Quando o normal é o patológico ou como Dellagnol, Moro e Bolsonaro planejam por fim à democracia brasileira, levando com ela suas instituições jurídicas e corpos e sangue de brasileiras e brasileiros vítimas da incitação ao crime, à bestialidade e à ilegalidade. Por Paulo Endo

 

Reprodução de diálogo publicado no UOL (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/esquerda-ira-a-conselho-contra-deltan-e-vem-pra-rua-defende-chefe-da-lava-jato.shtml):

 

Deltan Delagnoll

20:25:21

Vc (se refere a sua esposa Fernanda Dellagnol) e Amanda do Robito estão com a missão de abrir uma empresa de eventos e palestras. Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade…

 

20:25:51

Vcs não vão ter que trabalhar. Contratam uma empresa pra organizar o evento

Ainda em dezembro de 2018, os procuradores Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon criaram um grupo para discutir com as esposas a criação de uma empresa para organizar eventos e palestras

 

Dellagnol aquele que quer se locupletar em cima de suas funções de procurador público fez o que fez nas barbas e/ou com apoio de vários membros do MPF. Por incrível que pareça, ainda hoje o MPF blinda Dellagnol como pode, a despeito de todas as revelações da Vaza Jato; da confirmação por importantes órgão da imprensa brasileira e mundial da veracidade das mensagens; da manifestação de parte de juízes e procuradores sobre a insustentável posição de Moro e Dellagnol no comando de instituições e ações estratégicas do governo federal. Chega a ser trágico quando ouvimos Raquel Dodge, a procuradora geral da república manifestar em nota que Dellagnol é inamovível de seu cargo e função conforme trecho de nota emitida pela procuradoria geral da união no dia 02/08/2019:

Mais do que isso, esclarece que o princípio constitucional da inamovibilidade é garantia pessoal do Procurador Deltan Dallagnol, estabelecida no artigo 128-I-b, de não ser afastado dos processos da Lava Jato, dos quais é o promotor natural, na condição de titular do ofício onde tramitam todos os processos deste caso, e junto do qual atuam os demais membros da Força Tarefa Lava Jato, designados pela Procuradora-Geral da República Raquel Dodge.

Palavras como inamovibilidade, garantia pessoal, promotor natural soam vexaminosas, quase escandalosas, porque parecem querer impor regras e leis internas sobre a decência, sobre os interesses nacionais e sobre a função pública das instituições jurídicas e daqueles que ocupam cargos públicos. Palavras temerosas e apressadas que saem na defesa do corporativismo e que lutam para escamotear o imenso risco que correm as instituições brasileiras e a democracia, que hoje se vê manchada e flagrada, não apenas pela imensa rede corrosiva montada e chefiada pelo procurador da vaza jato, mas pelas instituições e pessoas que teimam em protegê-lo, quando  deveriam zelar pelo mínimo irrisório de justiça e de democracia num país tão carente delas.

Diante de tudo o que já é sabido a pronta defesa de Dellagnol, seus amigos do MPF e, por tabela, do ex-juiz Moro revela que até pessoas bem orientadas e aparentemente de espírito democrático estão sendo arrastadas para um fosso que manchará para sempre suas biografias.

Muitos supostos democratas adoram usufruir da democracia, mas não estão tão dispostos a defendê-la quando ela corre risco. Nesse momento critico se esperaria bem mais da Procuradora Geral da República. Chega a ser desesperador observar, no comportamento de pessoas em postos chaves, o que o corporativismo fez e ainda pode fazer ao país. Mas Raquel Dodge continuará defendendo Dellagnol após a publicação de que o procurador tinha uma estratégia clara para “queimá-la” na imprensa?

Olha só o Dellagnol em ação outra vez e suas estratégias para pressionar Dodge:

‘Temos opções a) pressionar usando imprensa em off – vi que saiu algo, mas acho que foram advogados – podemos pressionar de modo mais agressivo pela imprensa, subindo nível de críticas b) fazer, interpretando regra de foro para excluir mandatos anteriores e o que fugir disso mandamos pra ela – (teríamos que falar com JF – se concordar, ok; do contrário, podemos até fazer sem concordância, ele remeterá para o STF e voltamos a A, mas sabemos que não teremos boa vontade ) c) dar deadline pra resposta dela ou seguiremos por B d) aguardar (sem reclamar rsrsrs)” (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/09/barraco-tem-nome-e-sobrenome-raquel-dodge-dizem-procuradores-em-chats.htm)

O STF que, durante todo esse tempo era perseguido e achacado pela banda podre do MPF, e que testemunhou as injustiças praticadas em nome de um projeto político de poder, só agora cogita reagir. E o MPF reagirá?

