O filme Melancolia (2011), de Lars Von Trier, nos conta sobre o antagonismo dos sentidos de vida de duas irmãs. O diretor reparte a película em dois momentos, cada um com os nomes das respectivas personagens. A parte um chama-se Justine, a mais nova, e trabalha com foco maior na personagem que personifica, dentro de uma sociedade da imagem, do consumo como valor universal de felicidade, aquela que fura, com sua falta de sentido, toda essa convocação contemporânea de brilhantismo. O ritual de casamento de Justine é um desastre e as relações que a cercam parecem impor o uso de uma máscara teatralizante marcada por um sorriso em rostos acinzentados. Ela e sua irmã, Claire, são o avesso uma da outra e por isso a cada encontro, sobretudo Claire, se assombra com o desdém da irmã quanto a tudo que a primeira valoriza, no caso, uma vida mínima vendida em mercadorias, na qual tudo ganha uma embalagem atrativa, uma promessa de gozo. Justine resiste, insiste em não acreditar nessa vida regida pelas imagens-fluxos do Mercado. Alguns olhos podem, no sentido de uma completa desindentificação com o Outro[2] capital, restando apenas um vazio inenarrável, colocar a personagem em uma posição melancólica. Não existe nada que pareça alimentar Justine de sentidos nisto que se chama vida. É um desânimo de viver…
A parte dois predomina o desmoronar dos territórios existenciais tão bem edificados por Claire, seus sentidos vão se esvaziando à medida que um planeta inesperado colide com a terra, destruindo seu mundo. Neste segundo momento, Claire vai ficando cada vez mais desesperada, pois se sustentou em vida a partir de verdades compradas, por convenções sociais que apontavam para um norte que seguia de maneira sobreimplicada[3]. Desamparada como uma cordeirinha sem pastor, a cada minuto da segunda parte do filme, mostrava sua incapacidade de abraçar esse destino que se impôs de maneira inesperada. Como uma marionete que só se mexe com as mãos de um Outro, acaba paralisada para lidar com a falência do que a governa e que lhe oferecia, até então, um caminho restrito mas seguro a seguir. Morre antes mesmo do mundo desaparecer…
O detalhe é que nesta última parte da obra cinematográfica, Justine começa a se habitar de promessa de vida, a falência dos sentidos do mundo a partir da aproximação de seu fim a enche de potência. Com absoluta coragem se entrega a este inesperado que faz despencar mundos. Justine, antes melancólica, se transfigura em uma personagem trágica-utópica: nunca amou tanto um destino[4]que a invadia e, ao mesmo tempo, pisava com força no terreno que sempre habitou, no caso, a negação desse lugar que até então a sujeitava a viver quando enlaçada pelas convenções sociais. Nunca acreditou no mundo que a vendiam, sua transferência para este discurso do capitalista há muito tempo estava liquidada[5] e, vislumbrar sua decadência, o desaparecimento de um enlace que somente a enforcava, trazia o maior dos alívios.
Resgato este clássico do cinema para pensar as circunstâncias que se abatem sobre o nosso mundo na atualidade. Creio que temos algo similar ao filme e ao mesmo tempo inesperadamente singular acontecendo. O mundo parece desmoronar sobre nossas cabeças, não por um planeta em colisão com a terra, mas por um vírus gripal. O real[6] emudeceu as possibilidades discursivas, e parece que uma ressaca marítima transbordou as margens da praia e levou consigo todas as pegadas[7], os direcionamentos que sustentavam os caminhantes. Temos um espaço liso[8] para deslizar, para habitar, uma convocação para a invenção de novos passos-mundos nos faz questão. Em outras palavras, essas mais freudianas, o desamparo[9] retornou com toda força que lhe cabe, e talvez, não à toa, alguns pastores se negam a fechar seus templos e mitos resistem a pisar no terreno da realidade. Temos uma ameaça eminente de desnorteamento, com a qual, sobretudo aqueles que se autonomeiam pastores ou mitos, ficam desesperados. Como demônios exorcizados ficam a se debater e a gritar suas palavras de ordem caducas.
