Edson Luiz André de Sousa
Para Tania Galli Fonseca
“ Encontrar palavras para aquilo que temos diante dos olhos é qualquer coisa que pode ser muito difícil. Mas, quando chegam, batem com pequenos martelos contra o real até arrancarem dele a imagem, como de uma chapa de cobre”
Walter Benjamin
San Gimignano
Imagens do Pensamento
Se seguirmos o espirito deste potente fragmento benjaminiano constatamos que nosso desafio é encontrar palavras depois da destruição. Retornar para perto dos escombros e ir pacientemente tentar ler as cinzas que ainda ardem. Compromisso que temos de testemunhar o que dizem estas bocas de cinza, que tentam deixar rastros, resistindo ao apagamento e assim, nos ajudando a reorientar nossa navegação. Mas quem ainda está disposto a ler o texto destas cinzas? Elas nos queimam os dedos, os olhos, a alma. Mas seria possível recolher estes vestígios, arrancar esta palavra sem colocarmos os pés nas ruinas? A pergunta que se impõe é portanto: que imagem é capaz de nos deter, de cavar um espaço de memória e escuta nos comprometendo com a função do testemunho?
É esta a função de um MEMORIAL, uma espécie de ruído de fundo perturbador que injeta desordem na ordem e progresso. Memorial como um ato de AMOR a verdade e a história, palavra que faltou no lema da bandeira brasileira, já que a inspiração positivista de Augusto Comte dizia literalmente: “O Amor por principio, a ordem por base e o progresso por fim.” Jards Macalé canta parte desta história na sua canção POSITIVISMO. Amor com suas lágrimas de Eros como uma estrela em chamas, dentro do coração das trevas destes tristes trópicos.
Alguns anos atrás, em uma viagem a Bogotá, conheci Juan Manuel Echavarria, artista colombiano que concebeu um trabalho comovente intitulado justamente Bocas de Cinza. O trabalho consistia em filmar os relatos trágicos de algumas vitimas da guerra colombiana. Ele percorreu grande parte da Colômbia recolhendo a história de alguns sobreviventes que narravam torturas, assassinatos de familiares e amigos através de canções. A câmera parada em close, as palavras entoadas em melodias/tristes nos contavam histórias soterradas. Nomearia estes trabalhos como MEMORIAIS MINIMALISTAS. Surgem isolados, tímidos, por vezes pela iniciativa de uma única pessoa, salvando assim o acontecimento de sua destruição e apagamento. Mas o Memorial só se instaura se a testemunha der forma e voz àquilo que presenciou. Surgem, portanto como pequenas nuvens de fumaça que apontam os responsáveis da destruição e o desespero e dor dos que sucumbiram.
Palavras para um Memorial que tentam recuperar tantos lugares apagados de história. Nuvens de palavras densas pedindo passagem e abrigo, como as nuvens de Berndnaut Smilde. Estes vapores de esperança anunciam uma história por vir. Estas nuvens estão ali para serem recolhidas e multiplicadas por novas testemunhas. Testemunhar implica reconstruir linguagens, redesenhar gramáticas, inventar novos significantes. Surgem, portanto, sempre de forma inesperada e necessariamente como perturbação. Um Memorial não traz a narrativa definitiva mas antes nosso em falta com a imagem. Memorial como revolta diante do silêncio imposto pela violência de Estado. Memorial como causa de desejo, acionando nosso compromisso diante da dor dos outros como evocou Susan Sontag . Nesta insistência de honrar o acontecimento rasurado quem sabe estas nuvens solitárias não se aproximam uma das outras e teremos então a chance de uma tempestade que venha lavar e remover a lama do esquecimento. Será uma tempestade de linguagem, palavras para um memorial, com também o fez Javier del Olmo, artista argentino que recupera a imagem e a memória dos 43 estudantes mexicanos assassinados em 2014 pelas forças policiais quando se dirigiam a cidade do México para a passeata comemorativa do levante de outubro de 1968.. Ele reconstituiu a imagem de cada um deles com o nome da cidade que viviam AYOTZINAPA.
A prática psicanalítica desde Freud tem mostrado que podemos abrir novos horizontes se tivermos a chance de redesenhar nossas narrativas de vida. Dori Laub, em um artigo intitulado “um evento sem testemunha: verdade, testemunho e sobrevivência” [2]propõe três níveis de testemunho. 1. Testemunhar o evento traumático como participante direto. 2. Testemunhar a experiência traumática de outros. 3. Testemunhar o próprio processo de construir testemunho. É nesta ultima direção que quero me deter um pouco em minha reflexão, na medida em que pensar sobre o testemunho implica ampliar nossa gramática de leitura dos rastros.
O Brasil carece de memoriais. O sangue é rapidamente apagado. Contudo, nestas horas é fundamental evocar a força de resistência de alguns que não fecham os olhos e bocas diante do horror. Se temos ainda alguma esperança de um futuro certamente ela se deve aqueles que não abandonam seus mortos e cuidam das narrativas que ficaram interrompidas. Memoriais mínimos como esta cena protagonizada por Camila residente no complexo do alemão e seus quatro filhos. Cada um trazendo o nome de uma criança assassinada neste ano de 2019. Todas negras, mortas em operações da Policia Militar.
