‘Não olhe para a morte, ame a Matrix’ – uma pequena reflexão e paralelo entre os filmes “Não Olhe para Cima” e “Matrix Resurrections” – Por Caio Garrido

‘Não olhe para a morte, ame a Matrix’ – uma pequena reflexão e paralelo entre os filmes “Não Olhe para Cima” e “Matrix Resurrections” – Por Caio Garrido

‘Não olhe para a morte, ame a Matrix’ – uma pequena reflexão e paralelo entre os filmes “Não Olhe para Cima” e “Matrix Resurrections” 

por Caio Garrido *

 

No calor do momento de nosso contexto pandêmico e político (ainda governado pela extrema direita) é que escrevo essas linhas. Estamos no início de 2022, e neste texto faço uma reflexão a partir dos limites dois filmes mencionados no título acima (lançados no final de 2021), mas levando em consideração que o leitor já entrara em contato com ambos de alguma forma. O texto, para isso, leva em conta o impacto que os filmes estão tendo nos espectadores, para traçar um paralelo entre seus conteúdos e a repercussão causada por eles; e ainda mais, a partir daquilo que os filmes em questão lançam luz, ir em direção ao objetivo de compreender o papel da arte e da ficção em tempos antidemocráticos (com o concomitante borramento de seu valor para a sociedade), a relação com a realidade, e a banalização da morte e da vida.

O filme “Não Olhe para Cima”, quando lançado, nem bem estreou e logo dividiu opiniões. Uns amaram e outros odiaram veementemente, mesmo entre aqueles que costumam ‘olhar pra cima’. Bem, um filme não precisa ser exatamente uma obra de arte para ser relevante e provocador; tal como eu li em uma crônica – de Leo Aversa –, “é o filme certo na hora certa”.

E esse longa-metragem acerta em cheio, talvez, pois “mira” em um certo alvo, mas acerta em outros. Pois apesar de seu conteúdo parecer óbvio, mais esta polarização entre pessoas não nega que o filme está dizendo mais do que deseja dizer. Esse é o fator de incômodo, dado que mais do que ampliar em superzoom o absurdo do comportamento humano contemporâneo, a premissa de que ele é óbvio falha, pois o filme traz angústia, discussões e faz refletir (apesar de suas evidentes imperfeições, pois tipos de personagens e aspectos da realidade ali apresentados no filme estão por vezes suavizados, ao contrário de deixar o absurdo mais absurdo).

Ainda que possamos não compactuar com o desatino que o filme retrata, muito próximo ao que quase passivamente assistimos na realidade diuturna, acredito que a narrativa fílmica no fundo traz uma questão que ainda não respondemos: que imobilismo é esse que parece atravessar a todos?

Vivemos em uma sociedade dividida, porém, apaziguada. Mais porém ainda, insuficientemente apaziguada, por se tratar de uma pacificidade falsa, autotraidora, pois superficialmente apaziguada.

A aparente polarização (seja ela política, ou em relação a opiniões econômicas, sobre costumes, filmes e outros) esconde aquilo que corresponde a uma sociedade na verdade cindida; a cisão, que não é uma mera divisão, separação. Estão os indivíduos separados sim, mas por um espaço de não-comunicação. As duas partes (ou mais) da sociedade não passíveis de comunicação. Não se reconhecem, não se entendem. Nem a si mesmas.

Além de cindida, podemos falar em bipolaridade, com os polos oscilando da melancolia à mania. A mania, o reverso da melancolia, um impulso desmedido, e se aproximando do delírio. Não é difícil achar uma boa representação disso na atualidade: a fuga da realidade, expressa por exemplo na atenção dada por multimilionários e bilionários a viagens para o espaço, financiando-as, com o intuito de diversão e espetáculo, e também para transformar isso num mercado. A outra atipia dessas viagens seria procurar um planeta simpático à vida humana. De alguma forma, isso também está representado no filme.

Pois, não é claro que o que temos à disposição aqui no nosso planeta é muito mais belo e condizente com a vida? Muita, mas muita gente mesmo parece não achar isso.

