ELE ainda NÃO acabou: luto, utopia e criação (la)linguageira de uma brasilidade historicizada – Por Renata Mattos Avril

ELE ainda NÃO acabou: luto, utopia e criação (la)linguageira de uma brasilidade historicizada – Por Renata Mattos Avril

(…) os povos que não conhecem a fundo a própria história caem facilmente nas mãos de vigaristas, de falsos profetas, e cometem de novo os mesmos erros.
Luis Sepúlveda

Há pouco tempo, como forma de resistência e luta para manter a sanidade e buscar participar das mudanças que nosso país clama com urgência, escrevi sobre o neologismo ACABOUSONARO que circulou nas redes sociais. Desejo utópico que norteia a luta para redemocratizar o Brasil, para inventar, enfim, uma democracia que se sustente em pilares outros que a opressão, escravização, extermínio, genocídio, femicídio e ecocídio escondidos em baixo do tapete.

Longe de ser um “negacionismo” da prática de destruição ainda em ação que Bolsonaro e os tantos cúmplices da tragédia humana, sanitária, social e ecológica vêm colocando em cena desde o primeiro dia de mandato como presidente da república, esse neologismo, ACABOUSONARO, condensa o trabalho com a linguagem – e com a musicalidade que constitui nossa língua e lalíngua brasileira – que dá abertura para uma torção discursiva permitindo a invenção de um outro país possível. Um Brasil sem bolsonarismo. Noção que dá nome ao pior que sempre existiu em nosso país desde sua “fundação” pautada na invasão e na destruição. Noção que parece legitimar as práticas discriminatórias antes veladas e mascaradas.

O que desejamos que acabe é toda a história de crimes, de sangue escorrido pela ganância calcada no desprezo pelo outro, que a “história oficial” do país tenta fingir não existir.

As ressonâncias podem continuar: CALABOUSONARO, grito que clama o silenciamento de tudo o que essa figura política representa; CALABOUÇONARO, outro grito, que exige que ele responda pelos inúmeros crimes cometidos (tantos deles apontados neste ano pela CPI da Pandemia) e seja impedido de continuar cometendo mais e mais crimes.

Reavivando a memória, as ressonâncias podem ecoar lutas recentes (ELE NÃO, ELE NUNCA, ELE NUNCA MAIS) entrelaçadas a lutas mais antigas e ainda, infelizmente, atuais (TORTURA NUNCA MAIS, DITADURA NUNCA MAIS). O fio é o mesmo: o longo e secular fio do ódio à diferença e da tentativa concreta e insana de eliminá-la. E que, em nosso país, busca tecer uma história distorcendo o vivido da enorme maioria das pessoas que habitaram e habitam o solo que hoje chamamos de brasileiro.

É na linguagem e pela linguagem que ocorre a invenção e sustentação de novas realidades compartilhadas. Algo que as elites dominantes sabem muito bem e da qual sempre se aproveitaram como instrumento de dominação e subordinação. Daí as incontáveis tentativas – simbólicas e nos corpos – de amordaçar e silenciar aqueles que produzem, criam e sustentam vivificações na Cultura através de expressões linguageiras.

Expressões estas que dão notícias do que nos torna humanos. Na constituição do sujeito, tal concebe a psicanálise freudiana e, principalmente, a lacaniana, um vazio é fundamental para que, do campo de alteridade, um sujeito se separe e emerja em sua singularidade e diferença. Em Freud, tal vazio se apresenta nas formulações acerca do complexo do próximo, de Nebenmensch, no Projeto para uma psicologia científica, de 1895. Vazio da Coisa, de Das Ding, objeto absoluto, para sempre perdido porque nunca tido, que dá a medida do desejo do sujeito e as coordenadas para sua busca. Objeto que marca um tempo zero, um momento mítico na emergência do sujeito do inconsciente, que faz com que um sujeito possa se contar, se historicizar, sem que com isso nós possamos entender a história como uma linearidade e sucessão de fatos. Abre-se, neste momento mítico, uma possibilidade de contar, recontar, contar mais e ainda, já que que é impossível capturar ou nomear das Ding.