Kauê Ribeiro dos Santos, 12 anos, foi morto com um tiro de fuzil na cabeça em 7 de setembro de 2019, durante operação da Policia Militar no Complexo do Chapadão no Rio de Janeiro
Kauan Rosário, 11 anos, foi atingido por um tiro em ação da Policia Militar em Bangu, Rio de Janeiro. em 16 de maio de 2019.
Kauan Peixoto, 12 anos, morreu baleado durante ação da Pollicia Militar na comunidade de Chatuba em Mesquita, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, em 18 de março de 2019.
Jenifer Cilene Gomes, 11 anos, baleada com um tiro de fuzil no peito quando voltava da escola em 14 de fevereiro de 2019 em triagem no Rio de Janeiro.
Agatha Felix – 8 anos, assassinada com um tiro de fuzil quando estava dentro de um Kombi com sua mãe em ação da Policia Militar no Complexo do Alemão em 20 de setembro de 2019.
Sabemos que esta lista de nomes é imensa, remonta a história ainda viva da escravidão neste país , do racismo que herdamos e que está assustadoramente vivo em grande parte da população brasileira. Nosso futuro está em imagens como esta, um Memorial Mínimo, que é capaz de virar as costas para o monumento símbolo do Rio de Janeiro para mostrar nestes singelos cartazes, que eu nomearia como anti-monumentos, o texto das cinzas que não podemos esquecer. Mas que imagens são capazes de nos fazer parar?
Vejamos outra cena, que vou apresentar nesta imagem, a qual também considero como um Memorial Mínimalista.
Um furo no meio da bandeira, entre a ordem e o progresso funciona como um olho testemunha no enterro de Luciano Macedo no Cemitério do Caju.
Esta cena começa em um dia de domingo, 7 de abril deste ano. O músico Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos saía de carro com sua família para festejar um aniversário de criança em Guadalupe, na zona norte do Rio de Janeiro. Estava com sua esposa, seu filho de 7 anos e seu sogro. Ao passarem por um controle policial de soldados do exército são alvejados com 257 tiros sem nenhuma sinalização ou advertência (ficou conhecido como os 80 tiros), o que foi comprovado por inúmeras testemunhas. Simplesmente, foram “confundidos” com assaltantes que minutos antes haviam realizado um assalto na região e que fugiram em um carro de cor branca. O carro era branco mas o motorista era negro, o que não é indiferente neste relato. Mas vamos ver detalhadamente este acontecimento pois este nos indica que um episódio desta natureza segue a lógica da necropolítica, sustentada por discursos de autoridades públicas. O que fez com que os dez jovens soldados atirassem de forma irresponsável no pequeno carro popular branco, comprado a prestações por Evaldo? Atiraram com convicção e certamente alimentados por todos os discursos de seus governantes elogiando e estimulando policiais e militares a abaterem bandidos. Poderíamos estar diante do filme de Francis Ford Coppolla Apocalipse Now, versão para o cinema inspirado no Coração das Trevas, de Joseph Conrad, mas não, é um domingo de sol no Rio de Janeiro. Depois do massacre, um catador de papel, Luciano Macedo, tenta socorrer o menino de 7 anos, que sai de dentro do carro vendo o pai ensanguentado. Ele é alvejado também e morre uma semana depois. Pouco se fala dele e sabemos que foi enterrado em um cova comum no cemitério do Caju. Deixou a esposa que estava grávida de seu primeiro filho de 5 meses. Mas na figura de Luciano resgatamos o que ainda resta de humanidade nesta barbárie, o valor da solidariedade, em uma cena da mais atroz selvageria. Este detalhe do gesto deste humilde catador, tentando “recolher” o que ainda restava de vida neste cena me parece crucial nesta narrativa. Eram 12 os soldados e o primeiro tiro foi disparado pelo único oficial em cena, um tenente. Depois dele, seguiram os disparos insanos, de seus subordinados. Vemos aqui novamente o chefe autorizando o massacre. Mas, o que segue é ainda mais terrível. Quando Daiana Horrara, mulher de Evandro pede desesperadamente ajuda aos militares, estes debocham dela atestando assim um desprezo pela vida. Ali neste gesto, a ampliação em larga escala do que escreve Achille Mbembe da soberania assassina e sua necropolitica, decidem quem deve viver e quem deve morrer.
