Que liberdade nos resta? Furos no Futuro: psicanálise e utopia – Por Flademir Roberto Williges

Que liberdade nos resta? Furos no Futuro: psicanálise e utopia – Por Flademir Roberto Williges

O filósofo e ativista italiano Franco Berardi (Bifo) nos recorda que “o futuro só é imaginável quando estamos dispostos a investir emocionalmente nos outros, na amizade, na solidariedade e, claro, no amor”. E prossegue: “se não formos capazes de sentir empatia, o futuro não existe. São os outros que nos validam, que nos conferem humanidade”.[1] A busca desenfreada e viciosa por medidas quantitativas e comparativas subordina o sentido do tempo ao mero “des-envolvimento” econômico. O primado da acumulação tem como pressuposto uma escravização do pensamento, porque sob o regime da necessidade não havia espaço e tempo para a liberdade. O tempo vivo que é “gasto” no “envolvimento” em trocas afetivas deve ser economizado em prol da capitalização de créditos financeiros futuros. A superprodução de “ternuras” tecnicamente sinalizadas comparece, desde a invenção do Tamagotchi – um bichinho de estimação virtual que poderia morrer por falta de cuidados -, como um dos avatares substitutivos do que os imperativos econômicos modernos pressupõem, implicam e, ao mesmo tempo, ocultam, a saber, a superexploração do Eu a serviço do capital.  

Como uma contraposição a este estado das coisas, vale um salve de palmas para o surgimento de formas de expressão que, por palavras, criam imagens filo-eróticas que resistem tanto à amorfia e à anestesia dos sentidos, quanto questionam a permanente mobilização sensual, ou seja, imagens críticas que ao mesmo tempo questionam a quem se endereça esta crescente oferta de estímulos, e quais as razões de anestesiar os movimentos contrários.

Neste desiderio, justamente porque o vemos tão distante de nós, tão longe do presente de nossas próprias circunstâncias psicossociais, políticas, estéticas e existenciais, habita um impulso de que não haja o que há. Uma vez que uma psicopatologia opera cotidianamente na vida da mente da maioria dos indivíduos, o entendimento mínimo acerca do modo de funcionamento das estruturas sociais é impedido. A alienação compreensiva em relação à gênese histórica da formação das estruturas sociais, a falta de conversação e de debate sobre o sentido delas, retorna em ensejos impulsivos de romper com os seus efeitos que são sentidos na imediaticidade. O apagamento da memória histórica coletiva compele à sua repetição traumática e ao consumo subjetivo irresponsável de um presente contínuo cujo sentido interior é manifesto em expressões como: “Ah! Se ao menos eu pudesse sentir algo”. Muitos experimentam o fato da existência do “eterno retorno do mesmo” como uma vivência que constata, de forma pesarosa, a consistência do “retorno eterno do mesmo” – sem a mínima diferença. vivenciado como “eternamente igual”. No sentido sociológico, agência refere-se à capacidade de indivíduos agirem independentemente e fazerem suas próprias escolhas livremente. Contudo, ainda que essa autonomia e liberdade de escolhas próprias individuais possibilite ao sujeito realizar de forma consciente alguns objetivos de vida, se esfacela diante da heteronomia social. Sob o clamor estridente de vozes indistintas que demandam hegemonicamente sua atenção, ele, como parte de um todo previamente calculado, pode ser levado em conta ou indiferenciado.  Frente ao sentimento de indiferenciação e indistinção, frente ao não-lugar neste mundo, surge uma vontade que pode ser interpretada como um desejo utópico, ou seja, o advento de algo nunca existido, algo como ver o que nenhum ainda olho viu, ou ouvir o que nenhum ouvido ainda sentiu. Um desejo porventura impossível, mas nem por isso, ou melhor, apesar disso, por definição, necessário de ser articulado aos nossos sonhos por um mundo melhor.