E é por haver um vazio constitutivo, no sujeito e igualmente no Outro, sendo escavado e incorporado no primeiro, que uma fala singularizadora pode existir e se presentificar. De algum modo, para que um sujeito emerja é preciso haver um nada, na lógica do “não há”: não há complementaridade, nem tampouco fusão absoluta entre sujeito e Outro, não há algo ou alguém que saiba tudo de mim ou que me veja ou ouça o tempo todo, não há algo ou alguém que sacie por completo minhas demandas, desejos e necessidades. Este “nada”, este “não há” estrutural, vivifica, abre todo o campo de possibilidades e de criações de diferentes “há”. O que o faz radicalmente distinto de um “não há” e de um “nada” mortificantes, absolutos, nadificantes, categóricos, que impedem a mobilidade de criações do sujeito, que tendem a permanecer congelado num único sentido.

Assim, a abertura de construção de uma via para lidar com a perda e com as perdas que incidem na existência dos sujeitos pode passar por uma criação que permita gerar palavras que resignificam o vazio, recontornando-o, e utilizando-se para tal criação os restos neles inscritos. E não haveria nesse movimento de separação, de uma nova separação, a dimensão de um luto pelo que se perdeu, ainda que tal perda esteja ligada a algo que não se coloque concretamente ao sujeito, como quando se trata, por exemplo, na perda de alguém que se ama ou de um país pelo qual se luta? Seguindo as coordenadas freudianas, o luto se apresenta como uma saída possível para a dor e para resignificar o existir, o vivido. Nas palavras de Freud:

(…) em que consiste o trabalho que o luto opera? Creio que não é exagerado imaginá-lo do seguinte modo: O exame da realidade mostrou que o objeto amado não existe mais, e dele emana agora a exortação de quitar toda libido de seus enlaces com esse objeto. (…) Se executa peça por peça com grande gasto de tempo e de energia de investimento e, entretanto, a existência do objeto perdido continua no psiquismo. Cada uma das recordações e cada uma das expectativas em que a libido se enodava ao objeto são delimitadas, desinvestidas e nelas se consuma o desaparecimento da libido. Por que essa operação de compromisso, que é a execução peça por peça da ordem de realidade, resulta tão extraordinariamente dolorosa. Há aqui algo que não pode ser indicado com facilidade em sua fundamentação econômica. E o notável é que nos parece natural este desprazer doloroso. Porém, de fato, uma vez cumprido o trabalho do luto, o eu se torna outra vez livre e desinibido .

Há uma indicação em Freud relativa à temporalidade do luto, em sua dimensão econômica, que aponta para uma espera que implica um desinvestimento da libido e um trabalho ativo de elaboração a partir do vivido, e que nos leva a pensar na diferença – estrutural, podemos dizer – delimitada por Vivès entre espera e esperança. Esta diferença implica duas posições assimétricas e a possibilidade de construção e abertura pela passagem de uma espera para a esperança por ação e efeito do inesperado. Esperar, de uma maneira passiva, cria um campo de expectativas, mesmo de ideais, e de investimentos que não necessariamente põem em causa o desejo e que podem, ao contrário, retirar sua mobilidade. O inesperado rompe com tais expectativas, fura o que antes estava fixo, imóvel, exigindo um novo movimento, no qual a esperança pode surgir como um vetor, impulsionando o desejo.

Parafraseando Eurípedes, em A loucura de Herácles, Vivès aponta que: “Aquilo que se esperava não se realiza e para o inesperado a análise encontra passagem”. Passagem de uma posição a outra, a uma nova posição, da qual o sujeito poderá se recolocar, desejante, mais além do sentido, do esperado, do idealizado, tocado, por vezes, pelo entusiasmo que entra em cena com a liberdade de poder criar e fazer outros e novos investimentos pulsionais. Entusiasmo que leio pela via da re-vivificação. Parafraseando a paráfrase de Vivès, pensando num movimento coletivo que implica o luto, podemos dizer que “Aquilo que se esperava não se realiza e para o inesperado a invenção social encontra passagem”. Uma ideia que em muito se aproxima da concepção de utopia de Ernest Bloch.

