam sendo gestados para serem paridos somente a partir de 77. Deste solo brotava um “jornalismo da Psicologia”, na esteira da imprensa alternativa, em que eram denunciados maus tratos nas instituições psiquiátricas, desaparecimentos políticos, hipocrisias de toda ordem. Com isso eram trazidos à tona Reich, Guatarri, Baremblitt, Basaglia e tantos outros de uma literatura frequentada cada vez mais pela juventude psi engajada.
Aparece estampado no editorial do primeiro número daquele setembro de 1976: “Chegamos para fazer parte desse mundo subterrâneo, dessa espécie nanica que sobrevive sem vender consciência”. Assim somos apresentados (com muito prazer!) à Rádice — que, do latim, remete a raiz: desde a raiz, pela raiz, por meio da raiz. Entrevistamos Ralph Viana (cujo nome completo é Carlos Ralph Lemos Viana, mas que é às vezes Cê Ralph, às vezes Carlos Ralph, às vezes simplesmente R.), psicólogo, um dos pioneiros na implantação e difusão do pensamento de Wilhelm Reich no Brasil e Editor-Geral da Rádice: a cabeça por trás do projeto. Rádice era uma revista de contestação em um momento em que contestar era se posicionar nos declives do perigo; ela permanece sendo publicada até meados de 1981, depois passando a se chamar “Rádice Luta & Prazer”, até se tornar simplesmente “Luta & Prazer”. Mas como a raiz que, com o corte, ganha novas ramificações, a experiência Rádice se mantém por outros meios na biografia de nosso entrevistado. Ralph Viana dedicou-se nos últimos 18 anos a atividades jornalísticas no Jornal Bem Estar e hoje está montando uma agência editorial (<www.bemestaragencia.com.br>), voltada a temáticas ligadas à qualidade de vida, saúde e crescimento pessoal. Tendo clinicado por muitos anos como psicoterapeuta corporal, ele atualmente oferece cursos de training e formação em Bioenergética — como ele mesmo nos disse: “ou seja, psicologia e jornalismo desde sempre”.
Aqui, na entrevista que segue, Ralph Viana é convidado a revisitar os espaços lacunares de sua memória viva para nos contar um pouco sobre a história dessa revista icônica e ímpar na história da psicologia de nosso país. Deixo aqui minha enorme gratidão ao Ralph pela solicitude e simpatia desde o nosso primeiro contato, bem como por nos ter confiado uma série de exemplares da Rádice a fim de aumentarmos nosso arquivo pessoal e completarmos nossa coleção. Com a esperança de que esta breve entrevista desperte nos leitores da Lacuna um interesse radical pelo que fomos para entendermos o que enfim somos, segue o depoimento.
LACUNA | As publicações “psi” sofreram uma grande modificação nas últimas décadas, em grande medida por sua pluralização, que se deu especialmente após o advento da internet. Mas imaginamos que fundar uma revista tenha algo a ver com a possibilidade de dizer e veicular conteúdos que não têm espaço em outros meios. Conte-nos um pouco sobre como era o clima em torno da Rádice e por que você propôs criá-la.
RALPH | No momento em que a Rádice começou a circular, creio que não existiam revistas de psicologia em circulação contínua, a não ser as institucionais. Logo em seguida saiu a Psicologia Atual, revista de uma grande editora, voltada para temas mais amenos.
A Rádice foi lançada numa época de grande repressão política, na ditadura, porém num momento que começavam a circular vários jornais da chamada ‘imprensa alternativa’ — Pasquim, Versus, Repórter, Flagrante Livre etc — que forçavam os limites da ‘abertura política’ proposta pelo governo Geisel.
LACUNA | A Rádice tinha uma circulação alternativa e veiculava conteúdos de tom contestatório — e mesmo de denúncia — em vários aspectos. O que você acha que havia nos discursos “psi” em relação ao regime ditatorial? De maneira geral, tratava-se de uma contestação, de um apoio ou de um silêncio?
RALPH | A Rádice começou circulando no ‘circuito universitário’ e alternativo, com ‘distribuição solidária’ (levávamos a revista para pessoas, diretórios acadêmicos etc, que as vendiam e nos repassavam o $$). A partir de nossa quarta edição, passamos para as bancas, em vários estados. Mas mantivemos, até o fim, essa distribuição por amigos, através de mais de 40 ‘Grupos Sucursais’ em faculdades de todo o país. Esses grupos também nos mandavam notícias e participavam de reportagens.