Só agora que, com o apoio das mensagens vazadas, percebem onde o medo das ameaças os levou. Ele os conduziu a serem eles mesmo vítimas do que hesitaram para evitar. São esses os órgãos que tinham o poder e a função de zelar pela constituição, mas não raro a estão deixando à míngua e completamente vulnerável.

Aguardaram até o momento em que a constituição, ofendida e em farrapos, batesse às suas portas, cobrando-os por a terem tratado como abstração, generalidade e matéria técnico jurídica a ser examinada. Tudo isso revelado graças aos hackers  republicanos que colocaram a nu o modus operandi de boa parte dos operadores do direito do país.

A constituição pode e deve proteger vidas e impedir o avanço de atrocidades, desde que os que tem a função de defendê-la se reconheçam nesse papel republicano. Nesse momento essa bola está com os hackers, que a todo custo o governo deseja criminalizar, e com a imprensa livre.

 A constituição somos nós, como dizia Joseph Beuys sobre a revolução. A revolução somos nós, está em nós, se move quando nós nos movemos e estanca quando nossos passos hesitam. Mas ela, a constituição brasileira, ainda é o frágil dique que impede que um tsunami de monstruosidades anunciadas pelo atual presidente avancem sobre o país, acompanhadas por uma pororoca de crueldades anunciadas, da propagação e incentivo à violências e à apologia da ignorância e da bestialidade.

Enquanto o atual presidente usa e abusa de sua evocação ao que há de pior no espírito humano, uma horda de seguidores cegos se alimenta e age com seu assentimento e/ou contando com sua omissão.

Cada vez que um indígena brasileiro é assassinado é o coração do país que é atingido, sua história e os elementos de cultura que, consciente ou inconscientemente, forjam as vidas, os hábitos e os sonhos de brasilidade que buscamos enaltecer e construir,  num país quem sabe orgulhoso e honesto de seus próprios valores e de sua gente. Mas nesse governo todas os povos e etnias indígenas tem de lutar para existir.

Aumentam no país os crimes cometidos por policiais; governadores assanham-se para matar populações periféricas se utilizando de helicópteros; massacres sanguinários nas penitenciárias são tolerados; perseguição à imprensa livre e à livre manifestação de artistas o Brasil se tornaram corriqueiros. Sim o Brasil está sendo pintado de vermelho. Mas com o vermelho de sangue dos brasileiros que o atual governo assiste com escárnio apoiando ou fazendo vistas grossas às práticas mais cruéis conhecidas. Contudo quem faz tudo isso no miúdo não é Bolsonaro, são os seus seguidores que ele atiça com seu megafone todos os dias.

Deltan, de outro lado, mas na mesma direção, contudo, revelou-se muito mais deletério do que o presidente eleito. Fez tudo com esperteza, sagacidade, senso de oportunidade e só fazia estardalhaço cirurgicamente. A equação é simples embora as consequências sejam muito complexas:  deltans + moros + conivência institucional = bolsonaros

Esse procurador, desconhecido até a operação vaza-jato ganhar o estrelato, colocou o país em risco e ridicularizou todos os operadores do direito e suas instituições. Ainda assim, por mais inacreditável que pareça, é inamovível de seu cargo. Se assim de fato for, porque de direito parece que é segundo o MPF, é a institucionalidade democrática, naquilo que ela conta com as instituições jurídicas e suas leis internas que está sob risco. Basta lembrar que o primeiro pedido de investigação sobre Dellagnol foi arquivado em junho desse ano pelo corregedor nacional do Ministério Público Orlando Rochadel. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/conselho-do-ministerio-publico-arquiva-investigacao-contra-deltan-no-caso-moro.shtml?loggedpaywall

 As instituições jurídicas do país tem agido perigosamente diante de suas mais egrégias tarefas. Os ministros do Supremo, acuados, seduzidos ou rendidos conforme vem ficando claro com os vazamentos do The Intercept, só agora, após ficar claríssimo que o procurador Dellagnol fazia verdadeira devassa na vida privada de Toffoli e Gilmar é que parecem, talvez e tomara, ter resolvido defender a constituição brasileira contra os ataques governamentais. Quando perceberam que violá-la atinge a própria esfera privada na qual, antes, eles mesmos se consideravam seguros.