Uma nova posição diante do nada, fruto de um trabalho de saída da alienação pela separação, não implicaria num rearranjo do já inscrito, numa nova escrita com o que ali se apresenta no vivido do sujeito e dos sujeitos em coletividade, num fazer com os restos?
E tal posição implica fazer com as ressonâncias do inesperado, na direção de abertura e possibilidade, tal qual indica Vivès. Uma dimensão de esperança, na concepção deste psicanalista, ou de uma utopia, como podemos escutar no filósofo Ernest Bloch e no entrelaçamento de tal conceito com o de objeto a lacaniano, como feito pelo psicanalista Edson de Sousa. Este nos indica que: “A utopia sempre foi para Bloch uma experiência radical de perfuração dos futuros opacos e sombrios, impregnados em excesso pela reiteração do mesmo ”, acrescentando que “um pensamento sobe a função da utopia vem, portanto, provocar a imaginação a abrir outros caminhos possíveis ao pensamento para que não fiquemos paralisados na obscuridade do momento ”.

Neste modo de conceber a utopia, ela não se apresenta como um ideal inatingível, distanciado da ação, dos atos, da responsabilidade de cada sujeito para com aquilo que cria e a que se direciona, sozinho ou compartilhando uma mesma direção. A utopia blochiana não é uma espera passiva, sustentada por idealizações, que tem um único vetor do presente para o futuro. Ela é precisamente um vetor duplo do instante presente para o futuro e do futuro agindo sobre esse instante, que é ele mesmo uma construção ativa dos instantes já vividos, com os quais dialoga e ressoa. Um vetor duplo que, diante da não resposta do Outro, ou melhor, de sua resposta silenciosa e enigmática, invoca criação na medida em que “criar é abrir descontinuidades, interrupções no fluxo do mesmo ”.

Nesse sentido, a utopia associa-se à crise, à descontinuidade, à destruição que exige uma recriação, tal qual o criacionismo da pulsão de morte, em seu movimento ético que reconvoca o desejo pelo manejo com o objeto a, evocando a possibilidade de vida pela impossibilidade de fusão e de satisfação com das Ding. Nas brechas e no fracasso do presente, o desejo se reinscreve e movimenta, utopicamente, o sujeito para uma recriação linguageira de futuros possíveis.

Com Bloch, podemos dizer que a utopia ilumina a “obscuridade do momento”, propõe rupturas e um recomeço naquilo que se apresenta como congelado, como sofrimento que impede o fluxo, o movimento. Diz ele:

É apenas em nós que ainda brilha esta luz e a marcha imaginária começa em direção a ela, a marcha em direção à interpretação do sonho construído, em direção à utilização do conceito de utopia em seu princípio. É para encontrá-la, para encontrar aquilo que é justo, aquilo para o qual é conveniente viver, se organizar, ter tempo, é para isso que vamos, percorrendo os caminhos metafísicos constitutivos, é para isso que chamamos isso que não é, que nos edificamos no desconhecido, que nós nos edificamos no desconhecido e buscamos o verdadeiro, o real, lá onde a simples realidade factual desaparece – incipt vita nova!

Deste modo, o nada pode ser, uma vez mais, recolocado em sua função estruturante de causa e de invocação a criar ou a inventar. Utopicamente, recomeçar, inventando, a partir do vivido e em uma nova posição, em torno do vazio vivificante que nos une em nossa condição de seres da fala. E que nos permite, pela fala e pela linguagem, elaborar um luto coletivo possível como nação, retirando do silêncio a violência que sempre esteve nela presente. Neste sentido, tratar-se-ia de poder escutar e dar a ouvir o que poderíamos esboçar como uma brasilidade historicizada, algo que se deposita e que marca a cultura brasileira a partir de uma releitura de nossa história “não-oficial”.

Há sistematicamente uma tentativa de silenciar a História brasileira e as histórias que a compõem e que compõem nosso país. Silêncio que equivaleria a matar simbolicamente quem e o que já se matou concretamente nas violências cometidas em nosso solo.