Naquele momento existia no país um clima ambíguo com relação ao discurso psicológico. Era comum aparecer no noticiário — TVs, jornais, rádios — psicólogos dando explicações ‘psicologizantes’ para várias questões sociais. Tensões sociais eram ‘reduzidas’ a seus aspectos psis, somente. Existia uma ‘psicologia (psicanálise incluída) bem comportada’ que não se posicionava com relação às graves questões que o país vivia sob o regime militar. E que, de certa forma, ‘acolchoava’ as tensões sob o manto do discurso psicológico. (Escrevi uma crônica sobre isso, “D. Carmen está perseguida”, mostrando que os sentimentos de perseguição que sentia não eram patológicos, mas correspondiam ao que ela vivia na realidade).
Várias denúncias foram feitas sobre esse e outros aspectos do universo psi (questão do ‘baronato’ na psicanálise, desmascarada por Hélio Pelegrino e Eduardo Mascarenhas; lutas travadas, como contra o ‘Projeto Julianelli’, o ato médico de então, que submetia a ação psi aos médicos; a questão da implantação dos Conselhos Regionais de Psicologia, sob tutela governamental etc — fui processado pelo Conselho RJ por denunciar na revista uma fraude eleitoral). Também era importante a questão manicomial, da qual a revista foi uma denunciadora contundente.
Em suma, como em várias outras instâncias, no espaço psi existiam simpatizantes do regime militar; mas mais frequentes foram as omissões, por medos e interesses. As práticas elitistas mantinham seus privilégios e evitavam se posicionar com relação às questões espinhosas da época — falta de liberdades, torturas, arbitrariedades etc. E o meio acadêmico ‘compunha’ com o sistema repressivo, evitando atritos maiores.
LACUNA | Reich parece ter sido um autor importante para o espírito da revista, não só em contraposição à ditadura, mas também como o promotor de uma práxis clínica alternativa em relação ao mainstream das psicoterapias da época — especialmente em relação aos que eram promovidos dentro dos cursos de psicologia na Universidade. Como você vê o campo reichiano hoje? Tem diferenças em relação ao da época?
RALPH | Reich ‘entrou na revista’ fortemente a partir de nossa edição nº 8 (capa ‘Sexo’). Na edição nº 6 (‘Os Efeitos da Tortura’) passamos por uma grande crise, pois vários colaboradores da revista (estudantes que tinham se integrado à redação) saíram por temores diversos e pelas ameaças veladas que recebemos. Mas isso reafirmou nossa postura combativa, tanto que saímos na edição seguinte com uma contundente matéria de capa — “Nossos Campos de Concentração” —, sobre os manicômios nacionais, especialmente o Juqueri (SP).
Mas demos uma ‘guinada’ reichiana na edição seguinte. Por questões pessoais (meu interesse mais direto por Reich) e também por uma avaliação política do momento que vivíamos, a revista passou a propagar, com mais ênfase, ações positivas. Não queríamos só continuar a brigar ‘contra’, resolvemos propor alternativas.
Daí a nossa entrada na organização de simpósios e eventos sobre ‘alternativas psis’, que propunham práticas ‘marginais’ de atuação clínica/institucional. A consolidação das psicoterapias de base corporal no Brasil aconteceu a partir desses eventos, que ocorreram tanto no Rio como em outras cidades do país.
O campo reichiano mantém-se hoje numa zona de conforto de onde nunca se afastou muito: exerce um dos aspectos da cosmovisão de Wilhelm Reich, a prática clínica (bem remunerada), relegando ao esquecimento seus outros campos, como pesquisa energética, pedagogia — prevenção de neuroses — atuação política e social etc.
LACUNA | E em relação ao currículo universitário dos cursos de graduação em psicologia? Havia na Rádice uma preocupação grande com a interlocução entre os saberes “psi” e as artes, o que se refletia também nos eventos, festas e encontros que a Rádice concentrou em torno de si. Mudou algo de lá pra cá? Seriam os psicólogos de hoje mais “coxinhas”?
