Amanhecer – Por Edson Luiz André de Sousa

 

O CORONAVIRUS TEM ACIONADO PALAVRAS INÉDITAS, e paradoxalmente em um cenário de distância corporal, novas formas de aproximação. Quem de vocês não recebeu uma mensagem que o surpreendeu, vinda de um amigo que não falava há muito tempo, de um parente depois de anos de silêncio?

Quem de vocês não está pensando que nossa única saída neste momento, para que possamos deixar um mundo melhor para a geração que virá, é recuperar uma solidariedade adormecida?  É um alento ver uma rede de atos solidários se disseminando de forma determinada (mas ainda muito insuficiente) como o vírus: compra de cestas básicas para comunidades carentes aqui em Porto Alegre, campanha para ajuda de moradores de rua, cuidado com as pessoas que trabalham para você e que agora sem trabalho dependem de seu gesto de continuar pagando seus serviços.

Seja propositivo se tiver condições de dar este passo. Isto fará toda a diferença para esta outra pessoa, mas fará muito bem a você. Você se dará a chance de uma nova experiência e certamente estes atos serão a lembrança boa deste cenário trágico que estamos vivendo.

Você pode concordar com isto, mas ainda assim continuar trancado em seu bunker contra o vírus. Há milhares que vivem a céu aberto, nos cantos desta cidade, empilhados em construções precárias. Abra suas janelas para esta brisa solidária o quanto antes, pois serão estes gestos que nos trarão esperança de um outro mundo possível.

É hora de nos reconectarmos com a vida neste país contaminado com tantas palavras de morte, justamente por aqueles que, no poder, deveriam nos abrir cenários de esperança. O vírus que está no outro também é seu. O vírus que eventualmente está em você também é do outro. Simples assim. É como se seu corpo não terminasse na ponta de seus dedos. Ele também continua nos dedos a sua frente.

A cena que nunca poderá ser esquecida é este capitão desgovernado sair apertando a mão de todos justamente no momento em que devia estar recolhido em sua casa e em seu discurso. Nesta cena de horror é como se ele se imaginasse que o corpo do outro é também seu. Um desprezo por aqueles que vinham ali lhe aplaudir contaminados por uma SERVIDÃO VOLUNTÁRIA.

É preciso urgentemente acordar enquanto é tempo. O vírus tem nos revelado muitos avessos. A importância do SUS, da responsabilidade do poder público de gerar políticas de cuidado a todos, do investimento em pesquisa e em universidade publicas tão atacadas nestes anos do atual governo. É uma pena que em tão pouco tempo perdemos tanta coisa. E para todos aqueles que acham que precisamos de um Estado mínimo para a alegria dos grandes empresários e banqueiros, a pergunta que fica é onde estão os gestos solidários destes que detêm o poder e o capital?

Espero que este cenário trágico seja também uma chance e que possamos ainda assim voltar a ter esperança. Teremos que ter paciência, saber esperar, cuidar dos outros respeitando o máximo possível a quarentena, e lembrar que o anúncio de um amanhecer só será possível se ativarmos juntos este despertar como esta bela imagem do poema do grande João Cabral de Melo Neto , tecendo a manhã:

 

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

 

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E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

 

  1. ( A imagem é de um amanhecer de Claude Monet)