Algo que difere completamente do silêncio do Outro que invoca o sujeito a assim se tornar. Silêncio no qual ecoa a questão estruturante sobre o desejo, “Que queres?”, e que nos faz perder e incorporar a voz, colocando em movimento o circuito da pulsão invocando. De alguma maneira, o silêncio do Outro emolduraria nossas produções em torno da voz. Sem o silêncio, como corte no contínuo, não há sujeito.

Recorro a Mario Quintana, no segundo poema de seu livro Esconderijos do tempo:

O silêncio

Há um grande silêncio que está sempre à escuta…

E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!

E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta…
e cala .

Trata-se aqui de um silêncio que não é surdo, mas que precisa comparecer sem falar. Silêncio que “escuta… e cala”. Isso porque quando a voz do Outro não é silenciosa ou silenciada, ela pode ser mortífera.

Pergunto, então, se o silêncio imposto, também politicamente, a determinados sujeitos não seria dessa ordem: o Outro (ou um outro) que silencia, de maneira mortífera, o sujeito por não deixá-lo falar ou não escutá-lo e por responder em seu lugar?

O racismo , em suas mais múltiplas declinações, poderia ser pensado por essa via? Como tentativa de desumanizar o outro lhe tirando a possibilidade de ser escutado, visando jogá-lo num silêncio sem voz, sem vida? E, ainda, desumanização porque tira a possibilidade do sujeito de responder ao enigma do desejo (já que, “inferior”, “animalizado”, objetizado, ele nem desejaria)?Faço um parênteses trazendo um trecho do livro de Santiago H. Amigorena , “Le premier exil”, em que, ao falar da sociedade chilena na época da ditadura, ele aponta para algo que localiza no Brasil e no lugar no qual são colocadas as pessoas negras em nosso país: “Mas um racismo de Estado – como no Brasil – os mantém à distância, reclusos numa classe social que se aproxima ao que na Índia é composta por aqueles que são denominados como ‘Intocáveis’”.

Uma das facetas da lógica do racismo, racismo estrutural que subjaz na escravização e da colonização, é a tentativa de apagar – de exterminar – as singularidades culturais, linguísticas, afetivas e expressivas daqueles que são tomados como mercadorias ou como serviçais. Se pensarmos no objeto voz como algo que faz laço e pode, assim, ser transmitido culturalmente por uma via da resistência que vivifica, essa lógica colonialista não estaria buscando tornar mudo o que é da ordem da voz e da invocação? Como se fosse possível instaurar um silêncio absoluto e imutável.

Meu pensamento continua viajando e encontra agora pensadoras, militantes e feministas negras, como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Françoise Vergès e Audre Lorde, que quebraram silêncios, denunciando mecanismos de calar para continuar a dominar. Penso mais especificamente na conferência de Lorde A transformação do silêncio em linguagem e ação, na qual ouvimos o convite para furar medo, sair do silêncio, agir e transformar as estruturas racistas de nossas sociedades patriarcais e herdeiras das práticas e lógicas coloniais.
Trago aqui um trecho dessa conferência:

Eu ia morrer, mais cedo ou mais tarde, tendo ou não me manifestado. Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você. Mas a cada palavra verdadeira dita, a cada tentativa que fiz de falar as verdades das quais ainda estou em busca, tive contato com outras mulheres enquanto analisávamos as palavras adequadas a um mundo no qual todas nós creditávamos, superando nossas diferenças .

E nos pergunto sobre as diferentes formas de se passar do silêncio à voz . Penso no testemunho ou no relato do que se viveu (uma forma de dar voz ao que era impossível dizer por ser traumático ou proibido?), na denúncia (do vivido ou do que se vê e se quer mudar… Um modo de não mais deixar calar?) e na transmissão pela arte (em que o silêncio grita e não nos deixa tentar tapar os ouvidos?). Há ainda a via da análise, que tem também uma dimensão política de transformação do silêncio. Certamente há muitos outros caminhos e respostas.