RALPH | A época era de contestação, a juventude tinha outra inserção social e participação política. Em nossos eventos colocávamos uma placa na porta, “Sério/Alegre”, para mostrar que não aceitávamos aquela sisudez que virara sinônimo de competência — ‘fulano tem um trabalho ‘sério’’. Propúnhamos uma vida e ação profissional mais ampla, feliz (os tempos eram trágicos e sombrios, lembremos) e com referências mais diversas. Os conhecimentos orientais estavam aportando e novas técnicas psicoterápicas também (como a Bioenergética, por exemplo). Ficar só na palavra, naquele modelo psicanalítico fechado e formal, era insuficiente para nós. (Há um livro interessante que relata um pouco a questão: Corpo contra a palavra’[1], do qual discordo da interpretação geral, mas que reporta um pouco daquele momento).
A sociedade mudou muito desde então, a população do país mais do que dobrou, o advento da internet e das novas tecnologias revolucionou todas as relações etc. Ou seja, a ‘Era de Aquários’ que esperávamos se mostra agora muito diferente do que supúnhamos que seria (um tema interessante, que estou refletindo com amigos).
Naquele tempo queríamos (a revista propagava, e seus membros viviam isso) que as nossas propostas revolucionárias não ficassem só no campo do discurso, mas fossem vividas em nosso cotidiano. Então tentamos ‘novas formas do viver’, morando em comunidades urbanas, estabelecendo novas práticas amorosas, tentando novos modelos organizacionais e de relação com a propriedade e o dinheiro, tratando nossa saúde com terapias de base energéticas, mudando a alimentação etc. Enfim, tentamos viver nosso sonho no nosso dia a dia. E conseguimos em muitos aspectos.
Os coxinhas de então (‘caretas’, como os denominávamos), existiam, claro, mas não eram na proporção de agora; existia um campo de resistência, bem diferenciado. Nele as questões ideológicas e de consciência eram centrais (hoje parece que ‘por baixo’ sempre se quer vender alguma coisa). Éramos meio hippies, esteios do PT quando ele ainda possuía ideais e não tinha se encoxado com o poder, virando essa versão caricata atual, de abastados ‘reformadores’ vestidos de grife, aboletados no Estado. (Escrevi um livro sobre esse tempo, Amor em tempos de revolução, encadernado em forma xerocada, alternativa).
Na verdade, a dura realidade social/política (ditadura) e a existência de um sonho de mudanças mantinham um espaço de busca, irreverência e luta numa grande parcela da sociedade, especialmente na juventude. A chegada da ‘esquerda’ ao poder e a derrocada da esperança, dentre outros aspectos de várias dimensões, esgarçou esta liga anímica que une pessoas em torno de projetos coletivos.
Nada contra as coxas reais, mas as simbólicas tomaram o poder do corpo social. Há coxinhas vermelhas, azuis, federais, sindicais, coxas de todos os tipos e formas. O poder bota nas coxas e goza na alma. Basta olhar aquela geração de lideranças estudantis de 68 e ver como estão hoje, depois que se locupletaram com o poder. De dar pena.
LACUNA | Havia também denúncias em relação às práticas de saúde mental — que, na época, estavam bastante aferradas ao modelo manicomial. A história do Aparecido, reportagem de capa da Rádice n. 4, é emblemática nesse sentido, problematizando a figura híbrida dos manicômios judiciários a partir de uma pesquisa intensa sobre um caso. Conte-nos um pouco sobre como era receber, investigar e publicar os relatos dos pacientes que sofriam maus-tratos nesse contexto manicomial.
RALPH | O título da matéria no nº 4 — “Um Dissidente Brasileiro” — remetia aos ‘dissidentes políticos’ soviéticos, que eram internados em instituições manicomiais naquela federação. A ‘psicologização’ que citei passava também por aí, ao dar suporte psi à repressão política, algo muito comum na época, na União Soviética.
A luta antimanicomial foi talvez a bandeira mais forte e constante defendida pela revista. Além da edição nº 7 que citei, dos ‘campos de concentração’, também fizemos a edição nºs 9 e 10 — ‘A Loucura dos Comunistas’ e ‘Telhados Vermelhos’ —, sobre as propostas de Basaglia e amigos sobre os hospitais psiquiátricos italianos, além de várias outras matérias e reportagens sobre o tema, inclusive a edição nº 11, sobre as propostas cubanas para a saúde mental — ‘As Contradições de uma Revolução’ —, em que estampamos uma imagem do ‘Che’ na capa, algo bem ousado e perigoso para a época.
Fazer as matérias da Rádice muitas vezes era arriscado e exigia senso de aventura e também coragem. Na edição sobre tortura (nº 6) eu trouxe da penitenciária o texto do Alex Polari dentro de um quadro de madeira que tinha o Chaplin pirografado. Ao quebrar o quadro lá estava o artigo, em papel carta, bem fino, e o publicamos. Leve-se em conta que Alex era um preso político condenado à prisão perpétua e eu um ex-exilado político, que também foi torturado pela ditadura.
