Faz 2 anos e 4 meses que a plataforma Psicanalistas pela Democracia surgiu em ATO pelo apoio incondicional à democracia no Brasil. Acompanhou a gênese do resultado das eleições da extrema direita desde o golpe de 2016. Viu nascer e recrudescerem os ódios, os medos, a ignorância e seu corolário, o pensamento dicotômico que se enraíza em afetos desligados e deflagram sentimentos justificados pela angústia ante o diverso, o ambíguo o equívoco.
Nesses últimos anos acompanhamos a maneira como tais sentimentos ganharam forma nas expressões da política revelando cenários impressionantes que conferiram profunda pertinência ao texto de Freud do pós-guerra Mais além do princípio do prazer. Vimos a pulsão de morte revelar-se na discursividade violenta que se propaga e se esparrama entre cidadãos que compartilham o mesmo território, a mesma nacionalidade e o mesmo regime e mesmo assim se autorizam à matar, exilar, torturar convertendo tais aspirações em projetos políticos duradouros. A pulsão de destruição revelou-se na política brasileira como jamais se testemunhou em período democrático.
A blindagem absoluta do governo Temer, que desde seu início já se propunha como representante de políticas de extrema direita, fechou as portas do seu palácio e atacou vorazmente a população pobre e miserável no país utilizando-se das mesmas forças que conduziram ao impeachment de Dilma Rousseff e que perduraram no legislativo.
Ao mesmo tempo, o governo Temer que trabalhava para a privatização de setores e áreas estratégicas do país definindo um cenário por um lado de total submissão ao capital internacional e, por outro, o isolamento do Brasil, que muito rapidamente voltaria a ser um país nanico e desrespeitado no contexto internacional e no âmbito das Nações Unidas. Com Temer se preparava um cenário de protagonismo pífio diante de temas maiores das Nações Unidas como meio ambiente, direitos humanos, direitos econômicos, culturais e sociais, gestão da água, proteção das florestas e combate à desigualdade.
A continuidade dessa posição submissa se expressaria com máxima clareza no gesto militar de continência ante a bandeira americana, indicando a continuidade entre o governo ilegítimo de 2016 e o governo eleito, formado em boa parte pelos mesmos personagens que apoiaram e articularam o golpe em 2018.
Nesse período Psicanalistas pela Democracia manifestou-se centenas de vezes, através da pena de seus colaboradores, chamando a atenção para as sutilezas do poder, suas armadilhas inconscientes, seus desmandos invisíveis que logo alcançariam os mais altos lugares do executivo nacional e muitas cadeiras do legislativo, deixando o judiciário em posição de isolamento.
Sozinho o judiciário deveria defender a constituição; sozinho teria de defender os princípios de liberdade e diversidade propugnados a mais de 70 anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos e pela Convenção de Viena.
Essa solidão, seguidas vezes, quase levou o sistema judiciário brasileiro à bancarrota e se exprimiu na pusilanimidade da Suprema Corte Brasileira, ainda em 2016, quando o STF assistiu o desenrolar trágico do processo de impeachment da presidenta eleita, que foi inteiramente conduzido pelas mãos do hoje reconhecido criminoso Eduardo Cunha, só depois condenado, após a conclusão da deposição da presidenta eleita. Terminava aí o ciclo democrático representado pela confiança em eleições livres e justas.
Naquele momento se gestava concretamente também o resultado das últimas eleições. O ataque frontal aos direitos fundamentais adquiridos chegaria ao triunfo nos anos Temer pelas mãos do legislativo, que o presidente ilegítimo soube bem controlar. Triunfo que o próximo governo promete consolidar e aprofundar.
Nesse período não foram poucas as manifestações, as iniciativas, os escritos, as intervenções artísticas e de movimentos sociais a se oporem ao governo Temer. Psicanalistas pela Democracia, através de inúmeros posts e pesquisas em outras mídias e redes procurou dar maior alcance a elas. Algumas reportagens realizadas pelos organizadores da plataforma procuravam emoldurar os temas críticos e, por vezes, elucidar os comentários e análises postados.