São esses fatores que vão minando a energia e a esperança de muitos, dado que nossa realidade vai se transformando em uma mera simulação. O que nos leva ao filme seguinte: “Matrix Resurrections”. Que é decisivo em novamente despertar velhas questões, que costumamos repetidamente esquecer: afinal, o que é realidade, o que é ficção, o que é mentira, engano? E os nossos sentimentos, o que dizem de nossa realidade?

Na cultura de falsos selfs (conceito proposto pelo psicanalista Winnicott) que vivemos, descobrir o verdadeiro e se aproximar de uma realidade interna, podendo se aproximar de realidades e estruturas externas à pessoa também, é um desafio que por vezes parece quase impossível.

Há um diálogo em Matrix, que no contexto do filme e do que vivemos, promove insight a respeito do que nos incomoda (inclusive em relação ao filme anterior que estávamos discutindo), quando o personagem Neo diz:

“Depois de termos conversado, percebi que minha vida não era uma vida.”

“À certa altura, penso ter desistido de procurar algo real.”

É a “Matrix” que “arma todas as ideias”, se apropria daquilo que é verdadeiro, criativo, e que é produzido pela sociedade. É através da estrutura de uma sociedade extremamente mergulhada no capitalismo de práticas neoliberais que tais ideias, culturas e inventos são apropriados pela grande cultura do capital. Que se apropria e mata os sonhos capazes de nos fazer despertar.

Tanto que as possíveis saídas para os embaraços e impasses que a vida, a política e civilização impõem parecem ficar embargadas numa espécie de alfândega mental.

“Todas as noites sonhava com sirenes de ataque/ Mas depois veio o silêncio/ Sinto-me envergonhada agora/ O meu pessimismo de quanto tempo levei a acreditar/ que um mundo sem guerra era possível”. Essas frases entoadas pela personagem Niobe, em Matrix, dizem muito de nossa época.

Estar preso à guerra é estar preso na “Matrix”. Não nos darmos conta que nós é que deixamos de acreditar, que somos levados a isso; essa é a prisão. Como disse Mark Fisher “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.

A jornalista Mariana Bastos, em seu texto “’Não Olhe Para Cima’; Olhe para o lado”, diz algo semelhante, a partir dessa formulação de Fisher e do filme de nome presente no título de seu texto: “O realismo capitalista brasileiro consegue ser tão aterrorizante quanto o novo filme da Netflix. Precisamos nos organizar, olhar para o lado e enfrentar, como ensina Mark Fisher e Ailton Krenak, a narrativa imobilizante do fim do mundo.”

A proposta de mudança de vértice de olhar e ação aqui é praticamente radical (apesar de parecer clichê e óbvia): tal como o olhar para a realidade, torna-se necessário olhar para os filmes, e artes, e livros (etc.) não passivamente. Assim como ocorre, por exemplo, em um trabalho e pesquisa etnográfico, na modalidade de observação participante, em que um apreciador de arte, um leitor, ou um espectador (além do observador da vida, que é um observador necessariamente participante, mas se esquece disso) deve ser responsável por aquilo que vê e escuta e apreende com seus sentidos. Ser responsável significa se posicionar ativamente em relação a uma obra (não apenas se ver instado a dar uma opinião), se exigir na tarefa de que não basta receber os estímulos de forma passiva, mas ser um observador participante. Um filme, por exemplo, às vezes só se torna satisfatório se o espectador empreender uma jornada em relação a ele e a si mesmo enquanto assiste. Muitas vezes o que qualifica uma obra não é ela per si, mas a reflexão que ela pode gerar, ainda que seus elementos pareçam rasos ou não profundos o suficiente. Uma platitude superficial (como a vida ordinária) pode ser demasiadamente enganadora muitas vezes.

“Vivemos uma era marcada pela farsa”. Esse comentário explicativo da obra de Hal Foster – historiador da arte –, chamada “O que vem depois da farsa?”, diz muito do momento político. Além do político propriamente dito, caracterizado pelo “vírus” fascista e a plutocracia, trata-se de um momento – segundo ele – que exige dos artistas, críticos e pessoas que trabalham com arte, formulações novas e extremas para lidar com essa política – não só a da pós-verdade, mas a da pós-vergonha.

Hal Foster nos remete a uma formulação de Karl Marx, que diz sobre esse padrão da tragédia seguida pela farsa: “Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” (Karl Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte).

