Chile, urgente – Por Tania Rivera

Chile, urgente – Por Tania Rivera

Chile, urgente.

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Terão sido desviadas as reivindicações sociais de 2019 a ponto de impulsionarem a vitória de um presidente ultraliberal e autoritário?

Estou no Chile e aguardo com apreensão o resultado do segundo turno das eleições presidenciais, que acontecerá no próximo domingo, 19 de dezembro. Há poucos dias sonhei com uma sala ampla e aberta ao exterior por grandes portas de vidro, que parecia ser parte de uma das universidades chilenas que frequentei pontualmente há alguns anos. Dentro estavam sentados, devidamente paramentados com suas togas, os ministros do STF brasileiro. Nessa espécie de Ágora que figura provavelmente os meus desejos quanto ao que deveria ser uma Universidade, éramos convidados a entrar e dizer o que se passou na América Latina nos anos 1960 e 1970 (e o que segue acontecendo, hoje). Entrávamos e saíamos, comentando entre nós, entusiasmados, o que se revelava através de nossas histórias, nossas histórias singulares, que enfim eram ouvidas por instâncias da Lei e podiam imprimir suas marcas e transformar a História de nossos países. Entre outras pessoas queridas, estava ao meu lado Vladimir Safatle, que na véspera me enviara seu comovente texto sobre as eleições chilenas publicado em El País. No sonho, a mãe de Vladimir já havia dado seu testemunho a respeito do terrível dia 11 de setembro de 1973 e contado, como faz o filho em sua coluna, que não parou de ouvir nos dias seguintes, antes de fugir do Chile com sua família, as bombas que então caíram sobre o Palácio La Moneda.

No sonho dessa noite – ia escrever em “meu” sonho, mas me deteve a ideia de que ele talvez não seja meu, ou, ao menos, não seja só meu – aparecia também minha própria mãe, que faleceu há três anos, antes que eu pudesse lhe perguntar detalhes sobre a militância e o exílio de meu tio, passado em parte na mesma Santiago. Ela saía feliz da sala, depois de contar algumas dessas pequenas histórias que, acredito, seguem às sombras, especialmente em nosso Brasil, país no qual, em contraste com o que aconteceu no Chile, na Argentina e no Uruguai, os responsáveis pela tortura e morte de centenas de pessoas não foram julgados após o término da Ditadura Militar. País no qual o imenso trabalho da Comissão da Verdade terminou inviabilizado por outro golpe, o impeachment de Dilma Roussef, que abriu as portas para a instalação do atual (des)governo de extrema direita responsável pelo explícito retrocesso de políticas públicas, pela destruição de parte da economia nacional e pelo escancaramento da necropolítica vigente há tantos séculos (especialmente no que diz respeito aos povos originários e aos negros), que a pandemia veio, ainda por cima, reforçar – como se a História não fosse, já, suficientemente trágica.

Além de tentar me inteirar da vida de meu tio na capital chilena e assim me apropriar desta história de exílio que – como só me dei conta há poucos anos – me marcou muito mais do que percebia enquanto ele estava vivo, vim em busca dos novos ares de reivindicação social que circulavam desde os protestos iniciados em outubro de 2019. Eles levaram à aprovação, por plebiscito, da realização de uma nova Constituição (em substituição àquela promulgada pela Ditadura Militar em 1980 e considerada por muitos a Carta Magna mais neoliberal do planeta) e pareciam trazer um passo significativo na transfiguração da própria lógica de representação política vigente, como mostrou a expressiva votação de candidatos independentes ou pertencentes a novos partidos na eleição dos membros da Convenção Constituinte realizada em maio passado. Metade dos constituintes são a favor de mudanças radicais no modelo legal que rege o país, com ênfase nos direitos trabalhistas e nas políticas públicas redistributivas, além da instalação da plurinacionalidade para estabelecimento dos plenos direitos dos povos originários, que contam com a presença de 15 representantes em um total de 155 membros.

Infelizmente, constata-se hoje uma evidente desidratação deste processo. No primeiro turno das eleições presidenciais, em 21 de novembro último, o ultradireitista José Antonio Kast, que muitas vezes declarou ter saudades do governo Pinochet, ultrapassou por 2 pontos percentuais (27,91% contra 25,83%) o favorito ex-líder estudantil Gabriel Boric. O resultado, que leva os dois candidatos ao segundo turno a se realizar no dia 19 de dezembro, contrariou a grande maioria das pesquisas eleitorais, que por lei só podem ser divulgadas até duas semanas antes do pleito e lidam com uma estimativa de total de votantes, uma vez que o voto não é obrigatório no Chile e os escrutínios dificilmente contam com mais de 50 por cento da população votante. No pleito de 21 de novembro também foram escolhidos deputados e senadores que substituem metade do parlamento e a grande vitoriosa foi a direita, que passa a contar com quase 50 por cento dos representantes, situação inédita desde a redemocratização do país em 1990. Interrompe-se, assim, a chamada “concertação”, que manteve o país em um amplo espectro de centro, em prol de uma polarização que deve tornar difícil a realização de mudanças significativas por parte do novo presidente, seja ele quem for, uma vez que as regras atuais exigem que sejam aprovadas por ao menos 75 por cento dos membros do Congresso.