Muitas vezes fazer as matérias exigia processos de reflexão grupais com repercussões profundas em todos nós. Na edição nº 12, sobre casamento — ‘Está todo mundo separando’ —, quase todos nós na revista… nos separamos!
Impossível descrever em pouco espaço o que era fazer as matérias da Rádice. E mais ainda o ‘como’ era o processo de fazer a revista. Em tempos atuais, com todas as facilidades do computador e da internet, fica inacreditável entender como podíamos fazer aquilo tudo, naquele jeito jurássico e mega trabalhoso (bastando dizer que, até a edição 11, nem telefone tínhamos, o que usávamos era o orelhão da esquina!). A Rádice era impressa com o suor de excessivo trabalho e muita coragem e determinação.
LACUNA | A Rádice foi objeto de um estudo de doutorado, da autoria de Alessandra Daflon dos Santos[2]. Você se surpreende que hoje a Academia se interesse pela história da revista? Como você vê a recuperação e o resgate da história da Rádice por aqueles que se interessam pela história da psicologia, das psicoterapias e da psicanálise no Brasil?
RALPH | Já fui procurado por muitas pessoas a respeito da Rádice. Além da tese de doutorado da Alessandra Daflon, há uma tese de mestrado[3] sobre a revista. Uma instituição de História da Psicologia da UERJ[4] também me homenageou e à revista, há cerca de três anos atrás. Ao longo de todo esse tempo, no qual dei cursos em muitas cidades do Brasil, sempre me surpreendi com pessoas que chegavam falando da Rádice ou me contavam que tinham exemplares ou a coleção da revista em casa, décadas depois que ela circulou.
Explico isso, em parte, pelo fato de que a Rádice ter sido mais que uma revista, foi um movimento de resistência que aconteceu no campo da psicologia brasileira, e que incluiu a ação concreta de centenas de pessoas (a revista chegou a ter quase 40 ‘Grupos Sucursais e os nossos simpósios sempre beiravam 1.000 pessoas). Nosso folder de assinaturas estampava uma frase que em grande parte era verdade: “Rádice: depois dela a psicologia brasileira nunca mais foi a mesma”.
Por isso, acho que minha ainda surpresa com o atual interesse pela revista (aconteceu quando você me contatou) trata-se de mais um hábito pessoal e porque já se passaram quase 40 anos. Mas levo em conta que apesar disso ela ainda mantém um frescor jornalístico, uma ousadia em suas propostas e linguagem e, infelizmente, uma ainda atualidade em suas denúncias, que a faz interessante a muitas pessoas ainda hoje.
LACUNA | Há um elemento que as revistas explicitam em relação a uma conivência das práticas e saberes “psi” com práticas de poder, que constrangem os processos criativos e se adaptam muito docilmente ao status quo. Não me parece um mero acaso que a Rádice tenha sido um acontecimento carioca, já que em outras cidades o espírito “psi” era muito mais o da omissão e do silenciamento em relação aos poderes instituídos. Como foi a recepção da Rádice nos diferentes estados?
RALPH | Há um dado que concordo, a irreverência carioca e a postura oposicionista da cidade naqueles tempos (o estado foi o único que teve governadores de ‘oposição’ durante todo o regime militar) foi o terreno onde plantamos nossas sementes. Mas a recepção da revista em todo o Brasil foi impressionante, tanto que tivemos grupos de apoio em quase todo o Brasil.
Mas é fato também que o Rio tinha uma posição de predominância cultural no país naquela época e havia uma recepção maior de tudo o que vinha de lá. Tanto que os primeiros simpósios aconteceram na cidade, com afluência de pessoas de todo o Brasil. A Rádice era carioca, mas, antes de tudo, fazia parte do campo de resistência à Ditadura, e isso unia a todos, em todos os lugares.
LACUNA | Havia também no RJ um grupo de psicanalistas — ligado a Anna Katrin Kemper e ao Hélio Pellegrino — que promovia atendimentos gratuitos à população de baixa renda. Trata-se de um modelo provavelmente inspirado na Policlínica de Berlim, onde Reich inicialmente desenvolveu os trabalhos da SexPol com intuitos parecidos. Você tinha contato com esse grupo e essas pessoas? Elas tinham participação na Rádice de alguma maneira?