E fica a pergunta aqui, sobre o que viria depois da farsa. Na tentativa de compreender as formas atuais que se apresentam na arte e as tendências assumidas pelo cinema, é que recorro às palavras de Foster. Das “ficções reais” ao “brilho utópico da ficção” ou a ficção com “fome de realidade”, ele emprega tais conceituações – suas  e de terceiros – para tentar digerir epistemologicamente e compreender empregos possíveis da arte frente a um núcleo tão duro da realidade, buscando assim artifícios não para “perturbar o real”, mas “torná-lo real de novo”.

Hal Foster argumenta que depois da farsa – que é um interlúdio, e originariamente a “farsa era um interlúdio cômico numa peça religiosa” – o que vem, entre outras possibilidades, é uma súbita liberação de forças (debacle), e/ou também um “monte de merda”, que na verdade é o que já veio. Trata-se daquilo que o filósofo Harry Frankfurt pensou em seu ensaio sobre o tema do “falar merda” e o “falador de merda” (bulshitter), que “não tem a menor preocupação com a veracidade e, assim, a corrompe ainda mais”.

Dado que diante desse cenário distópico, as artes têm se posicionado, e pensando aqui nos filmes que evoco acima, que, de uma forma ou de outra, apesar de parecerem “uma cópia mais ridícula que o original” (expressão usada por Hal Foster no caso da política e políticos atuais) –no caso de um dos filmes, que traz uma cópia da realidade mais ridícula que a realidade, e no outro, um filme que parece cópia do próprio filme –, abraçam a ideia – ainda que o leitor possa argumentar que fazem isso de uma forma tosca, ou superficial – de talvez tentar tornar o real real novamente.

Lá no Matrix Resurrections, um diálogo que nos chama a atenção pode lançar luz para isso. O personagem Neo, vivido por Keanu Reeves, diz em algum momento: “Nem sei o que é real”. No que sua interlocutora responde: “Se não soubermos o que é real, não podemos resistir”.

Um pouco mais à frente, Shepherd, recruta para a causa de Neo, diz a ele quando o vê pessoalmente pela primeira vez:

“Loucura. Tu és real.”

Em que Neo responde: “’Real’. Esta palavra novamente”.

Está aí a palavra que volta e volta e volta novamente, mas ninguém parece ver, ou querer ver. É preciso desmitificar o mito. Torná-lo realista.

Mas afinal, o que é o real? O que é simulação? O fato de não se saber o que é real é o grande complicador de qualquer história.

Em dado momento do filme, outro personagem, um dos vilões, inicia um percurso reflexivo e investigativo, que comunica:

“A mente humana não acredita em fatos/ O único mundo que vale é o interno/ O que então valida e torna suas ficções reais?/ Alguma vez já perguntaste porque tem pesadelos? Por que é que o teu cérebro te tortura? […] / Eis o que se passa com os sentimentos/ São muito mais fáceis de controlar do que os fatos.”

Em outros diálogos, essa nova película da franquia Matrix me parece que se utiliza da metalinguagem, para se autoironizar, e fazer referência a esse novo mundo artificioso em que o cinema e a arte estão inseridos, e com o qual tentam lidar.  Tal posicionamento do filme parece pôr em discussão esse lugar do cinema na atualidade. Nas cenas pós-créditos finais, um dos personagens, em tom satírico, diz em uma reunião, enquanto discutem as possibilidades de execução de uma nova versão do game Matrix: “Enfrente a realidade, pessoal. Os filmes estão mortos. Os jogos estão mortos. Narrativa? Morta.” No que um outro engrossa o caldo: “Os media não são mais do que uma resposta neuro-reguladora e condicionamento viral.” O diálogo prossegue: “Espere, o que estão falando?” Em que o último arremata: “Vídeos de gatos / O que precisamos é de uma série de vídeos a que chamamos ‘O Gatrix’; vídeos de gatinhos”.

Nem seria preciso dizer ao que tal diálogo nonsense alude: o enxame de vídeos curtos que colonizaram a internet e redes sociais como Instagram e TikTok, mais contagiosos que uma pandemia.