Um exemplo flagrante do enfraquecimento, em menos de seis meses, do que parecia ser uma vitória inconteste da defesa do bem comum e da participação popular sobre os interesses neoliberais é o fato de no dia em que deveria se iniciar a consulta aos povos originários para estabelecimento do texto constitucional a seu respeito, no último 6 de dezembro, a presidente da Comissão Elisa Loncón, do povo Mapuche, ter declarado que o processo está em risco por falta de “colaboração do poder constituído” e recursos financeiros. Já os constituintes de direita sublinham o atraso no estabelecimento do texto que deveria servir de base para tal consulta e o atribuem a conflitos entre membros do grupo dos próprios povos indígenas. Seja como for, o trabalho da Constituinte em geral, que deveria se concluir em fevereiro próximo, está bastante atrasado e muitos temem que termine inviabilizado pela nova composição do Parlamento, a quem cabe decidir sobre o adiamento dos prazos previstos. Além disso, o texto constitucional depende de aprovação mediante um novo plebiscito para ser instituído, e o rearranjo de forças ocorrido nos últimos meses parece tornar incerto seu futuro.

Apesar da pandemia, prosseguem até hoje os protestos de sexta-feira na Praça Itália, rebatizada pelos manifestantes de 2019 como Praça Dignidade, mas eles há muito se tornaram confrontos entre lentos veículos policiais a lançarem jatos de água e alguns poucos rapazes encapuzados dos quais cabe perguntar quantos seriam anarquistas contrários a qualquer poder estabelecido e quantos poderiam estar a serviço dos interesses de uma direita ávida por fatos que justifiquem seu tradicional discurso em defesa da ordem. O fato é que parte dos chilenos hoje relacionam os protestos a baderna e vandalismo, exacerbando um discurso que já surgia na boca de algumas pessoas em janeiro de 2020, como pude constatar em anterior viagem ao país. Como para reforçar tal discurso, agravou-se neste ano a situação de violência há muito presente na região denominada Araucanía, palco histórico do genocídio de indígenas na qual, diga-se de passagem, o pai de Kast, alemão que foi filiado ao partido nazista e de quem se desconhecem as atividades durante a II Guerra, comprou terras ao chegar ao Chile, em 1951. Assassinatos e incêndios criminosos mesclam-se confusamente a atos de protesto de povos indígenas e muitos apontam nesta situação, que motivou a intervenção militar na zona iniciada em outubro passado, o envolvimento de narcotraficantes.

 

 

Diante da complexidade de tal cenário, Boric faz atualmente uma caravana em ônibus pelo interior do país, em regiões nas quais foi ultrapassado de longe por Kast e por um candidato antipolítica, Franco Parisi – que vive nos Estados Unidos e não veio ao Chile para os debates e nem mesmo para a votação, pois aqui seria preso por falta de pagamento de pensão alimentícia, mas obteve no primeiro turno o inesperado número de quase 900 mil votos em um total de pouco mais de 7 milhões. Já Kast, que no último debate televisivo antes do primeiro turno chegou a encarnar, estrategicamente, o bonachão que nem sequer conheceria os detalhes de seu programa de governo (que traz, entre outras medidas, a diminuição dos impostos pagos por grandes empresas), modula com astúcia o discurso de intolerância e conservadorismo que inclui negacionismo das questões ecológicas e construção de um muro nas fronteiras com a Bolívia e o Peru para evitar a entrada de drogas e imigrantes ilegais, além de prometer plenos poderes para o executivo na prisão de “extremistas de esquerda”. Seu principal ato de campanha para o segundo turno foi uma surpreendente viagem-relâmpago a Washington, no dia 30 de novembro, com agenda confidencial, salvo encontro com o senador estadunidense da ala republicana ultraconservadora Marco Rubio, vice-presidente do Comitê Seleto de Inteligência do Senado, sabidamente envolvido na articulação de bloqueios econômicos e atividades militares e golpistas em Cuba, Venezuela e Nicarágua. Posteriormente, Kast afirmou ter ido também encontrar investidores, ressoando indiretamente uma das fake news mais difundidas atualmente, segundo a qual os investidores internacionais deixarão o país caso Boric seja eleito.

No penúltimo debate televisivo, dia 10 de dezembro, Kast mostrou-se bastante agressivo, sobretudo na caracterização do candidato de esquerda como alguém que teria defendido a violência do estallido e cometido abuso sexual (extrapolando a embaraçosa acusação de assédio que surgiu contra Boric durante a campanha). Este, por sua vez, reiterou o compromisso de reforçar a educação pública, afirmou que os chilenos estão cansados de disputas entre esquerda e direita e que um de seus principais objetivos será o de lutar por chegar “a transformações com amplos acordos” que permitam, por exemplo, que melhore o modelo de aposentadoria do país, uma das principais reinvindicações dos protestos. Mas os slogans por segurança de Kast, em um país que pretensamente se teria tornado uma terra “de bandidos”, talvez atinjam mais diretamente pessoas para quem a política se resume à existência de um pai forte, frente à desgastada ideia de representatividade.

No próximo domingo, dia 19 de dezembro, joga-se mais uma partida da dramática história chilena – e latinoamericana. Esperemos que os clamores populares por justiça social não terminem por se distorcer a ponto de impulsionar regimes ultraliberais e conservadores, como aconteceu na história recente de vários países e especialmente no Brasil. Torçamos para que tenha razão o graffiti feito durante as primeiras semanas dos protestos de 2019 na parede do Palácio de Belas Artes de Santiago: “No nos borrarán”. Não nos apagarão.