Contudo, e o mais importante a destacar, é que cada um, em suas prisões domiciliares pela quarentena, assinada ou não pelos chefes de estado de cada país, tem a possibilidade de se sentir um bocado patético por sustentar e se assujeitar a este mundo que prioriza o mercado e não as pessoas. A Claire de cada um se apresenta espantada com a falência de um sistema que nunca esteve voltado para as pessoas, afinal, já nos avisara Marx[10] e Lacan[11], o Estado é apenas o balcão de negócios da burguesia e é para isso que ele opera, com o qual participamos no papel de servos, sem possibilidade de desejar. A constatação de que este mundo está a ruir nos assombra, esquecê-lo não é fácil, a praia está lisa de pegadas, mas não há muitos transeuntes a se arriscarem a percorrê-la no momento… quem dará o próximo passo?
Quem dará e mesmo como será este passo, talvez, no momento, não importa tanto, pois temos que primeiramente aprender a lidar com a angústia novamente, a sustentar essa posição de não saber, do deserto de pegadas e destinos, da vontade de nada que o capitalismo nos roubou para gerenciar como instituição norteadora da vida na atualidade. Quem sabe, sem a sustentação de um passado destronado, rabiscar futuros se fará possível? Intuo que estamos sendo convocados a deslizar por outras experiências de relações sociais a partir dessa desaceleração da vida que nos tomou. Cidades estão menos poluídas, em Veneza, por exemplo, em seus canais antes tomados por uma coloração escurecida e fétida, se vê peixes em águas esverdeadas. Será que nós, humanos, também não podemos aproveitar essa onda para nos despoluirmos um pouco de nosso mestre? O momento é de convocação da humanidade à produção desejante de movimentos que nos distanciem a tal ponto do sistema capitalista que não consigamos mais lembrar o caminho de casa. Perdidos e cambaleantes, caso tenhamos a coragem de Justine de não ficar pregada em nenhuma cruz, poderemos presentear a deusa Gaia com uma humanidade mais inventiva, solidária e humilde. Colisão sem volta.
[1]Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Doutor em Psicologia Social e Institucional pela universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[2]Lacan, Jacques. (1960-1961). O Seminário, livro 8: a transferência. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira de Dulce Duque Estrada; revisão de Romildo do Rêgo Barros]. Segunda Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
[3]Passos, Eduardo & Barros, Regina Benevides de.. Pista 1: A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Passos, Eduardo; Kastrup, Virgínia & Escóssia, Liliana (Orgs). Porto Alegre: Sulina, 2009.
[4]Nietzsche, Friedrich. (1883). Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[5]SAFATLE, Vladimir. Lacan, revolução e liquidação da transferência: a destituição subjetiva como protocolo de emancipação política. In Estudos Avançados 31 (91), 2017.
[6]Um dos três registros que constituem a realidade humana na teoria lacaniana: o simbólico, o imaginário e o real, sendo este último compreendido como aquilo que não vinga nomes, lugar sinalizado pela angústia, vazio de significantes, o inapreensível que resiste em ser furado pelo registro do simbólico, mas que também é fonte de invenção do sujeito.
[7]Sousa, Edson Luiz André de. A burocratização do amanhã: utopia e ato criativo. Porto Alegre (UFRGS), v. 24, p. 41-51, 2008.
[8]Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 5; tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: ED 34, 1997.
[9]Freud, Sigmund. (1930). O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. Tradução Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[10]MARX, Karl & ENGELS, F. Manifesto comunista. Org. de Osvaldo Coggiola. Quarta reimpressão. São Paulo: Boitempo, 2005.
[11]Lacan, Jacques. (1959-1960). Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira Antônio Quinet]. Segunda Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 2008.