Um exemplar desta defesa se intitula Furos no futuro: psicanálise e utopia, cuja assinatura traz o nome do psicanalista e escritor Edson Luiz André de Sousa, que veio à luz pela Editora Artes & Ecos.[2]

No filme O Carteiro e o Poeta, o personagem Mario Ruopolo, ao ter encontrado e se “apropriado” de um poema inédito de autoria de Neruda, foi por este “interpelado” pelo rapto. Por sua vez, lhe responde: “A poesia não pertence a quem a escreve mais do que àqueles que dela precisam”.[3]

Poesia é narrativa. A criação do mundo comporta diferentes narrativas. Qualquer que seja o criador eleito – desde Deus até o Big Bang -, eles são relatados. Nesta direção, uma das utilidades da poesia é lembrar que o sentido do ser dos entes é distinto de sua mera presentidade. Essa constatação, porém, é oriunda de um discurso filosófico. Existem diferentes gêneros de discursos. Tomemos a escrita da história. A sua narrativa se apresenta com a pretensão de dizer a verdade.  Todavia, sabemos que existem diferentes regimes de verdade. Se a história procura dizer a verdade, rememorando fatos passados, e utilizando-se deste argumento para separá-la da poesia, sob quais condições o historiador poderia ser mais verdadeiro do que o poeta? Argumentar que se tratam de gêneros de discurso diferentes, cada um independente do outro, como fazem as modernas teorias dos sistemas que separam o entretenimento, o jornalismo e a publicidade, seria análogo a dizer que somente podemos aprender ética lendo Aristóteles, Kant, ou Bentham, e não nos romances do Marquês de Sade, Stendhal ou Dostoievski. 

Por um lado, nas sendas hermenêuticas e fenomenológicas percorridas pelo pensamento de Heidegger, o entendimento do sentido e fundamento da ciência e da técnica moderna orbitam sob o conceito por ele cunhado de Gestell – cuja tradução é difícil em nosso idioma, mas que podemos dimensioná-la temporariamente retendo a ideia de que o Dasein, o ser-aí, enquanto ser—no-mundo, não domina a sua ação, porque nesta “armação” ele está, ao lado de outros entes mundanos que não têm o privilégio da compreensão da diferença ôntico-ontológica, de certa forma disposto e à disposição como um recurso funcional, como um “equipamento” posto em disponibilidade. Por outro lado, teríamos, pela existência da dimensão poética e prospectiva (utópica) do pensamento, uma abertura possibilitadora à não-robotização totalitária do homem. A poiética, a saber, a criatividade humana, diferente da pedra que não possui mundo, e do animal cujo mundo é seu meio ambiente imediato, constrói mundo. Ela materializa uma dimensão da tékhne que amoderna técnica não alcança. A língua grega guarda o sentido: Arte é tékhne. Não são apenas conceitos que antecipam e marcam as experiências futuras. Romances e filmes de ficção científica – como, por exemplo, Blade Runner ou O Exterminador do Futuro – narram e dramatizam de forma antecipada todo um panorama das dificuldades de representação futura de um ethos humano onde o desejo esteja implicado. E fazem isso através de expressões de angústia vivenciadas por seus personagens robôs que estão em busca de um aprendizado do que são os sentimentos – como que nos lembrando das consequências necessárias acaso confiemos todas as nossas memórias a dispositivos extracorpóreos. Arrisco a hipótese de que a tendência à multiplicação de comportamentos automáticos esteja sendo buscada como uma espécie de saída do longo processo de desenraizamento produzido pela narrativa de que a conditio humana definitiva é a conditio da casa moderna. Com isso quero me referir à abstinência causada pela perda de algo que foi muito desejado, um processo de desterritorialização no qual os indivíduos se perceberam entre um não-mais passado e um ainda-não futuro. E um dos mecanismos defensivos utilizado para que a dor da privação não penetrasse à porta da consciência é atualizado sob o signo do fetichismo – que desliga e separa o sujeito do objeto de desejo que fora privado mediante o automatismo da percepção colado à animação da mercadoria.  