Em direção ao espetáculo, mas com elementos que, na brecha das possibilidades da matrix capitalista que também envolve a indústria do cinema, representam críticas à indústria cultural e à sociedade do espetáculo, tais filmes, como os dois que apresento aqui nesse texto, dizem respeito a esse mundo insone, maníaco, agitado, e angustiado, que ri de si mesmo de forma enervada.

Qual seria o avesso do avesso do avesso do avesso do avesso?

A divisão de opiniões que ocorreu acerca do primeiro filme apresentado aqui (“Não Olhe para Cima”) nada mais é que um sintoma da sociedade atual, que precisa ter e expressar uma opinião, mas se contradiz quando não realiza isso com fatos, a partir de evidências.

De fato, muitos dos personagens deste filme são rasos, o objeto principal de conteúdo é óbvio à boa parte dos espectadores (e tudo isso deve ser intencional, dado que o diretor não mostra em nenhum momento o desejo de ser um Lars Von Trier ou um Bergman), mas também de fato, o óbvio nem sempre é tão óbvio assim. Pois as coisas que precisamos realmente aprender estão bem à frente de nossos olhos, e não queremos saber. Dito isso, talvez este seja o ponto principal que o filme faz incomodar: o negacionismo que é de todos, e não de uma parte de uma determinada população.

Por que afirmo isso?

Vamos por partes. Começo essa digressão a partir de um diálogo apresentado na estupenda e clássica obra da literatura universal “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, trecho que reflete sobre a análise desvinculada da ação. Vamos a ele:

“A análise é boa como instrumento do esclarecimento e da civilização; é boa, quando abala convicções estúpidas, dissipa preconceitos naturais e solapa a autoridade; é boa, em outros termos, enquanto liberta, refina, humaniza e prepara os escravos para a liberdade. É má, muito má mesmo, quando estorva a ação, quando prejudica as raízes da vida e se mostra incapaz de lhe dar forma.”

Em alguns momentos o filme parece poder gerar isso no espectador, um pouco do bom e do mau que o personagem do livro acima diz.

Em outro ponto, um dos personagens do livro se manifesta sobre a questão controversa da ironia como forma de comunicação, e localização e exposição do verdadeiro: “Acautele-se com o tipo de ironia que cultivam aqui […]. Acautele-se, em geral, com essa atitude de espírito! Onde ela não é um meio correto e clássico da eloquência, perfeitamente compreensível a qualquer intelecto sadio, chega a ser licenciosidade, torna-se um obstáculo à civilização, um namorico escabroso com a estagnação, com o vício, com o oposto do espírito”.

Estaríamos todos viciados e alienados pelo entretenimento? Essa é a aposta intelectual que o famoso escritor David Foster Wallace tanto fez e com a qual bateu na tecla em suas obras. Em um ensaio “E unibus pluram”, ele argumenta acerca da ironia, televisão e outros: “A ironia, embora prazerosa, tem uma função quase exclusivamente negativa. É crítica e destrutiva, boa para limpar o terreno. Mas é particularmente inútil quando se trata de construir alguma coisa para pôr no lugar das hipocrisias que expõe”.

É possível também, que negativamente, o filme em questão incomode por isso; por uma ironia que parece não construir. Mas o meu argumento é que isso é responsabilidade do espectador, no caso.

Tais fatos e considerações dialogam com um recente texto de Slavoj Žižek sobre a pandemia (“A ômicron e o que nos faz tolerar o insuportável”). Lá ele afirma:

“O filósofo alemão Friedrich Jacobi escreveu, por volta de 1800: La vérité en la repoussant, on l’embrasse: ‘Ao repelir a verdade, nós a abraçamos’. Exemplos deste paradoxo abundam. O Iluminismo, por exemplo triunfou realmente contra a fé e a autoridade tradicionais quando os partidários da visão tradicional começaram a usar a argumentação racional dos iluministas para justificar sua posição (‘uma sociedade precisa de autoridade firme e inquestionável para desfrutar de uma vida estável’, etc.). Mas será que o oposto também é válido? Será que ao abraçar a verdade, nós a repelimos? Isto é exatamente o que está acontecendo agora. A ‘verdade’ – a necessidade urgente de cooperação global, etc. – é rechaçada no exato momento em que os governantes alardeiam, de público, a necessidade de ação para deter aquecimento global ou de colaboração na luta contra a pandemia. Foi que vimos na COP26 de Glasgow, cheia de blá blá declarativo, mas que pouco se entregou em termos de compromissos claros.”