Buscar silenciar a singularidade e a dimensão de diferença poderia ser, portanto, ouvido como uma concretização, uma realização – ao menos na sociedade brasileira, mas não apenas – da lógica da escravização. Lógica esta que coloca a diferença como excludente e a singularidade como algo a ser apagado, silenciado, destruído.

Trata-se de uma escolha social e política, que se traduz no racismo estrutural, sistêmico, que determina até hoje quem são os corpos que serão entregues à violência e exterminados, até mesmo em suas próprias casas, e quais corpos serão protegidos. E que faz com que sujeitos que já estão estigmatizados, que têm um lugar socialmente pré-determinado, precisem se inventar – talvez mais do que qualquer outro sujeito em relação à marca do desejo – também com a marca da estigmatização.

Desse modo, uma tal invenção passaria por um fazer com a estigmatização e com esses significantes que são mortíferos. Ou seja, encontrar, com esses significantes, uma via de respirar e de criar para não morrer.

Há algum tempo, uma frase da cientista política Françoise Vergès vem me feito pensar bastante sobre as questões da escravização, do colonialismo e da possibilidade de ruptura com isso pelo feminismo decolonial. Vergès analisou as rotas de escravização entre África e a Europa – ela não pensa o Brasil, mas os pontos que ela traz tocam essa mesma lógica que formou nosso país – e também propôs uma cartografia da escravização anterior à invasão do continente africano, como a efetuada pelos vikings, por exemplo, e, de uma forma mais ampla, pela Europa do sul e do norte que escravizava europeus do leste. Algo que, de algum modo, pode continuar se presentificando em determinadas dinâmicas de exploração da força de trabalho e no preconceito, por vezes, desprezo pelo europeu do leste .

Vergès aponta, contudo, que a presença da prática da escravização de culturais diferentes da própria ocorreu nas sociedades mais diversas de nosso planeta, como no caso dos cristãos da Europa mediterrânea que foram escravizados por muçulmanos do norte da África entre os séculos IX e XI. Tais práticas a faz analisar o que ela denomina “o homem predador”: aquele que “promove a caça às mulheres, às crianças e aos homens para capturá-los, vendê-los e escravizá-los. Para atingir esses fins, ele os humilha, os desumaniza e até os mata. Nós o encontramos em praticamente todas as sociedades ”.

O que Françoise Vergès aponta é que em qualquer momento da História no qual observamos a escravização humana, há uma tentativa de apagar as origens e a história daquele que está sendo escravizado:

Todas as sociedades consideraram seus escravos como pessoas sem origens e sem história. Em toda parte, eles são tornados submissos, contra a própria vontade, pela força e pela violência. E, em todas as sociedades, os escravos constituem a força de trabalho a mais móvel e a mais flexível. A interdição de laços familiares e comunitários os distingue dos outros membros do grupo. Eles não têm direito; a criança nascida de um escravo é escravo, seja qual for o estatuto do pai; o testemunho deles não tem valor; seus proprietários podem alugá-los, vendê-los, trocá-los como bem entendem. Uma metodologia que viria a construir uma grade cruzada dos tráficos e das escravizações faria surgir uma outra topografia da história dos povos .

Encontramos isso nos relatos sobre o modo como os africanos foram escravizados . Havia uma estratégia de separar famílias e pessoas com laços afetivos no momento mesmo em que elas eram violentamente capturadas, como se fosse possível, com isso, tirar qualquer inscrição da história para esses sujeitos. Ou, ainda, tirar a condição de sujeito apagando a história, apagando a origem.

Gostaria de refletir esse ponto com outra consideração que em muito tem me causado, dessa vez de Lélia Gonzalez. A proposta de uma Amefricanidade nos permite pensar em como é possível – no nosso continente (na América Latina, mais especificamente, mas também na América do Norte, com os Estados Unidos) e no nosso país, o Brasil – promover um resgaste da história, dos traços culturais e dos traços que propiciam um laço de identificação entre os negros e os descendentes de negros . E isso para romper com a segregação.

