“Por que chamar de supremos e superiores tribunais que assistem o Brasil ir ladeira abaixo?” – Por Paulo Endo

“Por que chamar de supremos e superiores tribunais que assistem o Brasil ir ladeira abaixo?” – Por Paulo Endo

A lei permite muitas coisas, inclusive inexoráveis injustiças. Não é preciso gastar muita tinta e papel para, numa olhadela, perceber que os operadores do direito no Brasil são frequentemente flagrados, à luz do dia, cometendo brutais injustiças, envolvidos em corrupções escandalosas, apaniguando e sendo apaniguados por personalidades políticas suspeitas.

Podemos relembrar fatos anteriores à miríade de atitudes, ações e julgamentos que sobrevieram ao impeachment da presidente eleita Dilma Rousseff, inteiramente capitaneados por um criminoso profissional, hoje na cadeia, que mandou e desmandou como quis no projeto de impedimento de uma presidente eleita diretamente nas barbas da justiça brasileira. Onde estava  o supremo tribunal  do país para evitar que o mais decisivo e, nesse caso, mais controverso processo de nossa história recente tivesse o desfecho que teve, colocando o governo do país nas mãos de personagens suspeitos de gigantescos esquemas de corrupção e lavagem, que tornam risíveis as acusações sobre pedaladas fiscais contra o governo Dilma Roussef? Vimos o STF assistir tudo de camarote, enquanto atrasava o julgamento de Eduardo Cunha, e permitia que um criminoso julgasse uma presidenta em relação à qual não foi comprovado nenhum crime, nenhum enriquecimento ilícito, nenhum desmando.

Prova flagrante e nefasta disso é o que viria a acontecer, dois dias depois do processo de impeachment, no Senado Federal. Os ilustres senadores transformaram o crime, do qual fora acusada a ex-presidente e que oportunizou o ingresso de Michel Temer e sua turma no comando do país, em lei. Ontem crime gravíssimo que depõe a presidente eleita, hoje lei para que Michel Temer possa governar sem contratempos utilizando-se dos mesmos mecanismos pelos quais Dilma foi condenada.(http://www.jb.com.br/pais/noticias/2016/09/02/apos-impeachment-senado-transforma-pedaladas-fiscais-em-lei/).

Quase não há gramática para descrever o que vivemos no Brasil de hoje.

Mas vamos voltar algumas décadas em outros momentos decisivos do país: o golpe de 1964. Antes que o governo militar , apoiado por civis, baixasse o AI-2, em outubro de 1965, e ampliasse a composição do STF de 11 para 16 ministros, a fim de garantir maioria pró-governo em todas as votações, o STF deu guarida ao golpe. Vejamos trecho de texto publicado no blog do Mario Magalhães:

‘Em 1964, Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa presidia o STF. Nessa condição, o ministro participou e deu cobertura ao golpe de Estado que depôs o presidente constitucional João Goulart. Entre as 3 e as 4 horas da madrugada de 2 de abril daquele ano, Ribeiro da Costa presenciou e deu a bênção ”constitucional” à posse do deputado Ranieri Mazzilli na Presidência da República. A Presidência havia sido declarada vaga, e os golpistas anunciavam que Goulart deixara o país. Mentira: ele voava ou desembarcara havia pouco em Porto Alegre. A posse de fancaria, no batismo da ditadura, ocorreu no gabinete presencial do Palácio do Planalto.’ (https://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2016/03/28/tudo-e-historia-stf-deu-cobertura-constitucional-ao-golpe-em-1964/).

Episódico? Não. Em julgamento recente, mas decisivo, ocorrido em 2010, o Supremo Tribunal Federal julgaria a arguição por descumprimento de preceito fundamental 153. Que questionava a aplicação da lei da anistia aos crimes comuns praticados durante a ditadura civil-militar no Brasil. Incluídos entre esses crimes abusos de autoridade, assassinatos, torturas e estupros. Requeria que a Suprema Corte do país, dando interpretação conforme à Constituição de 1988, declarasse que a anistia concedida pela Lei n. 6.683/79 aos crimes políticos ou conexos não se estendesse aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão, contra opositores políticos, durante o regime militar.

Foi, certamente, um oportunidade histórica que o STF tinha em mãos para dar início ao processo de consolidação da democracia brasileira instruindo, ao coibir os crimes do passado, o país que queremos no futuro. Sem torturas, sem abusos de autoridade, sem o regime militarizado das polícias, sem ações discricionárias e auto indulgentes de governos, legisladores e operadores do direito.

Mas as esperanças de milhares de familiares de torturados, mortos e desaparecidos, ativistas e pesquisadores de direitos humanos, organizações da sociedade civil defensoras dos direitos humanos testemunharam o STF, apoiado na lei de anistia de 1979, recusar o fim da impunidade às graves violações impostas aos cidadãos no passado ditatorial do Brasil.  Por 7 a 2, a ADPF 153 foi rejeitada pelo STF em abril de 2010. A anistia foi declarada instrumento válido para perpetuar a impunidade aos crimes comuns praticados no período a mando do Estado,  e por ele organizado e financiado. Assim é, até hoje, no Brasil. Os 2 votos contrários vieram de Ricardo Lewandovski e Ayres Britto.