O FORA TEMER se consagrou pelo país e pelo mundo. No Brasil aguardava-se as eleições de 2018 para retomar a construção da democracia de onde partimos, desde a deposição de Fernando Color e as eleições de Fernando Henrique Cardoso.
Porém estratégias extremamente eficazes e cibernéticas atropelaram qualquer esperança em mudanças significativas em eleições livres e justas no pleito de 2018. Grupos organizados nos EUA, na Europa e agora também na América Latina assessoraram o candidato vencedor de forma inédita e rebaixaram o nível da ética na política ao nível zero. Mesmo assim, e provavelmente por isso, venceram. Venceram apostando num único, mas fundamental fator: milhões de pessoas não acreditam no que veem, tocam e percebem, elas acreditam no que querem acreditar. Pior: essas mesmas pessoas acreditam que seu bem estar depende do mal estar alheio; seu conforto do desconforto alheio; sua sobrevivência do extermínio, exclusão ou ataque direto aos que não lhe são idênticos ou semelhantes.
Muitas acreditam na violência como estratégia de superação de impasses e na força bruta como forma de alcançar a “pacificação” para alguns. Porém, os últimos acontecimentos indicaram que elas estão certas, porque a eliminação do divergente, do diferente, do discordante pode mesmo preservar e manter posições de mando. Prova disso é que o governo Temer terminou seu governo sem nenhum arranhão, a despeito de milhares de manifestações contra os ataques frontais que seu governo cometeu durante o mandato e de um índice de aprovação próximo a zero.
A ascensão exponencial do candidato do partido dos trabalhadores nas eleições de 2018, já nas pesquisas do primeiro turno e após o apoio do ex-presidente Lula, indicava a projeção de sua provável vitória, porém dois fatores imprevistos, mas de altíssima eficácia, entraram em cena: a suposta facada da qual o candidato eleito teria sido vítima e a avassaladora onde de fake News a invadir os aparelhos celulares.
Ironicamente a esquerda que gritou incessantemente O povo não é bobo, fora Rede Globo, desde a vigência da ditadura civil militar viu a hegemonia das concessões de rádio e TV ser quebrada pelas estratégias da direita. De fato hoje a globo sozinha é incapaz de definir o resultado das eleições, mas não foi a esquerda que levou a cabo essa derrocada.
Pelas redes foram oferecidas verdades de bolso, portáteis, pessoais, à altura dos apelos e do rigor das necessidades de consumo veiculadas por cookies e em propagandas de telefones celulares. O telefone portátil tornara-se o lugar virtual em que cada um guarda suas verdades, seus desejos mais secretos e suas ambições inconfessáveis e elas, como pudemos constatar, não são promissoras.
Essa operação algorítmica, já realizada em outros países e cenários transformou as eleições diretas para sempre e deixou um futuro incerto para os que acreditam na duramente conquistada democracia representativa. A estratégia é mundial, portanto outros países serão atingidos por ela num futuro próximo.
Desde esse mundo virtual vimos surgir personagens reais que prometem catalisar cada um dos anseios, até então tímidos ou não confessos, dos cidadãos e das cidadãs brasileiras: os políticos de extrema direita no Brasil, que viram na política profissional o caminho mais curto para cometer absurdos. Assim personagens burlescos, néscios, estapafúrdios mais ou menos inofensivos nas redes sociais, nas redes de rádio e TV e nos quartéis hoje ascenderam aos lugares mais altos do executivo e do legislativo e prometem cometer estragos.
Mas no mesmo torvelinho em que a expectativa do pior se tornou exequível também vimos muitas formas de ação e reação políticas que se apresentaram no Brasil. Impossível enumerá-las, mas não podemos deixar de destacar o movimento dos secundas, o #Ele não, o trabalho do Vira Voto e etc.