RALPH | Era uma clínica social, mas não inspirada no modelo reichiano acontecido em Berlim. Tratava-se de uma ação da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (se não me engano), onde seus membros ofereciam uma tarde por semana para atendimento social, na perspectiva psicanalítica. As clínicas de Berlim, do movimento Sexpol, tinham uma postura política que jamais foi inspiração para a clínica citada.
Tive contatos indiretos com vários desses psicanalistas (eram de uma geração acima da minha, e de uma classe social também) e algumas vezes em congressos que cobríamos. Mas tivemos uma maior proximidade especialmente com Eduardo Mascarenhas e Chaim Samuel Katz, pois eram psicanalistas mais críticos e abertos a outras abordagens terapêuticas. Eles foram a vários simpósios da revista e entrevistados por nós algumas vezes, inclusive em nossa edição final, nº 15, sobre ‘A Guerra das Estrelas na Psicanálise’. Desenvolvi uma amizade com eles, mesmo que a alguma distância. (Eu não ‘frequentava’ o meio psi, por várias razões).
LACUNA | Agora, uma curiosidade minha. O volume 6 da Rádice foi dedicado ao tema da tortura, um tema que reaparece também em outros momentos da revista. Você certamente conhece a história da denúncia do caso Amílcar Lobo — médico do exército e candidato a psicanalista na SPRJ, que atuava nas equipes de torturas no RJ, cuja denúncia foi feita por Helena Besserman Vianna e, hoje, é uma história largamente conhecida. Isso chegou aos bastidores da Rádice? Chegou como?
RALPH | O episódio do Amilcar Lobo era comentado nos ‘bastidores’ da Psicologia, desde o artigo da Helena Besserman. Sabíamos, não era um tema tão secreto, tanto que ele foi defenestrado de sua associação psicanalítica.
Mas há outro episódio mais intrigante. Nós fizemos numa ótima matéria uma denúncia internacional, com boa repercussão, sobre o desaparecimento da Beatriz Perosio, presidente da Associação Argentina de Psicologia, presa e ‘desaparecida’ pela ditadura argentina.
Recebemos um dossiê completo por correio, inclusive com fotos dela etc e um endereço de uma caixa postal. A partir daí realizei a matéria, recebendo mais materiais que pedíamos (recortes de jornais, depoimentos etc). E para lá enviamos a revista, depois de editada. Mas jamais soubemos quem era nossa fonte, nossa ‘garganta profunda’ watergatiana.
LACUNA | As bancas de jornal na época eram explodidas na calada da noite, havia uma enorme perseguição em relação às revistas clandestinas. Houve algo que não foi publicado na Rádice por algum tipo de estratégia de precaução e que você publicaria hoje? Ou tudo foi, mesmo, publicado?
RALPH | Várias bancas foram queimadas quando recomeçaram a sair as revistas pornográficas, banidas por todo o período da ditadura. O movimento direitista puritano com estas ações provocou uma reação do governo, que passou a exigir que essas publicações saíssem ensacadas em sacos plásticos. Isso justo antes da saída da edição nº 14 da Rádice — ‘O Combate Sexual da Juventude’ — que tratava da questão da sexualidade e política (nela fizemos um resumo do livro do Reich de mesmo nome, e a matéria era ilustrada com uma sequência de fotos de um casal que começava a fazer amor em uma mesa da cozinha). Assim, tivemos que suspender a distribuição em caráter de urgência e arranjar de ensacar a revista, para não corrermos o risco de apreensão ou queima de banca. Foi estressante, mas divertido; falávamos: ‘quem diria, depois de tudo sermos apreendidos como revista de sacanagem!’ rs.
LACUNA | Ela passou por algumas transformações no final. Virou Rádice Luta e Prazer, depois somente Luta e Prazer, e teve o seu fim um pouco antes do fim da ditadura. Você acha que a Rádice acabou no momento certo? Você acha que ela teria um público hoje?
RALPH | A Rádice virou um jornal — ‘Luta & Prazer’ — pela análise que fizemos da conjuntura, em abertura política, e por nosso desejo de interferir mais na realidade, abrindo nossa temática para muitos outros assuntos, ampliando nosso campo de influência. Mas erramos na mão em vários aspectos e mergulhamos numa crise logo após a segunda edição. Eu saí do projeto na quinta edição, já com o jornal semifalido (as considerações mais amplas dos porquês não cabem nesta entrevista).