Meses depois, em novembro de 2010, conheceríamos a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o dos desaparecimentos forçados, no que ficou conhecido como o  caso da guerrilha do Araguaia. Em um dos trechos contundentes de sua sentença, em seu parágrafo 128, a CIDH declarou:

“Finalmente, salientaram a irrelevância do contexto de criação da Lei de Anistia para o Direito Internacional, pois consideraram que, na medida em ela impeça a persecução dos responsáveis por graves violações de direitos humanos, será contrária às obrigações internacionais do Estado. A Lei de Anistia não foi o resultado de um processo de negociação equilibrada, já que seu conteúdo não contemplou as posições e necessidades reivindicadas por seus destinatários e respectivos familiares. Desse modo, atribuir o consentimento à anistia para os agentes repressores ao lema da campanha e aos familiares dos desaparecidos é deformar a história.”

Sentença que é quase o oposto especular da decisão da corte brasileira. Sem apoio na jurisprudência dos tribunais nacionais sobre as violações cometidas no período de exceção vigente entre 1964 e 1985, a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos constitui hoje o fundamental apoio legal para ações, sentenças e argumentos contra as graves violações cometidas no passado e suas consequências no presente. (http://www.conjur.com.br/2014-set-27/observatorio-constitucional-corte-interamericana-decide-vinculacao-jurisprudencia).

No início desse mês assistimos ao patético julgamento da chapa Dilma-Temer pelo Supremo Tribunal Eleitoral, cujo resultado mais significativo era a possibilidade da interrupção do mandato do atual presidente Michel Temer, hoje com 3% de apoio popular, já que Dilma Rousseff já fora impedida em 2016. Sem nenhuma surpresa, semanas antes, todos já conheciam o resultado, chegando ao descalabro de conhecermos os detalhes do placar (4 a 3) a favor da impunidade.

O julgamento foi presidido por um ministro do TSE, flagrado em diálogo altamente suspeito sobre um pedido de apoio a uma lei que endurece punições a abusos de autoridade,  cometidos nos processos de investigação de órgão investigativos e outros. O diálogo entre Aécio Neves e Gilmar Mendes, fartamente publicizado em maio desse ano, deixa claro a influência do senador sobre o ministro que é instruído, por Aécio, a articular em prol da aprovação da lei que certamente beneficiaria Aécio Neves em futuras investigações.

No telefonema gravado e tornado público todas as instruções dadas por Aécio Neves são acolhidas com naturalidade pelo ministro Mendes que se compromete a seguir as instruções do senador. Flagrante estarrecedor sem qualquer consequência para o ministro Gilmar Mendes que, no mês seguinte, presidirá o julgamento da chapa Dilma-Temer cujo principal risco recai sobre o denunciado e suspeito Michel Temer, com os resultados já conhecidos. (http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/em-transcricao-de-audio-da-pf-aecio-pede-ajuda-a-gilmar-mendes-sobre-lei-de-abuso-de-autoridade.ghtml).

Nesse momento os membros do STF, mais uma vez batem cabeça. Não sabem se esvaziam as acusações contra o usurpador Michel Temer ou se contribuem para que se reestabeleça um mínimo de institucionalidade no país que só terá início, todos sabem, com a queda do mais ilegítimo dos presidentes. Enquanto isso, certamente, malas e malas circulam daqui para lá. Enquanto não há regulação no país, cujo governo está infestado de acusados, suspeitos e acuados,  muitos se locupletam antes da restauração de alguma ordem, regulação e decência no país, antes do fim da farra, antes do fim da era Temer. O STF não é um tribunal garantidor da democracia, como vimos. De supremos e superiores esses tribunais tem muito pouco.

Freud fez esse alerta há mais de cem anos atrás, em 1913. Em seu fundamental texto Totem e Tabu, Freud dizia que as leis são herdeiras dos tabus. Exigem obediência mas escondem seus princípios, sua gênese e os interesses que veiculam. Obedecer leis cegamente é entregar aos operadores profissionais  a aura de supremos, magnânimos e superiores enquanto todos os demais caminham cabisbaixos, subalternos e ignorantes. Infelizmente ouvimos pouco os grande pensadores. Fazemos colóquios, conferências e cursos inteiros sobre eles, mas, muitas vezes não os levamos a sério.

Desde a publicação de Homo Sacer I, o pensador italiano Giorgio Agamben tem propalado aos 4 ventos : não virá das leis e dos operadores do direito nossa tão aguardada democracia. Não há outro caminho senão trabalhar para construí-la.

Mais uma vez, como sempre, só a soberania, supremacia e superioridade popular nos acena com esperança e alento no futuro.