Como também citado por ele, o filósofo norte-americano Adrian Johnston caracteriza o cenário geopolítico atual como uma situação “em que as sociedades do mundo e a humanidade como um todo enfrentam múltiplas crises agudas […], mas parecem incapazes de tomar as medidas (reconhecidamente radicais ou revolucionárias) necessárias para resolver essas crises. Sabemos que a ordem está rompida. Sabemos o que precisa ser refeito. Por vezes até temos ideias sobre como fazê-lo. No entanto, continuamos a não fazer nada para reparar os danos já causados ou para evitar novos danos facilmente previsíveis”.

É essa a tal da perniciosidade que vem da análise desvinculada da ação.

A construção de um modelo de cultura vem de uma longa história. Os primeiros hominídeos que estiveram sobre a Terra certamente vivenciaram existências marcadas pela constante ameaça de aniquilação. Em sua relação com a natureza, se viam sem recursos para enfrentar os demais animais e a força da natureza; dominá-la se tornou parte de sua natureza. Nesse sentido, a morte iminente muito provavelmente estava sempre no radar de cada um deles, e perder a vida rápida e drasticamente devia ser uma perspectiva considerável, em que a negação da morte não fazia sentido.

Quanto mais recursos, ferramentas e cultura à disposição dos humanos, mais possível era estender a vida. A morte foi deixando de ser um acontecimento natural frente a um acidente de percurso, e passou a ser considerada cada vez mais contornável no curto e médio prazo.

Quanto mais cultura, mais se tornava possível reservar a morte para um período muito futuro, e assim camuflá-la, e por vezes negá-la.

Obviamente que a morte não é evitável, mas sua iminência e a consciência da morte sim. Ernest Becker, em seu livro inspirador “A Negação da Morte”, contradizendo Freud – que com opinião fundamentada e com evidências pode ser levado em consideração, inclusive pelos psicanalistas –, diz que é a consciência da morte, e não a sexualidade, a repressão primária.

O que se passou de lá das primeiras vidas humanas para cá é que esta consciência da morte ficou cada vez mais relegada ao segundo, terceiro ou décimo plano. A falsa “conquista” da natureza e seu pretenso domínio levou as sociedades de mais riqueza a consumir e extrair do meio ambiente um excesso (próprio do sistema capitalista que vivemos). O gozo contemporâneo que vem desse excesso é vorazmente consumido por toda comunidade humana. E não se trata apenas de um gozo dos ricos, em que a maioria da população fica de fora. Mas trata-se de um gozo de quase todos, que para se sentirem fazendo parte buscam a redenção pessoal no consumo, seja de notícias, mídias, tecnologias e muitos outros, no vínculo identificatório que fazem inconscientemente com os objetos que a cultura oferece como consumo, ou então na alienação na pura e simples “diversão”.

A cultura torna-se então um campo que de onde se olha não se vê morte, não se vê realidade. Veja quanto disso não aconteceu durante essa pandemia no Brasil – o quanto não se permitiu que a morte fosse levada a sério. Esse é o princípio que rege a sociedade contemporânea: consumir até morrer, “comer” até morrer (lembro-me aqui de outro filme, um clássico de Marco Ferreri, chamado “A Comilança”, de  1973, em que um grupo de homens se reúne planejando se deixar levar pelos prazeres e delícias do ato de comer até morrerem). Consumir até acabar todos os recursos da Terra, mas ao mesmo tempo fingindo que não estamos fazendo isso. Mais do que uma negação, uma renegação da morte.

Não nos enganemos: todos nós, em níveis diferentes, estamos fazendo isso, e é por essas e outras, que o filme “Não Olhe para Cima” incomoda. É justamente pela recusa de olharmos para a morte que nós ficamos sujeitos à morte como espécie. Criadores dessa cultura e envoltos por ela, quase ninguém parece capaz de modificar esse quadro, muito bem representado pelo filme.

Fazendo isso, negamos não só a morte, mas a vida. Uma é inescapável à outra. A banalização da morte e da vida (como tão bem conhecemos através dos últimos acontecimentos políticos).