Num só dia, após o recesso o STF, é devolvida a demarcação das terras indígenas à FUNAI;  Fux deu prazo de 48 horas para a Polícia Federal entregar material apreendido na Operação Spoofing; foi suspensa a investigação fiscal aberta pela Receita Federal contra 133 contribuintes; foram mantidas as  demarcações de terras indígenas com a Funai, derrubando MP do presidente Jair Bolsonaro. Além disso, nos últimos dias o STF rejeita por 10 a 1 o pedido de transferência do ex-presidente Lula para as mãos do inventor de rações para pobres João Dória, que já ameaçava e fazia piada com Lula pelas redes, antes mesmo de saber da decisão do Supremo; por unanimidade, os ministros rejeitam pedido de mudanças conservadoras no ECA. Tudo isso mostra a potência e a importância que o STF tem e terá nesse momento decisivo do país.

Esperança?

Os 11 ministros assumirão o papel exemplar que lhes compete fazendo o contrapeso dos péssimos exemplos dados pelo governo e membros da operação lava-jato? O STF será capaz de dar o mesmo exemplo para os que prezam a democracia e o estado de direito que Bolsonaro e os seus estão dando para os que a desprezam?

 

Quando o normal é patológico

Voltando ao procurador Dellagnol.

Recordemos que, em resposta às primeiras notícias  vazadas e publicadas pelo Intercept, a assessoria de imprensa da procuradoria do Paraná afirma em nota:

“Palestras remuneradas são prática comum no meio jurídico por parte de autoridades públicas e em outras profissões.” (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/esquerda-ira-a-conselho-contra-deltan-e-vem-pra-rua-defende-chefe-da-lava-jato.shtm)

Como se os delitos do procurador fossem apenas palestras remuneradas. Pior, como se coubesse à procuradoria se manifestar apenas sobre as tais palestras. Tudo, absolutamente tudo passa a ser normal quando os autores são os membros do governo e do grupo da lava-jato. A nova narrativa apregoada pelo novo governo é a de que todos somos criminosos, violentos, desrespeitadores da lei, etc. Ou seja todos somos joio. Não há trigo.

Nunca no Brasil se tentou definir o cidadão brasileiro de forma tão baixa e degradante, como se todos fossem incapazes de aspirações que não sejam animalescas e bárbaras. As ações do atual governo e as frases do atual presidente da República, de sua prole e de seus ministros defendem publicamente que tudo que era inadmissível, indigno e degradante antes passou a ser desejável, normal, natural e permitido.

Ou, se quisermos, entre o desejo e o ato, ao sujeito convém se desimplicar surfando no próprio sintoma em ondas que sempre quebram sobre os outros. Trabalha-se todos os dias para transformar o Brasil na terra sem consequências, e no paraíso das elites predatórias.

Vamos seguir lembrando mais um pouco, porque são coisas que não podem e não devem ser esquecidas até porque, quem sabe, um dia ainda levarão seus autores à prisão. Dizia Jair deputado: “Quem procura osso é cachorro” Ele escarnecia e zombava da luta e dor dos familiares de mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. Processo que levou o Estado brasileiro à condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2010. O ex-deputado há muito faz gracejo com dores insuperáveis e, nos últimos dias, volta a homenagear o fascínora que idolatra.

O mesmo Jair, dias atrás, nega o assassinato bárbaro de líderes indígenas cuja aldeia foi  invadida por garimpeiros, no mesmo dia em que defende a mineração em terras indígenas. https://exame.abril.com.br/brasil/nao-tem-nenhum-indicio-forte-que-esse-indio-foi-assassinado-diz-bolsonaro/). Incitando conflitos letais e crimes o presidente continua fazendo seu trabalho. Como deputado sempre alardeou o que tem feito como presidente. Como desejaria tratar da questão indígena foi anunciado anos antes em um de seus pronunciamentos na condição de deputado. Frase quase impossível de acreditar e que só poderia vir de algum fã de homicidas e torturadores conhecidos:

“A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país” (https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/12/06/verificamos-bolsonaro-cavalaria/)

Ao dizer isso o atual presidente trabalha, não é de hoje, em função dos próprios interesses articulados aos interesses dos garimpeiros dando a eles, informalmente, licença para matar. Ao negar a morte de uma liderança assassinada repete, mais uma vez, que os indígenas brasileiros não tem importância, nem suas terras, nem sua cultura e propõe uma cisão e oposição inacreditável entre os indígenas X brasileiros, como não cansa de fazer entre homens X mulheres, brancos X negros, a comunidade LGBTQI X heteronormatividade. O pensamento dicotômico funda as estratégias eliminacionistas, como já disse Zygmunt Bauman.