A união da sensação de que vivemos existencialmente um mundo “eternamente igual”, o eterno retorno do mesmo sem diferença, mais a “rotinização” automática da percepção, fixa-nos libidinalmente à crença fetichista e fatalista – à qual aderimos de forma subordinada – de que o futuro é indistinto. Onde não há discernimento, diferenciação e distinção, o feitiço flutua livremente no espaço e no tempo.   

Por conta disso, o utópico na poesia, o mundo que ela faz presente e o presente que ela dá ao mundo, não é a mera constatação e fuga diante da existência da impossibilidade do impossível, mas a existência de algo que ainda não existiu, de algo que nunca existiu, porque a sua não-existência lhe foi vedada, ou seja, o aspecto da não-existência no existente, do não-ente no ente, foi interpretado como mera impossibilidade do vir-a-ser. Assim, no dizer de Drummond, a poesia pode vir como uma “procura de rumo qualquer que não fosse aniquilamento”.[4] O modo de produção poética é ambíguo, porque ele não se esgota na imagem produzida na entrega do produto. Esta imagem recebida esquece, amiúde, do próprio processo da produção, da angústia da verdade.   O poeta não consome a matéria-prima de um mundo supostamente pré-existente. Frente ao extravio deste, em sua agonia produtiva mesclada com momentos de júbilo e regozijo, ele constrói novos mundos. Ou, mais humildemente, ousa propô-los.

Questionar a relação entre a propriedade privada da letra (posse) e o usufruto de seus significantes implica romper com a ideia de que um dia houve criação e uso privativo da linguagem. A suposição de que haja uma passagem lisa que vá de um uso privado da linguagem ao público, por exemplo, do falante para o escritor, ou do escritor para o leitor, é falsa, porque a palavra, não sendo mercadoria, não se troca, não se vende, não se consome. Seres humanos sempre pagaram com seu corpo quando a sua fala foi reduzida pelos poderosos a meros lamentos da voz. Por isso, sendo a fala humana o que nos diferencia da voz animal, o espaço da fala e da palavra é sempre um espaço em disputa. Todavia, se por um lado a produção artística é inconsumível, por outro, hoje, ontem, ou desde que a coisa ou o objeto se tornou mercadorias o âmbito do consumo invadiu o artístico. Portanto, neste espaço de poder, palavras, imagens, músicas, por mais que se expressem numa língua da intimidade, fora do olhar ou da escuta do público, são sempre políticas. Por isso, estão sempre ameaçadas de censura pelo mecanismo de interdição da maquinaria moderna que tenta consolidar, a partir de seus relatos e projetos colonizadores, uma versão da história na qual ajusta os relógios do tempo ao conceber/manobrar de forma absoluta uma suposta ocupação central do espaço. Esse movimento, diga-se de passagem, a venda da “passagem” tipicamente moderna, incutiu-nos a crença de que existiria uma forma secular absoluta de ocupação dos espaços e que poderia ser tomada em sua completude final no tempo presente. Com isso, elimina-se de um só golpe não apenas o fato de ser uma invenção narrativa mítica, mas também a própria ideia de um espaço vazio. Após a extinção ou o fechamento racional promovidos pela ciência e pela técnica da ideia de um vazio constitutivo abriu-se a possibilidade de que traços não conhecidos característicos da subjetividade humana fossem reduzidos a marcas animalescas ou maquínicas. Em ditados como “Deus acima de tudo”, nossos tempos estão povoados de palavras que pretendem a plenitude.

Isso nos faz retornar aos tempos primordiais e considerar que o mundo exterior a nós, apesar das mudanças que exercemos sobre ele, continua a ser o mesmo. Por um lado, lembrar que desde seu surgimento a palavra é um retrato apagado do que se deixou escrever, um sobrerresto de instintos, desejos e sentimentos calcinados. Ainda que assim seja, uma vez habitando na linguagem, paradoxalmente, a palavra é capaz de nos abjurar de algumas prisões narrativas tecidas por ela mesma. Por isso, entre as condições para que ela não fique refém do demoníaco, para que seja bendita, está o beneplácito ou o legítimo direito à sua perpetuação. Em tempos de seu declínio, a palavra opera não apenas como uma espécie de legítima defesa contra o excesso de estímulos excitantes não elaborados que demandam descarga orgânica, mas também como um meio de “re-tratação”, ou seja, como uma via possível de novamente tratar esses “traços de memória” traumática coagulados no corpo de nossa deriva cultural.

