O que se escuta poeticamente em nossa língua faz escrita e ato que chama ruptura e mudança.
As ruas ganharam novamente voz vivificante, com inúmeras manifestações em que o “Fora Bolsonaro” vem sendo gritado ao longo deste ano pelo povo, por nós, em diversas declinações.
Uma delas, que vem circulando em diferentes artes pelas redes sociais[1], me chamou a atenção e me fez cantar. “Acabousonaro”. Como não lembrar e cantar o zun-zun dos Novos Baianos em “Acabou Chorare[2]”? Como não desejar o fim das lágrimas e se colocar ainda mais intensamente em movimento para criar com nossa língua brasileira e nossos corpos em luta um basta ao horror desse governo que desdenha da dor inominável de mais de 616 mil vidas perdidas e famílias devastadas em nosso país?
Como não pensar na poesia concreta – politicamente concreta – de Augusto de Campos[3]:“JA IR / JA FOI / JA VAI / JA ERA / JAIR”?
Ainda, como não se lembrar da verdade dita por um imigrante haitiano em março de 2020 a Jair Bolsonaro: “Você não é presidente mais”.
Acabousonaro. Grito novo que abre brechas na linguagem, colocando lalíngua em primeiro plano, e que exige uma quebra radical com o que o bolsonarismo condensa. Acabousonaro invoca uma subversão com a herança caduca da lógica colonialista, invasora, escravocrata e de tráfego de vidas humanas.
Como em outros momentos da nossa história recente, a criação com a linguagem, e com os efeitos lalinguajeiros desta, se faz presente trazendo à cena um caminho para a retomada da democracia. Nossa aposta é que seja uma democracia utopicamente brasileira, pautada na coexistência de singularidades.
Faço aqui um parênteses. Nossa língua brasileira não tem a mesma base lalinguajeirado português europeu. Lélia Gonzales já defendia, décadas atrás, que nós falamos pretuguês[4]. Nossa língua não é a europeia patriarcal colonialista do século XVI nem tampouco o português falado atualmente em Portugal, marcado pela ditadura salazarista e por uma reinvenção democrática, não sem crises ou dificuldades estruturais.
Nossa língua brasileira é língua viva, afro-brasileira, indígena-brasileira, periférica-brasileira, imigrante-brasileira, latinosulamericana… Língua viva construída pela diversidade.
Assim, o que dela ouvimos quando ainda estamos sendo marcados pela linguagem para nela advir é da ordem de uma lalíngua materna banhada na sonoridade musical de diversas línguas que ecoaram umas nas outras constituindo nosso idioma atual comum. Idioma sempre em transformação que carrega história dita e não dita, memória que insiste desses ditos e não ditos. E que precisamos urgentemente dizer e deixar dizer.
E é com a força da nossa língua brasileira que estamos tomando voz no presente para ir às ruas construir uma democracia antirracista, descolonial, inclusiva. Pela vida.
Notas:
[1] Não consegui identificar o autor desta bem achada contração poética.
[2] https://osnovosbaianos.wordpress.com/2011/08/02/acabou-chorare-a-verdadeira-historia/
[3]https://www.instagram.com/p/CQTY3f3HLXF/?hl=fr
[4]GONZALEZ, Lélia. “A categoria político-cultural deamefricanidade”.Tempo Brasileiro, nº. 92/93, Rio de Janeiro, jan./jun.1988.