O Brasil abstrato e dicotômico do falso Messias é repleto de cisões e fragmentações que privilegiam o homem branco, o militarismo violento, os impulsos cruéis, homicidas e violadores de direitos contra os que são contra ou diferentes disso. Nem todos cederão a isso, mas muitos que o fazem e fizeram o farão com absoluta convicção, porque estão mergulhados no gozo que revela a violência como ponto de chegada e a destruição como sua maior obra. A paisagem da terra arrasada delicia os que deprezam a humanidade do homem e contribuem para provar que ao homem é impossível tornar-se humano.

A disposição de matar e destruir, não raro, vem acompanhada da indisposição de pensar. Os seguidores da devastação são aqueles que se consideram incapazes de pensamento e aguardam, todos os dias, as ordens que deverão seguir cegamente. No futuro, em sua defesa, afirmarão que “estavam apenas seguindo ordens”.

 

As Dellagnoladas de Bolsonaro

Se o presidente da OAB quiser saber como o pai desapareceu no período militar, eu conto para ele’ diz Bolsonaro.

 

Bolsonaro sugere com mais esse sarcasmo, ter conhecido como foi humilhado e barbarizado o pai do atual presidente da OAB nacional Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira. Indica também o prazer que lhe dá testemunhar, conhecer, narrar e praticar a crueldade contra pessoas, contra brasileiros tal como fez inúmeras vezes seu ídolo. Revela e confirma desse modo suas aspirações a torturador e carrasco e parece querer muito chegar lá.

É preciso acreditar, porque Bolsonaro já indicou isso inúmeras vezes, ele é um aspirante(?) a torturador que chegou a presidente.

Mas assim como tais marcas sofridas e repetidas jamais são esquecidas pelos que foram mortos e pelos que sobreviveram, seus perpetradores e propagadores também não o serão. O aspirante a torturador acredita que o Brasil e seus apoiadores são o mundo e que a aprovação às barbaridades que ele propõe ficarão impunes para sempre.

É cada vez mais claro e flagrante que o que Jair pretende é normalizar violações, solapar dores, incentivar crueldades e afogar o país em violências. Acredita na força bruta como seu único recurso já que não reune competencia alguma para governar, dialogar, argumentar, planejar e pensar. Demonstra flagrantemente que desconhece o país e o povo que deveria representar e assim fracassa todos os dias em governar. Triunfará desgovernando e destruindo o país?

Afirmando contínua e repetidamente que tudo que é abusivo, violento, trágico e profundamente degradante e doloroso é “absolutamente normal” Dellagnols, Moros e Bolsonaros convertem o patológico em normal. Sobre a doença que permite machucar e eliminar brasileiros e brasileiras, se libera e se enraíza a normalização do prazer de impor dor aos outros prendendo, humilhando, torturando, usando e abusando, sem pudores, do poder de coerção que sua função pública lhes confere.

Porque os brasileiros continuam pagando salários, benefícios e privilégios aos que os ameaçam e atacam? Onde estão o Conselho Nacional de Justiça, a Corregedoria Nacional do Ministério Público e o próprio MPF para fazerem jus à confiança que a sociedade brasileira lhes conferiu e pela qual juraram zelar?

O recurso à normalização tem como um de seus efeitos a ausência de toda e qualquer regulação e exerce, no pormenor, o direito dos que estão no poder de definir convenientemente o que é o normal, a partir de seus interesses pessoais e seus desejos escusos.

Entramos no embate entre a cultura que defende que o abusivo é normal versus a cultura que afirma que violar e extinguir direitos é crime e constitui grave violação humana. Aí se travam os impasses do Brasil presente e futuro.

 

Se por uma lado as ações e manifestações ilegais, ilegítimas, indecentes de membros do governo são convertidas em absolutamente normais, obviamente tudo o que se opõe a eles é anormal, excepcional, absurdo e deve ser vigiado e punido.

Querem fundar uma nova ordem baseado em suas vontades, desejos e interesses escatológicos e trabalham para que tal arbitrio seja considerado  natural, lícito e legal. Propagam o silêncio, a submissão, a letargia e a resignação para pisarem no sangue fresco das vítimas que ceifam. Trabalham para que numa pilha de corpos apenas os que pisam sobre ela sejam distinguíveis.