Discursos de mestria entram em crise exatamente no momento em que seus agentes supõem saber poder nomear e controlar o gozo dos outros. Sua suposta instrumentalização plena é rechaçada ao encontrarem-se com a resistência interna da própria palavra, pois ao saber-se como “mera” ou “apenas” palavra, e não como a “coisa em si”, ela também da insuficiência desta pretensão. O tratamento ou o “re-tratamento” consiste então em evitar que sua pretensão transcendente de plenitude expulse de seu ser sua natureza simbólica e a reduza à uma imagem pretendente a enquadrar os quadros sensíveis do mundo nas gavetas de seu portador. E, neste sentido, tomando-a pelos dois polos, a saber, em sua onipotência e em sua fragilidade, a palavra revela uma analogia estrutural com o desejo, uma vez que, uma palavra que se sabe palavra, tal como um desejo que se encontra pleno de si, sabem que não estão cumpridos, ou seja, sabem de seus furos, de suas insuficiências, de suas inconformidades. Da mesma forma, por definição, diferentes utopias, em seu ser, sabem-se inconclusas.

  Se a poesia quer fazer valer a sua palavra, então ela tem que se perguntar de onde emana o seu poder. Ao ocupar um lugar de fronteira, ao margear entre a lógica do sensível e o sensível lógico, o corpo do poema provoca os sentidos pré-estabelecidos pela razão. O poema ocupa um lugar de vaguidade lógica-sensível e a afeta. Seu espírito somático não consiste senão no acionamento de uma virtualidade que lhe dará existência ao se atualizar. Ao vagar por mundos não-necessários, abjura a razão do cativeiro teórico-cognitivo e prático-moral, deixando as faculdades da imaginação se exercitarem livremente. Ela somente consegue isso enquanto houver tempo “passível”. Essa passibilidade supõe que algo aconteça conosco quando e enquanto lemos ou ouvimos um poema. Todavia, a “armação” da tecnociência – a qual me referi antes ao citar Heidegger – está cada vez mais refinada. A questão que se impõe é a de pensar o que alcançamos ao falar em uma receptividade espírito-somática quando o tempo e o espaço estão sendo dominados pelo conceito. A capacidade de sentir supõe uma doação que não pode ser calculada. Contudo, se as próprias formas da intuição de espaço e tempo são atingidas e atacadas pelas novas tecnologias, a receptividade do corpo também o é. E, como a ideologia de nossas sociedades neoliberais rejeitam os cânones e estimulam a “livre intervenção” narcísica na produção de produtos culturais, ou seja, pensa a sua apresentação ou aparição na cena da cidade aos moldes de uma intervenção ou instalação dominadora, os “espíritos” não suportam a angústia de não serem percebidos ou de não se fazerem perceber. O que ocorre com a espontaneidade do sentimento estético originado pelo encontro com a poesia ou com a literatura quando ele é calculado em métricas pré-estabelecidas?