Pouco tempo depois, diante da repercussão do fato, o Comando Militar do Exército emite nota pública dizendo que o exército havia reagido a uma “injusta agressão”. Tentaram, em primeiro momento, justificar o crime como uma reação “legitima” a um carro de bandidos. Então, se fossem os criminosos em questão, este crime se justificaria? Pena de morte sem processo, sem julgamento? A reação seguinte das autoridades foi, então, de lamentar o acontecimento, sem a ênfase que a cena mereceria. Bolsonaro, sempre o primeiro a se manifestar em episódios como estes, quando criminosos são mortos, silenciou. Seis dias depois, fez uma polêmica declaração: “O Exército não matou ninguém, não, o Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de ser assassino não. Houve um incidente, houve uma morte. Lamentamos a morte do cidadão trabalhador, honesto, está sendo apurada a responsabilidade”. Sim, responsabilidade apurada por Tribunal Militar desde que o presidente Michel Temer sancionou uma lei em 2017 transferindo a esfera judicial deste tipo de crime, da justiça comum para a justiça militar, ou seja, eles serão investigados e julgados por membros da própria corporação.
Precisamos urgentemente multiplicar memoriais neste país para que a geração que virá depois de nós possa ler as cinzas de nosso tempo. Imagino que alguns de vocês tenham presente o depoimento de Claudio Guerra, ex-delegado do DOPS a Comissão Nacional da Verdade sobre a Usina de Cana de Açúcar de Cambahyba em Campo de Goitacazes no Rio de Janeiro onde foram incinerados dezenas de corpos de presos políticos. Claudio Guerra conta detalhes de todas estas operações no livro publicado em 2012 “Memórias de uma guerra suja”. A maioria dos corpos vieram das sessões de tortura da casa da morte em Petrópolis, que alias foi tombada pelo conselho municipal no final do ano passado. Entre os mortos que foram incinerados por Claudio Guerra estão Ana Rosa Kucinsky e seu companheiro Wilson Silva. Ana Rosa era professora da USP e irmã do jornalista Bernardo Kucinsky que muito escreveu sobre este desaparecimento nos livros K e “Você vai voltar para mim”. Também foram incinerados ali dirigentes históricos do PCB como João Massena Mello, Luiz Ignácio Maranhão, David Capistrano e Fernando Santa Cruz Oliveira, pai do atual presidente da OAB.
Em março deste ano parte da Usina foi destruída e o Ministério Público do Rio de Janeiro abriu investigação para identificar os responsáveis. Estes atos de barbárie são uma espécie de segunda morte, um assassinato da memória e tudo isto acontecendo sob os nossos olhos. A trama é macabra e vou poupar vocês dos detalhes da descrição desta operação mas que pode ser visitada na internet na documentação da Comissão Nacional da Verdade ou neste livro de Claudio Guerra. Uma usina de cana de açúcar: herança colonial, de um Brasil escravocrata atualizando as lógicas de poder dos senhores de engenho. A usina de Cambahyba, hoje abandonada, pertencia a família de extrema-direita de Heli Ribeiro Gomes, vice-governador do estado do Rio no período de 1967 a 1971. Amplamente comprovada os benefícios que a família recebia pelo serviços prestados. Os corpos chegavam em sacos, muitos já mutilados. Escreve Claudio Guerra. “O forno nunca era desligado e as operações passaram a ocorrer no fim do expediente. Os resíduos virados em pó no forno da usina eram jogados numa piscina, que , na verdade, era um poço de vinhoto, resíduo da cana-de-açúcar, hoje usado para fazer adubo.” (p. 52)
Lógica de apagar os rastros, mas iremos sempre buscar as cinzas onde estiverem. A destruição que vivemos e viveremos nos próximos anos será extrema. Vamos precisar multiplicar memoriais, inventar novas estratégias de memória, multiplicar museus como o nosso Museu das Imagens (in)possíveis que vocês conhecerão logo em seguida. Criaremos espaços de vida nas frestas, nos buracos destas bandeiras, nas esquinas dos cemitérios, nas chaminés em ruinas. Precisamos inventar novos memoriais como fez o artista
no trabalho Operação Tutoia. Ele se apresentou na delegacia como um agente da secretaria de cultura do estado de São Paulo como voluntário para cuidar do jardim da delegacia de policia da Rua Tutoia, onde funcionou o Doi-Codi (Destacamento de operações de informação – Centro de Operações de Defesa Interna). Trabalhou durante dois anos plantando só folhagens vermelhas. Seu jardim de sangue só foi destruído dois anos depois.
Nossos memoriais minimalistas quem sabe se multiplicarão. Reuniremos estas nuvens de memória onde estiverem e quem sabe traremos chuva que façam florescer novas folhagens vermelhas neste deserto que atravessamos. Vamos precisar revisitar todas estas imagens no detalhe, e encontrar as palavras que ainda faltam como o fez Harun Faroucki em seu trabalho “ A prata e a cruz” . Ali ele relê a história da violência colonial a partir da pintura “Descrição de Cerro Rico e da Cidade Imperial de Potosi” do Gaspar Miguel Berrio em 1758. O principio do amor à verdade como furo entre a ordem e o progresso.
[1]Trabalho apresentado no Congresso da APPOA , O Espirito de nosso tempo, em novembro de 2019
[2]LAUB, Dori. “ An event without a witness: truth, testimony and survival” in: FELMAN, Shoshana. Testimony, crises of witnessing in literature, psychoanalysis and history. Routledge, New York, 1992.