O esquecimento ativo de uma história pontuada pelo sofrimento, pela humilhação, pela exploração, pelo etnocídio, aponta para uma perda de identidade própria, logo reafirmada (o que é compreensível, em face das pressões raciais no próprio país). Só que não se pode deixar de levar em conta a heroica resistência e a criatividade na luta contra a escravização, o extermínio, a exploração, a opressão e a humilhação. Justamente porque, enquanto descendentes de africanos, a herança africana sempre foi a grande fonte revificadora de nossas forças. Por tudo isso, enquanto amefricanos, temos nossas contribuições específicas para o mundo pan-africano. Assumindo nossa Amefricanidade, podemos ultrapassar uma visão idealizada, imaginária ou mitificada da África e, ao mesmo tempo, voltar o nosso olhar para a realidade em que vivem todos os amefricanos do continente .

A saída humanizante é, portanto, poder se retornar para essa história, se retornar a algo que dá lugar e voz a isso que se tentou apagar e silenciar, como se não existisse passado, como se não existisse história, como se não existisse raiz, como se não existisse origem ou memória e vozes para disso falar e testemunhar. Nossas origens. Algo do qual o brasileiro sempre disse se orgulhar – se com sinceridade ou não, só se pode saber no caso a caso. Não a escravização, obviamente, mas o que dessas culturas que foram desraizadas pôde fincar raiz – com as raízes que estava nelas brotando, pois mesmo quando se arranca uma raiz, ela não morre, há algo de vida que nela insiste e pode rebrotar – na formação da diversidade da nossa cultura, que tentamos dar um contorno e nomear como brasileira e como uma brasilidade. Rever e dar novo lugar às origens que deram origem ao Brasil como país.

É preciso e urgente, então, rever e dar lugar, a partir do que incide no corpo dos sujeitos e no corpo da Cultura, ao que é, justamente, vivificante no que uma parte da sociedade busca fingir que não existe. Há essa dimensão entre o que se dá a ver e de onde se é visto, fazendo uma torção para o que se pode dizer, de onde se diz e como é possível se fazer ouvir a partir da própria história e, coletivamente enquanto sociedade, da História.

É preciso e urgente sustentar uma torção passando da invisibilidade e do silenciamento mortífero a uma nova posição coletiva que possa entrelaçar e elaborar luto, utopia e fazer (la)linguageiro em que outra versão da memória e da História possam ganhar voz. Uma (re)invenção aí com os significantes do Outro, mas numa dimensão pulsante, fazendo com a pulsão, que passe pela vivificação e pela coexistência das singularidades e da polifonia.

Fica, então, essa aposta de que, diante do silêncio mortífero, diante dos significantes que aprisionam num lugar pré-determinado acorrentado a esse peso histórico que temos da herança escravocrata patriarcal, é possível reinventar, pela linguagem, um outro país possível, com uma outra democracia possível.

Notas:

[1] SEPULVEDA, Luis. “l’Île perdue”, In Les Roses d’Atacama.Paris, Editions Métailié, 2021, p. 17. Tradução livre da autora.

[1]https://www.facebook.com/utopiascotidianas/posts/341324224384638?__xts__[0]=68.ARBX7-KdB7EhuFRgm2ImYWRZfqNbZ45GmTxgZCz5N7uwvnQZsJ1fV6kncSZpnDS3g5E9wYhILgi0Q_VyBIg607RiFzWSQZKhPCpBxjCAqInVj5Y9rQJ3ayd54yt_1e-65t3hz8dIqRbYjxLzym9blLj9-_aCw7XqBAax-uX2tO5WsB9XCPXJIECF5jermWQ0dqBsqw7I2d9R7NVfMsKXZTMYZscnbnuMAoB94zDyUHDOiSKPIZ9_5xWys3RS9OyHzkftOjhQDhaciT6omTnREXkxBoOT-Q8PDzjAmFYaFmeLIWcMHJ8

[1] FREUD, Sigmund (1917[1915]) “Duelo y melancolía”. In: Obras complétas, v. XIV. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. p. 242-243

[1] VIVES, Jean-Michel. La Voix sur le divan – Musique sacrée, opéra, techno. Paris: Aubier, 2012.

