E eis que um incêndio na madrugada de 27 de janeiro de 2013 fez com que a cidade gaúcha de Santa Maria da Boca do Monte se tornasse tragicamente conhecida como Santa Maria da Boate Kiss. Um conjunto de falhas nos procedimentos de prevenção e segurança na casa noturna resultou na morte de 242 pessoas e deixou centenas de feridos, muitos deles com importantes sequelas físicas e psíquicas. De acordo com a perícia, a maioria das mortes foi causada por asfixia em decorrência da inalação de monóxido de carbono e cianeto. Desde então, esse acontecimento se incorporou, forçosamente, às histórias pessoais e da cidade que compartilharam o mesmo destino. De lá pra cá, muito do que acontece no cotidiano transcorre tendo como pano de fundo trauma e culpa.
Até hoje, o maior desastre humano conhecido em nosso país ocorreu em 17 de dezembro de 1961 na cidade de Niterói (RJ), quando um incêndio na matinê dominical do Gran Circo Norte Americano resultou, oficialmente, na morte de 503 pessoas. Este acontecimento trágico é apresentado no livro do jornalista Mauro Ventura, “O Espetáculo mais triste da terra: o incêndio do Gran Circo Norte-americano” que através de um minucioso trabalho de resgate documental e testemunhal atualiza a tonalidade dramática daquele evento na vida das pessoas afetadas.
No contexto contemporâneo da saúde na realidade brasileira, o incêndio em Santa Maria desencadeou uma mobilização conjunta de poucos precedentes. De forma conjunta, os três entes federados assinaram um termo de compromisso assumindo diferentes responsabilidades no atendimento aos quadros agudos e ao cuidado longitudinal.[1] Essa ação associada às manifestações coletivas e individuais foi fundamental para que os suportes simbólicos que operam no laço social pudessem fazer frente aos efeitos deletérios do encontro traumático com o real.
Paralelamente, a emergência da Associação dos familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia de Santa Maria (AVTSM) foi uma decorrência inevitável. Sua formalização aconteceu em 23 de fevereiro de 2013 e, desde então, assumiu a incumbência de acompanhar e representar os familiares nos desdobramentos que se seguiram ao incêndio. Já se sabia que o desastre (do grego, má estrela) obrigaria um recomeço de vida transformada pela dor. Apesar disso, outro discurso já se fazia ouvir. Baseado numa justificativa simplista e de parca sensibilidade ao semelhante, um significante começa a ser disseminado e repetido como um mantra: superação. O tempo da dor e do lamento deveriam se submeter a uma lógica de temporalidade homogênea. Seguir em frente era a única alternativa compatível que deveria ser assumida por todos, indistintamente.
A expressão pública da dor, a cobrança pelo cumprimento dos acordos, o questionamento sobre as responsabilizações começam a serem interpretados como excessos e privilégios de pessoas que insistem em negociar com a vida dos filhos. Para muitos, a luta dos familiares começa a ser representada como o corpo daquele sujeito que se um dia já foi útil, agora que jaz sem vida e, portanto, sem valor, é apenas um incômodo. Como canta Chico Buarque: “morreu na contramão atrapalhando o tráfego……. morreu na contramão atrapalhando o público”.
Aqueles dias calorentos do verão de 2013 testemunharam uma rara jornada de solidariedade. Foram incontáveis os que choraram, trabalharam, doaram seu tempo, seu abraço e sua casa. Entretanto, tais reações foram se dissipando, aos poucos e em seu lugar, advém um implacável pedido de retorno à “normalidade” justificado pela necessidade da retomada do ritmo de crescimento econômico supostamente afetado pelo acontecimento. Como mencionado acima, a palavra superação é incorporada no discurso formal e no jargão coloquial. Já não se acolhia da mesma forma e a dor se, ainda, existisse deveria ser vivida em silencio, quase vergonhosamente. Sua expressão profanaria o sagrado fluxo da normalidade que, orientada pela onipresença da racionalidade neoliberal, tenta ditar, inclusive, como devemos viver nossa dor e nosso luto.
O incêndio e as suas consequências começam a trilhar a passos rápidos o caminho do passado. Impõe-se ao desastre o destino da história morta, de acontecimento datado. Não lhe cabe mais o valor de reflexão sobre os nossos modos de vida e sobre as formas como a justiça se faz (des)igual aos cidadãos brasileiros. Como nos esclareceu Freud há mais de um século, os ideais produzem restos que, por sua própria natureza, sobrevivem onde se presume a elaboração. Em casos como o do incêndio na boate Kiss, superação não é elaboração, mas um ideal de esquecimento forçado pelo recalque cujos efeitos se mostram àqueles que quiserem ver.
Desde o princípio, a cena judiciária ganhou destaque, em especial, por ser depositária da esperança de uma atuação que restituísse as condições simbólicas do nosso modelo de civilização. Contudo, aos poucos, essa expectativa converte-se em descrédito, em especial, diirigido ao Ministério Público pela recusa desta instituição em considerar as indicações oferecidas pelo processo da polícia civil quanto às falhas nos mecanismos de proteção e prevenção por parte das entidades públicas.
Tal descontentamento fez crescer um forte movimento de denúncia e crítica por parte de diversos segmentos da sociedade gaúcha, capitaneado pela AVTSM. Recusando assumir, mais uma vez, a posição sacrificial como forma de manter a integralidade e legitimidade do Outro, a entidade tem promovido inúmeras ações de denúncia contra os representantes do ministério público e da prefeitura municipal de Santa Maria, questionando as decisões proferidas. Por essas atitudes, foram processados.
Estrategicamente, o caminho para tentar neutralizar essa postura crítica foi individualizar a relação com o incêndio. Não está mais em questão a responsabilidade do poder público nem mesmo o quanto os fatos relacionados ao desastre questionam as corrupções cotidianas do cidadão comum. Com o passar do tempo, os assuntos relacionados ao incêndio na boate Kiss deixaram de interpelar à comunidade para se tornarem questões exclusivas das pessoas envolvidas diretamente com o incêndio: sobreviventes, familiares, profissionais.
Para se contrapor a essa tendência, é essencial recuperar a dimensão pública que os fatos ligados ao desastre na Boate Kiss portam. Nesse sentido, a posição de luta da AVTSM não se carrega de narcisismo infantil nem pode ser vista como ressentida, constituindo-se, contrariamente, como um movimento em favor da construção de uma memória amparada na confiança nos fundamentos civilizatórios das suas instituições. Assim, nos cabe refletir acerca das críticas endereçadas aos familiares processados de maneira a considerar a legitimidade ética dessa posição de resistência de como fazer durar uma espera na vida enquanto lidamos com o irrepresentável da morte.
[1] O livro “A integração do cuidado diante do incêndio na Boate Kiss: testemunhos e reflexões” (Org. Gilson Mafacioli, 2016, CRV) reúne uma série de artigos que registram as principais ações desenvolvidas desde o processo de resgate na frente da boate até as intervenções de cunho psicossocial em caráter longitudinal.