Em situações não calculadas, o espírito somático da poesia possibilita o acionamento de uma potência que se atualizará enquanto o tempo de sua leitura ou audição criar no sujeito um volume interno de escuta capaz de provocar vazios compreensivos. Esse convite ao desconhecido desloca o sujeito do automatismo da sua percepção e, longe de lhe apresentar um mundo completamente avesso à sua compreensão, mostra o quanto o que ele mais desconhece é o que considera o mais conhecido. O uso poético das palavras proporciona esburacar imagens supostamente plenas de necessidade. O vazio que se abre aos sentidos é um convite à ocupação de novos espaços de liberdade – até porque, em certo sentido, para poder sentir, é necessária a insensibilidade, ou seja, quem só sente ou sente o tempo inteiro, não chega nem a sentir. Ciência, filosofia e arte (poesia) não compreendidas são irritantes. A irritação, neste sentido, não deveria ser menosprezada enquanto categoria estética, porque, se a forma artística quer comunicar-se com a forma conhecimento, ela precisa desalojar o sujeito da necessidade de posicionar-se rapidamente através de juízo do tipo “gosto” ou “não gosto” – ou do que seria agradável aos sentidos irrefletidos – que satisfazem aos critérios da estética da mercadoria. O “destino dos significantes”, o seu poder, por mais que seja um lance, demanda um mínimo de significação para o sujeito. A arte não pode se conformar em ser complacente, isto é, como um objeto projetado previamente para ser agradável aos que a consomem. A qualidade da música tocada num piano-bar não deve ser definida pelo valor da consumação.  Se assim for, abate-se a diferença entre arte e comércio, arte e consumo, arte e publicidade. O artista deve lutar contra a complacência, contra a disposição habitual de uma percepção automática que objetiva corresponder de forma concessiva, mesmo que de forma variável, à reprodução do igual. Complacência, enquanto um paliativo para acalmar temporariamente um mal, é pacto de cretinice e de mediocridade.       

         Um dos leitmotivs recorrentes na coletânea que compõe a constelação conceitual dos textos de Furos no futuro, de Edson Sousa, é a exploração e comunicação de elementos fundamentais que há entre o procedimento do fazer artístico e o procedimento do ato psicanalítico – destacando e valorizando positivamente a eficácia simbólica da criação e da interpretação enquanto potências capazes de incidir sobre os rumos da cultura.

    Um exemplo prático disso mostra-se na própria tecitura dos ensaios que compõem Furos no Futuro: psicanálise e utopia. Há um elemento extratextual que testemunha uma diferença: escritas ensaiadas a quatro mãos. Além do texto Imagens Perfuradas, em coautoria com sua companheira, a artista Elida Tessler, o texto colaborativo que encerra o livro foi escrito entre o psicanalista e o poeta Manoel Ricardo de Lima. Como o comentário detalhado de todos os textos excede minha pretensão, escolhi escrever sobre este último ensaio, O nome que falta.

    No artigo/capítulo O nome que falta (p.145-163), os coautores destacam uma citação de Cleanth Brooks: “todo poeta que lemos altera, de alguma forma, nossa concepção total de poesia”.[5] Neste sentido, os autores seguem suas reflexões destacando a contribuição pessoal que cada nova obra faz, pois ela reescreve a história. Daí, nasce o interesse pela exploração da ideia de “furo”. O poeta pernambucano Joaquim Cardozo é eleito como um representante da ideia de um “furo que se pode produzir numa imagem da história, um ponto furo(…).[6] Um dos múltiplos poemas de Joaquim Cardozo, intitulado O canto da Serra dos Órgãos, de 1970, é escolhido como o “ponto-furo” da análise e comentado pelos coautores.

Embora eu acredite que a maioria dos leitores já saiba, gostaria de frisar que, mesmo que ninguém domine a priori e nem a posteriori o resultado de sua operação, Edson Sousa não faz deduções especulativas acerca da personalidade do artista a partir da análise de suas obras. E isto remete a um aspecto de sua técnica e de sua ética de psicanalista e escritor enquanto intérprete da relação psicanálise e arte. A práxis de trabalho de Edson Sousa – tanto neste artigo em parceria com Manoel Ricardo, como em seus outros textos – busca traçar “afinidades eletivas” entre o campo da psicanálise e o campo da arte. Ao deslocar-se das tendências simplificadoras e das compreensões fragmentadas-reducionistas-isoladas de seus processos de criação, ao atentar para a historicidade das obras e da vida, abre um espaço para considerações acerca da complexidade e da cumplicidade atrativa que o trabalho de um pode exercer sobre o outro.