Foi uma experiência interessante e frustrante. Saímos com 35 mil exemplares, uma enormidade para a época, vendemos 12.000, também um fenômeno, mas não tínhamos anunciantes, e uma redação com quase 80 colaboradores! O jornal era ótimo, mas não conseguiu se manter.
O Luta & Prazer continuou por mais algum tempo, virou gratuito, porta voz de uma parcela da juventude carioca, mas sucumbiu tempos depois.
Então acho que a Rádice teria mais um bom tempo de sobrevida, em seu projeto revista. Mas nela também enfrentamos a contradição, até hoje existente, da crise de crescimento. Enquanto foi feita semiartesanalmente, bem ou mal conseguia sobreviver. No momento que demos o salto para uma postura empresarial mais convencional (necessária para o crescimento), não suportamos o tranco da formalização no Brasil, com os N impostos e infinitas exigências burocráticas e mais um monte de coisas. Sempre tivemos pouquíssimos anunciantes e era impossível manter a revistas só com as vendas (das quais recebíamos metade do valor de capa).
Não vislumbro um público para uma revista como ela hoje. Vivíamos uma realidade política naquele tempo na qual a revista exerceu um papel fundamental no espaço psi, de resistência e de proposição de alternativas. Éramos a voz dos descontentes, o oxigênio na opressão.
O que seria a revista hoje, neste cenário político medíocre do consórcio petucano dominante, com os novos meios eletrônicos, com a caotização da vida cotidiana, e suas formas de violência e dominação, com tão poucos espaços para sonhos e alternativas?
Além de psicólogo, paralelamente continuei no jornalismo, criando e dirigindo várias outras publicações independentes, voltadas para a qualidade de vida, saúde integral e crescimento pessoal (e que tiveram bastante sucesso). Mas uma experiência tão visceral como a Rádice, nem perto. Ela mudou, ‘formatou’ (usando um termo atual) muito de minha vida e a de tantas pessoas. Assim como a psicologia, eu e muitas pessoas ‘nunca mais fomos os mesmos depois dela’. ♦
* Ralph Viana é psicólogo. Formado pela UFRJ (1974), possui cursos de extensão, aperfeiçoamento e mestrado em Psicologia. Fundador do Raízes – Centro de Estudos e de Crescimento da Vida, foi um dos pioneiros na implantação e difusão do pensamento de Wilhelm Reich no Brasil. Foi Editor das revistas Rádice, Teoria crítica e Órgon. Foi fundador e diretor da “Multiversidade/Brasil”. Atualmente dirige o “Espaço Saúde”, clínica de concepção holística, no Rio de Janeiro. É editor do jornal Nexos. Trabalha como psicoterapeuta corporal, dentro de uma perspectiva holística, e ministra cursos e workshops no Brasil e exterior. Pesquisa e escreve textos sobre Bioenergia e Prevenção das Neuroses e está montando uma agência editorial (<www.bemestaragencia.com.br>), voltada a temáticas ligadas à qualidade de vida, saúde e crescimento pessoal.
** Rafael Alves Lima é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela USP, membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise – LATESFIP e da Rede Clínica do Laboratório Jacques Lacan – IP-USP. Autor de Por uma historiografia foucaultiana para a psicanálise: o poder como método (Via Lettera, 2015) e organizador de Clinicidade: a psicanálise entre gerações (Juruá, 2015). Professor da Universidade Anhembi Morumbi.
[1] Cf. RUSSO, Jane Araújo (1993) O corpo contra a palavra – o movimento das terapias corporais no campo psicológico dos anos 80. Rio de Janeiro: UFRJ. (N. do E.)
[2] Cf. SANTOS, Alessandra Daflon (2011). Rádice: muito prazer! Crônicas do passado e do futuro da Psicologia no Brasil. Recife: Abrapso. (N. do E.)
[3] Cf. SCHPREJER, Pedro de Oliveira (2009) Corpo, Subjetividade e Política: o ideário libertário das décadas de 60 e 70 em uma revista de “jornalismo da psicologia”. Dissertação de Mestrado/UERJ. (N. do E.)
[4] Trata-se do Clio-Psyché – Programa de Estudos e Pesquisas em História da Psicologia, do Depto. de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da UERJ, coordenado pela profa. Ana Maria Jacó-Vilela. Cf.: <http://cliopsyche.com.br/> (N. do E.)