Freud apontou em 1924, em seu texto sobre a perda da realidade na neurose e na psicose, que “a neurose não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la”. Essa é que é a questão de todos nós. Essa é uma das possíveis facetas que pode estar presente no grande número de polarizações da sociedade atual.

Se adotarmos as nomenclaturas diagnósticas vindas da Psiquiatria e Psicanálise, de Mania e Melancolia, poderíamos dizer que o filme “Não Olhe para Cima” é o duplo invertido de “Melancolia” de Lars Von Trier. Enquanto no filme de Von Trier o foco está na melancolia diante da morte inevitável, o fim de tudo o que conhecemos como vida na Terra, no outro o que aparece é a mania – que costuma ser o estado mais difícil e sofrido do transtorno maníaco-depressivo –, caracterizada por intensa euforia, em que o sujeito, dissociado da realidade, luta de forma encarniçada para se defender da depressão, da melancolia. Tudo o que vemos ali na narrativa e imagens é esse estado eufórico levado às últimas consequências, onde nada é levado a sério.

O homem deitou suas armas (suas boas armas) e se rendeu. Todo o heroísmo humano se deixou levar pelas contínuas elaborações da cultura de massa ao longo da história. O advento da alta tecnologia fez avançar ainda mais o espectro alienante. O homem desistiu de procurar algo real – tal como é exprimido no último filme Matrix –, em meio a uma massa tão gigantesca que ofusca sua visão.

O autor Ernest Becker, em obra supracitada, parece dizer o mesmo: “O homem moderno está bebendo e se drogando para fugir à conscientização ou fazendo compras, o que é a mesma coisa.  Como a conscientização exige tipos de dedicação heroica que a sua cultura já não lhe proporciona, a sociedade dá um jeito de ajudá-lo a esquecer”.

Que esses filmes recentes, ao contrário, não nos deixem esquecer. Pois é isso talvez o que também uma das coisas que mais inquietam no filme “Não Olhe para Cima”: uma aparente concordância com a sociedade do espetáculo, que faz e produz o esquecer. Mas não creio muito nisso; o filme leva a arte cinematográfica para um patamar de paródia da situação insólita que vivemos, mostrando a vida como pastiche da vida.

A morte se torna então algo tão inquietante que deve ser desmentida, como se fosse uma fake news.

Na simulação de vida que empreendemos, debochamos da vida, não acreditamos mais nela, perdemos outrossim a fé; perdemos a capacidade de nos modificar. A vida se tornou paródia da própria vida.

Resta, como lugar de resistência e ampliação, um ato de fé – sempre ele –, subsistindo na força do acreditar, naquilo que Becker falou a respeito das “energias de massas de homens suando no pesadelo da criação”, e que nem mesmo caberia aos homens programar um rumo futuro exato para um “projeto tão grandioso” quanto o do impulso da vida para a frente, na luta contra a limitação humana, e na busca de lidar com seu corpo mortal. Nenhuma matrix, inteligência artificial, metaverso, ou algoritmo é capaz de programar o homem em direção a um futuro planejado. Não é à toa que nos identificamos com Neo – o personagem de Matrix –, o que traz o novo. Identificação inconsciente para muitos. Por isso não os ajuda. É preciso tornar consciente essa identificação. Essa figura redentora, “o escolhido”, que traz a novidade, lembra-nos outras figuras imortais. Lembra-nos do heroísmo e da tarefa infindável de revelar e trazer o novo.

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Caio Garrido é psicanalista e escritor. É idealizador da Ubuntu Psicanálise, e mestrando pelo Programa interdisciplinar em Ciências da Saúde pela Unifesp, com o tema dos sonhos. Foi editor geral de Revistas de Psicanálise. Tem quatro livros publicados, entre romances e poemas, entre eles: “parapeito” (2013, Ed. Patuá), e “O Bom Cristão” (2018, Ed. Patuá). Está lançando a obra “Paniricocrônicas: Crônicas dos Sonhos em Tempos de Pandemia”, contemplada pelo programa ProAC (da Secr. Cultura do Estado de SP). E com o livro em coautoria “A Nova Era Tecnológica: Redes sociais, Inteligência Artificial & Realidade Virtual”, de viés psicanalítico e social, no prelo, pela Editora Letramento.