[1] Ibid. p. 245. Tradução livre da autora.

[1] SOUSA, Edson Luiz André. Uma invenção da utopia. São Paulo: Lumme, 2007, p. 13.

[1] Ibid., p. 14.

[1] Ibid., p. 19.

[1] BLOCH, Ernest. L’esprit de l’utopie. Paris: Gallimard, 1977, p. 11.

[1]QUINTANA, Mario. Esconderijo do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. Recurso digital, formato ePub.

[1] Detenho-me, neste texto, sobre questões mais próximas ao racismo relacionado aos povos africanos escravizados no Brasil, mas sem deixar de pensar e de fazer reverberar reflexões sobre os povos originários que foram e continuam sendo exterminados em solo que chamanos “brasileiro”.

[1] AMIGORENA, S. H. Le premier exil. Paris: P.O.L., 2021, p. 43-44), tradução livre.

[1] LORDE, Audre. (1977) “A transformação do silêncio em linguagem e ação”, In: Irmã Outrsider – ensaios e conferências. Trad. Sthephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 52.

[1] Gostaria de pontuar que parte das reflexões que trago aqui em torno do silêncio, da voz e do racismo estrutural puderam ganhar corpo a partir de um convite que me foi feito por Maria Lidia Alencar para dialogar com Vilma Dias, por meio de perguntas a ela endereçadas, no Seminário “Invenções na Clínica e na Cultura – lições de Lacan” coordenado pela primeira junto à Christiane Zeitoune na seção Rio de Janeiro da Escola Brasileira de Psicanálise. Neste contexto, Vilma Dias realizou uma apresentação de um belíssimo caso clínico em torno do racismo estrutural, a qual ela nomeou “O silêncio dá voz”, em torno da qual escrevi duas cartas. Agradeço muitíssimo esse convite e as reflexões que surgiram deste encontro.

[1] VERGES, F. L’homme prédateur – Ce que nous enseigne l’esclavage sur notre temps. Paris: Albin Michel, 2011.

[1] Trabalho com o acolhimento de imigrantes na França, vindos principalmente do continente africano e do leste europeu, e vejo isso de uma maneira muito contundente em certas situações.

[1] VERGES, F. L’homme prédateur – Ce que nous enseigne l’esclavage sur notre temps. Paris: Albin Michel, 2011, p. 7, tradução livre.

[1] Ibid, p. 49 (tradução livre).

[1] Penso aqui no romance Un océan, deux mers, trois continents, de Wilfried N’Sondé, publicado pela editora Actes Sud em 2018, que relata a vida de Nsaku Ne Vunda, batizado Antonio Manuel, primeiro embaixador do Congo enviado no século XV ao Vaticano, em um navio de tráfico de pessoas negras destinado ao Brasil que faria escala na Europa, com a intenção de tentar lutar pelo fim da escravização junto ao Papa Paulo V. Uma leitura que narra de forma ao mesmo tempo crua e revestida pela poesia das palavras o horror indescritível do tráfego de pessoas.

[1] Mesmo aqueles que, sem trazer no corpo e na pele o que o olhar do outro associará, num primeiro momento, a essa “categoria”, a essa “criação social” do “negro”, mas que carregam em si traços culturais daqueles que foram oprimidos na fundação comum do nosso país. Nosso país é fundado por essa violência da escravização e do extermínio, genocídio, de africanos, de afrodescendentes e dos povos originários. Ressalto que falo do negro como categoria e criação social por ter sido um conceito cunhado para servir aos propósitos de opressão social. Encontramos relatos sobre isso na arte. Como a personagem Ifemelu do romance Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie (publicado pela editora Gallimard em 2014), que, tendo imigrado da Nigéria para os Estados Unidos, se “descobre” negra no olhar do outro: “Ao descer do avião em Lagos, tive a impresso de deixar de ser negra”. Ou na fala de Fela Kuti sobre o que estava em jogo para ele em sua obra prima colonial mentality, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ga4aPEOK-QA&ab_channel=SwaliAfrica_com.

[1] GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 92, n. 93, (jan./jun.), 1988, p. 78.