 Sim, para um adulto abusador, abusar sexualmente de uma criança é um ato absolutamente normal porque sua vontade é soberana. Teve vontade de fazer e fez. Para o pai violento espancar os filhos  faz parte dos procedimentos educacionais exclusivos; para um feminicida espancar e cruelizar a mulher é parte da rotina doméstica, deve ser visto como um momento de fraqueza tolerado. Pobres coitados dos feminicidas  “não sabiam onde estavam com a cabeça”. Normal.

A autoridade auto atribuída de subjetivar o que é ou não normal, zomba de toda e qualquer regulação de consenso e ataca para destruir as instituições capazes de garantir resoluções justas entre conflitos de interesses. A normalização de tudo, ao gosto de quem está na posição de mando, joga os sujeitos uns contra os outros e os atiça na direção do embate físico. Que vença o mais forte, o mais violento, o mais cruel, o mais abusivo.  A torpeza ganha o status de virtude.

Os vazamentos veiculados pelo Intercept acordaram a imprensa, ou parte dela, que já não acha normal um procurador da República mandar no país e enfraquecer as instituições que deveriam zelar pela democracia. Acordaram talvez o STF que  parecem não considerar mais normal que um juiz de primeira instância e um procurador federal ataquem o código de processo penal, ataquem a constituição federal e determinem o curso das eleições manipulando informações e encarcerando candidatos com potencial para serem eleitos presidentes, determinando decisivamente os rumos da política e do país.

Vamos lucrar, se anima Dellagnol. Essa é a excrescência do neoliberalismo que avança sobre o Brasil. Pergunta: Qual a função mais importante de quem se encontra na posição de mando no país? Resposta: lucrar com isso daí. Essa é a finalidade mestra. É ela que ordena todas as outras. É em nome desses lucros e dividendos que as instiuições públicas estão sendo colocadas a trabalhar por uma banda podre e crescente que avança e contamina.

Lucrar pessoalmente, a todo custo e o tempo inteiro pondo abaixo a figura do homem público e das instituições que eles agenciam para o pleno exercício do ente privado, amealhando interesses pessoais a serem satisfeitos no seio das instituições públicas. Essa é a privatização do público em sua forma nefasta que se apoia e se serve da corrupção para, supostamente, combatê-la.

 

Moro, o mais normal dos normais

Vamos à fala de Moro no Senado:

— É difícil comentar conteúdo sem ter a memória exata. Por exemplo, se diz lá: “Olha, operação, operação…”. Isso são decisões já deferidas. Juiz defere prisão, busca e apreensão. São várias operações no âmbito da Operação Lava-Jato, e é normal uma discussão de logística. Está aqui a senadora Selma, que atuou muito destacadamente como juíza lá no Mato Grosso, teve várias operações. É normal, depois da decisão proferida, haver uma discussão sobre questão de logística, quando vai ser cumprido, como vai ser cumprido. E eventualmente pode ter havido uma mensagem nesse sentido. Isso não tem nada de revelação de imparcialidade ou de conteúdo impróprio. O senhor pode conversar com qualquer pessoa que trabalha nos fóruns de Justiça que vai verificar que isso é absolutamente corriqueiro e normal, especialmente no contexto de uma grande investigação (https://oglobo.globo.com/brasil/veja-que-moro-disse-no-senadosobre-teor-demensagens-trocadascom-deltan-dallagnol-23751465)

Não é ‘uma discussão sobre a questão da logística’ são várias orientações, conselhos, combinações entre o juiz e o procurador. Não, isso não é normal e se o for é porque as instituições onde tais autoridades trabalham e as funções que representam é que padecem de anormalidade, de doença, de corrosão.

 Moros, Dellagnols e Bolsonaros são os alquimistas ao contrário que estão tentando alargar o espectro da normalidade para o  corriqueiro, cotidiano,  consuetudinário. Essa é a narrativa do governo desde a campanha.

Convenhamos se matar, exterminar, torturar, fechar os olhos para o  trabalho escravo, incentivar o trabalho infantil, permitir que grávidas trabalharem em locais insalubres, internar compulsoriamente pessoas, praticar abertamente o nepotismo, propagar a destruição de indígenas e sua cultura são coisas normais porque a interferência de um juiz  aconselhando, dirigindo e em constante contato com um procurador público que coordena investigações não seria? É o convite para todos que apoiam o governo cegamente se esbaldarem num Brasil sem lei, sem acordos, sem combinados e devastado de humanidade.

