“O normal em lugar do comum” – Por Gabriela Costardi

O normal em lugar do comum

Autora: Gabriela Gomes Costardi

Não há dúvida que vivo em tempos sombrios!
Uma palavra inocente é um absurdo. 
Uma fronte suave
Aponta à insensibilidade.
Aquele que está rindo
Ainda não escutou
As terríveis notícias.
Ah, que tempo é este
Em que falar de árvores é quase um crime
Por ser de certo modo silenciar sobre injustiças!
(Bertold Brecht – À Posteridade)

Hannah Arendt tomou emprestada de Brecht a expressão “tempos sombrios” para nomear seu livro Homens em Tempos Sombrios (1968), no qual reuniu escritos sobre homens e mulheres que lançaram alguma luz com suas vidas e obras sobre as catástrofes que deixaram uma sociedade às escuras. Ela aponta que os eventos estarrecedores da primeira metade do século XX aconteceram na claridade do dia, sem segredo nem mistério e, ainda assim, não se deixaram ver facilmente. O espaço público foi tomado por uma fala vazia que mais encobria do que mostrava, tornando os fatos invisíveis em sua própria exposição, encobertos por uma tagarelice repetitiva, uma enxurrada de clichés. Nesse ponto, a psicanálise bate na porta de Arendt, pois Lacan evidenciou que a falação se apresenta no tratamento psicanalítico como recusa ao inconsciente, ou melhor, como defesa contra a responsabilização que assola o sujeito que se aventura a falar a verdade.

E fala vazia foi o que não faltou na boca dos congressistas ao votarem pela aprovação da abertura do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Desfilaram — diante de expectadores atônitos, entediados, angustiados, fervorosos — uma porção de clichês advindos de valas conservadoras ou mesmo falas aparentemente desconexas. Nossos parlamentares simplesmente ignoraram a divisão entre o público e o privado, um dos pontos chave do republicanismo ao qual se aferram em tese, para nos apresentar o aniversário da neta, a oposição ao Lula, o sofrimento causado pelo PT ao pai, a sagrada família e Deus sabe lá mais o que como justificativa para seus votos. De fato, essa enxurrada de fala vazia confunde o interlocutor, pois adentramos em um jogo em que não parece haver diferença de valor entre os argumentos, sendo a constituição, a legalidade, o combate à corrupção, a democracia, o povo evocados para se justificar posições antagônicas. Daí que a verdade fique sob o lamaçal do blá, blá, blá.

Foi o que se viu, por exemplo, no discurso de acusação de Miguel Reale Júnior, um dos autores do pedido de impeachment da presidenta Dilma1, por ocasião da sessão da câmara dos deputados que deliberou sobre a abertura do referido processo. Ele disse: “Eu quero lhes perguntar, senhores deputados: Qual é o crime mais grave? O crime de um presidente que põe no bolso determinada quantia ou aquela presidente, pela ganância do poder, em busca da manutenção do poder, não vê limites em destruir a economia brasileira?” e, adiante, “[…] furtar um pedaço de dinheiro é muito menos do que furtar a esperança e a expectativa no futuro”.2 Ao comparar Dilma com Collor, o jurista admite a idoneidade da presidenta bem como relativiza escancaradamente a gravidade da prática de corrupção, deixando claro que o apelo ao seu combate não passa de um pretexto para levar as massas às ruas em favor do impeachment. Embora Miguel Reale Júnior tenha sido muito claro e explicado sua posição de diferentes formas, não houve responsabilização pelo dito, ficando tudo no nível da falação.

Voltando à Arendt, a autora considera a política enquanto exercício da ação e do discurso. O sujeito político emerge de sua condição de massa para tomar a palavra em nome próprio, diante de outros e criando um espaço comum entre ele e os demais indivíduos. A questão do comum é muito importante para a concepção de política arendtiana. Para estar com outros é preciso construir um entre, resultado do estabelecimento de compromissos. Voltando-se para nosso momento atual, cabe a pergunta: O que estaria entre os brasileiros a sustentar nossa vida política? Em outras palavras, qual é o pacto que vige hoje em nossa sociedade? Os índices de ruptura de nosso pacto coletivo são reconhecidos há certo tempo. O lulismo que, desde 2002, reunia a sociedade brasileira em torno de distribuir certa parcela dos bens sociais com a condição de não retirar os privilégios da burguesia agoniza, pelo menos, desde a reeleição da presidenta Dilma Rousseff em 2015. O pacto de 1988, no qual diversos setores da sociedade brasileira se reuniram para formular nossa Carta Magna, sofreu golpe frontal com a abertura do processo de impeachment contra a presidenta. Pois a Constituição que outrora garantia certa estabilidade para o funcionamento dos procedimentos que sustentam nossa democracia, hoje, anda debaixo dos braços daqueles que comandam o golpe de Estado em curso no país. Um vácuo se instaura entre nós.

Mas como afirmar que não há um espaço comum entre os brasileiros quando milhões vão às ruas a entoar os mesmos gritos, enrolados em bandeiras da pátria? Sabe-se que essas pessoas são, em grande maioria, da classe média e daí que a crise econômica esteja lhes causando privações bem como o retorno do velho pavor de cair. Mas, além disso, há a indignação profunda (e, diga-se de passagem, só não completamente justa porque seletiva) e explícita contra a corrupção. Interesses econômicos e a vontade de combater os crimes de corrupção poderiam desencadear algum tipo de novo pacto se, e apenas se, fossem abordados enquanto coisas públicas. Interesses econômicos adentram o debate público quando sua discussão leva em conta um projeto de distribuição de bens sociais na sociedade como um todo. A partir disso se pode reivindicar direitos trabalhistas e serviços públicos básicos de qualidade, discutir-se subsídios estatais para certos setores, reforma de sistemas tributários, políticas de controle de juros, o endividamento do governo, etc. Corrupção na esfera pública se combate com a divisão do poder, quer dizer, com o fortalecimento das instituições políticas e jurídicas, com a participação social, com a regulamentação da mídia. Cada um desses segmentos deve ter sua independência garantida, limitando os demais e, ao mesmo tempo, funcionando em interdependência com esses.

No entanto, o que pauta as manifestações dos milhões de brasileiros pela saída de Dilma Roussef — o que, segundo eles, seria o início de uma limpeza ética no país bem como traria a superação da crise econômica — não é um debate sobre a constituição de uma coletividade senão a lógica do nós versus eles. Esse antagonismo coloca de um lado o povo de bem e de outro o governo impostor e usurpador. Curioso que o povo de bem esteja aliado, justamente, com aqueles sobre quem recaem indícios claríssimos de usos perniciosos da coisa pública e, assim, fica claro que o que realmente está em jogo é a re-instauração de um projeto de poder para o Brasil. Uma discussão sobre esse projeto é urgente e complexa; aqui quero apenas apontar que o que move o país adiante nesse processo de impeachment não é nada que possa levar o nome de comum. Eu diria que o comum, nesse caso, foi substituído pelo normal. Pois uma demanda tal como combate à corrupção é tão justificada e, ao mesmo tempo, tão geral que pouco espaço é deixado para o pensamento e o debate. É completamente normal aderir-se a esse brado. Daí que Freud seja atual ao apontar que o normal faz massa, desde onde não se pode tomar a palavra em nome próprio, mas apenas ecoar clichês.

1 O jurista apresentou pedido de impeachment de Dilma Rousseff, juntamente, com Hélio Bicudo e Janaína Paschoal.
2 Confira o discurso na íntegra em: https://www.youtube.com/watch?v=ijW4w-qW1Uo