Consideramos que o trabalho dos Psicanalistas pela Democracia representou um passo muito importante, dado por muitos psicanalistas brasileiros que atenderam a um chamado que há muito os aguardava. Mas é muito importante destacar não somente o ATO Psicanalistas pela Democracia de 2016 e a plataforma criada no mesmo ano, mas também o Manifesto dos Psicanalistas pela Democracia, que circulou amplamente pelas redes socais em 2018 e foi assinado por institutos, associações, coletivos e sociedades de psicanálise no Brasil; a série de vídeos Psicanalistas pela Democracia, realizada antes do segundo turno das eleições presidenciais; a criação da Rede Interamericana de Pesquisa em Psicanálise e Política (REDIPPOL) além de muitas outras iniciativas de instituições de psicanálise e psicanalistas em todo o Brasil compareceram na história da psicanálise no Brasil, destacando os últimos 2 anos como os anos em que os psicanalistas disseram não.
Libertos de homologações e repetições descontextualizadas; autônomos diante do avanço da possibilidade da coação das liberdades fundamentais; corajosos para informar aos analisandos, analisantes, pacientes e alunos e supervisionandos que há e havia algo a mais em jogo do que os limites da teoria e da clínica psicanalíticas, até então mais ou menos determinados para o reconhecimento da psicanálise como práxis, pesquisa e transmissão.
Juntas tais manifestações afirmaram que havia muito mais a ser alcançado pelo pensamento e a interpretação psicanalíticas que no passado, mais de uma vez, hesitaram diante dos destinos do traumático. Alguns psicanalistas pensavam em resguardar a psicanálise dos abalos sísmicos políticos que devoram a palavra e a submetem, mas não puderam afirmar que quando se emudecem os sujeitos que falam suas verdades ao invés de reproduzir, cativos, o que se lhes diz, ao mesmo tempo se lhes definem e se lhes sentenciam à condição de massa onde a própria psicanálise, como ofício, como teoria e como interpretação soçobra.
2016 tem início o tempo em que os psicanalistas brasileiros disseram não, e 2018 o ano em que juntos e em muitas partes psicanalistas ratificaram esse compromisso que doravante, revelou a política também um assunto e um ofício para o psicanalista e para a psicanálise comprometidos com a promessa e o dever da política em criar modos de dizer e escutar sempre, mesmo quando os tempos são de sombras e o falso se exerce executando e tomando espaço do que já foi consenso sobre a palavra justa, sincera e verdadeira.
Para os psicanalistas a tarefa é imensa. Todavia é, e sempre foi nosso ofício mais profundo restituir a liberdade da palavra para compreender suas complexas determinações invisíveis, latentes, encobridoras. Embora os resultados sejam hoje bastante visíveis, evidentes e claros no Brasil, os caminhos para se chegar a esses resultados foram em boa parte ocultos, imprevisíveis e surpreendentes.
Adiante abre-se um horizonte que o tempo dirá se promissor ou temerário para a psicanálise e os psicanalistas e que se inaugurou em nosso país quando os sinais eram de alerta, de sombras e de perigo.
Um novo ciclo se abriu para a psicanálise no Brasil, no mesmo momento em que outros ciclos se fecharão no país. Psicanalistas pela Democracia pretende continuar existindo a partir do sentido que lhe for conferido por seus seguidores, colaboradores e psicanalistas do Brasil e de outros países que lhe exigem, como em 2016, um novo recomeço. A todos que acompanharam esse trabalho até aqui nosso muito obrigado e o convite para, juntos na nossa diversidade, defendermos as condições que permitem que a psicanálise exista, resista e reafirme seu compromisso ético com a escuta, com a fala e com os princípios que lhe possibilitam interpretar o que, de longe, parece apenas um discurso unívoco e sem fendas, mas que logo evidencia sua porosidade por onde respiram nossos sonhos.