“Ra-tá-tá-tá, vamos tomar conta do Brasil!”

Mas essa promessa não é apenas construir uma tirania consensual, é preparar um banquete para poucos e também conferir plenos poderes a quem não tem a menor condição moral e psíquica para exercê-lo.

Afrontar direitos? Normal. Violar pessoas? Normal. Acabar com as universidades e a pesquisa? Normal. Bater continência para a bandeira americana? Normal. A destruição, a imbecilidade, a indecência, a violência são normais porque a normatização dos que a defendem se escora na imoralidade dos que se beneficiam dela. No caso os próprios imorais que serão os únicos a definir o que é normal e o que não é, inventado diariamente uma moralidade oca por dentro.

  Hoje a pecha de normal evidencia um plano em exibir publicamente, e sem sanções, o que antes só ocorria em surdina. São esses os normopatas que querem oficializar o que antes era preciso ocultar; querem transformar em orgulho o que antes era vergonhoso e indecente.

Vamos lucrar com isso daí é a frase síntese desse período sombrio.

Moro lucrou ao chegar a Ministro. Dellagnol passou a colher lucros e dividendos com suas atividades diretamente ligadas às suas funções na vaza jato, muitas delas discricionárias. Bolsonaro lucrou chegando à presidência. São muitos outros os lucros pessoais a serem contabilizados a partir daí.

Os que deram ao presidente o apelido de um palhaço certamente reconhecem que é uma palhaçada sem graça, desmedida, poluída por práticas ilegais, má fé e ataque violento à plateia. Um palhaço que se aproxima da plateia com armas de verdade e atira para matar, conclamando os sobreviventes a gargalharem. Uma palhaçada que faz chacota da imensa maioria do povo brasileiro e inclui, à revelia, todos embaixo de uma lona onde se revelam, após retirada a máscara, figuras sórdidas que traíram os cargos que ocuparam; que roubaram o direito dos brasileiros a obter justiça, ao invés de promovê-la; que foram de maneira cínica, ousada e  desmedida anunciar na grande mídia as suas façanhas de justiceiros, cujo único objetivo era atender seus próprios interesses e esganar a possibilidade da justiça.

A população foi engambelada, é verdade, mas a punição quando vier terá de recair sobre os artífices dessa imensa trama, que sem pudor, limites e senso moral atuaram durante anos para ridicularizar os mecanismos de obtenção da justiça pela via do direito, e hoje colocam na parede a institucionalidade democrática de todos os operadores do direitos que atuam nas instituições brasileiras.

Como observou o Senador Fabiano Contarato durante audiência com Glenn Greenwald no senado federal:

“Se admitirmos que o comportamento de Sergio Moro é legal e lícito estaremos autorizando a que todos os juízes e promotores ajam da mesma maneira.”

E mais adiante em sua intervenção:

“Acharemos normal que um juiz não tenha imparcialidade? Concordaremos que um juiz seja acusador? Um juiz pode comandar e atuar no Ministério Público?”

O trabalho de normalizar o descalabro está acontecendo por dentro das instituições, nos arroubos e intenções do presidente e seus ministros, nas práticas de diversos grupos que se movem e atuam proliferando ações apoiadas na força bruta e na disseminação de rancores que se espatifam na cena pública, cujo propósito é privatizar o espaço comum e público.

Centenas de mensagens chegaram ao Conselho Nacional do Ministério Público apoiando Dellagnol e a lava-jato. Há enorme hesitação em penalizá-lo e puni-lo pelo que fez.

É o momento de apoiar a imprensa livre, o possível ressuscitar do STF e articulações do parlamento que trabalham para investigar  as causas e as consequências da operação que não apenas não livrou o Brasil da corrupção, mas poluiu os poucos instrumentos que tínhamos para combatê-la.

Se o STF agir, como parece que começa a fazê-lo e como milhões esperam e precisam, é o momento de apoiá-lo nas ruas e nas instituições para que a constituição que ainda nos ampara não soçobre sob as pás de cal e enxofre que os governistas atiram sem cessar sobre o Brasil que sufoca, mas ainda respira.

As leis não são tudo, mas em torno delas se dramatiza hoje o início e o fim de um país.

 

Foto: José Cruz (ABr)