O canto da Serra dos Órgãos, analisado pelos autores, destaca a tomada de posse da palavra pela Serra, deslocamento e desconstruindo o centralismo do sujeito enquanto ente possuidor e ordenador do espaço e do tempo, da natureza inteira. A Serra adverte que ele pode acabar com tudo, inclusive consigo mesmo. Isso remete ao posicionamento/ desafio da narrativa poética diante da perda, à sua busca de reinvenção, de um novo começo, a partir de um “não lugar”. Como que exilado desta terra, o poeta em êxodo vaga pelo deserto em busca de uma espécie de terra prometida. A utopia, este “não-lugar” que ao mesmo tempo a define semanticamente e fundamenta sua filosofia, pode ser ilustrado na forma do pensar/sentir poético expresso por esta frase desconcertante: “A poesia é uma infinidade de lugares em fuga, vagando no deserto sem outro amanhã que a perseguição de seu mistério”.[7]  

En passant: que é memória a poesia só pode ser por ter sido canto aos mortais. A Serra fala que eles vão morrer, os mortais…. A ficção poética fala das origens. A pergunta de Edson e de Manoel é sobre o começo, a origem. Nada, porém, sabemos sobre os começos senão depois de começados. Não serei nada “original” ao repetir que toda pergunta sobre a origem é mítica, ficcional. A graça da poesia é que ela assinala justamente este ponto. Ela transforma a necessidade uma crença única. Ao questionar uma única direção do sentido de crer, torce-as e as distorce até criar pontes que levam a sentidos diversos.  O verso é múltiplo, logo multiverso, multi-mundo, alter-mundo…

O nome que falta inicia com um diagnóstico certeiro sobre uma das mudanças fundamentais no atual regime de percepção e de representação da realidade, a saber, a constatação de que a palavra recua a eidos, imagem. Em defesa da palavra, contrapõe-se que a atividade do poema é, segundo Henri Meschonnic, “colocar em dificuldade o signo”.[8]

Ora, desde o Crátilo de Platão até hoje, o polêmico debate filosófico sobre se a “essência” da linguagem é formae rerum (realismo) ou signa rerum (nominalismo) permanece em aberto. Signos são sinais: algo que representa algo para alguém. Contudo, seria muito ingênuo e desonesto caracterizar a atividade do poeta como a de um sujeito que simplesmente põe etiquetas às coisas. O objeto da poesia – se é que esta forma de falar acerta em algum alvo – não é uma transcrição purificada da percepção dos sentidos do poeta. Uma vez que não se trata mais de articular um meio material para fins objetivos – como abater um animal (meio) para saciar a fome (fim) -, com a invenção dos sinais, com o desenvolvimento da capacidade de formar signos, entramos por inteiro no regime da representação.

Vou, a partir de agora, livremente elaborar algumas variações das dificuldades e das vantagens em se “colocar em dificuldade o signo”.

  1. Em princípio, implica recolocar uma vez mais em questão a passagem da interpretação animal de mundo – na qual predominava a procura desesperada de meios para fins de autoconservação – e pensar nas condensações, deslocamentos e inversões que se fizeram necessárias à passagem da produção de meios a sinais, porque o início da aventura especificamente humana deve-se a essa passagem. E, para tal, a sugestão de Ferdinand de Saussure, o fundador do estruturalismo linguístico, em descartar a pergunta pela origem da linguagem – em parte seguida fielmente por Lacan – não é nada favorável à ciência. Outrora, o deslocamento da produção de meios para sinais possibilitou a ruptura com uma interpretação animal de mundo, pois sinais são meios que representam algo diferente. Ao meu ver, nada ilustra melhor esta passagem do que uma estrofe da música Comida, da banda Titãs. De uma certa forma, por toda a simbologia presente no preparo do alimento humano, ela repara, de forma poética, o prejuízo fisiológico que a substituição de formas imagéticas e acústicas, ou seja, sua transformação em linguagem de sinais, deixou para trás.

“A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte”.

 

Numa sessão analítica, a palavra enquanto imagem deve dar lugar à palavra enquanto “palavra em ato” – sem que se saiba de seus efeitos posteriores. Na escrita poética, a palavra fala e se cala. Ela modula os diferentes tipos possíveis do dizer e do silenciar, pois suas marcas não são usadas como um sinal indicial visível de nada de certo. A linguagem poética não é similar ao fenômeno físico da sublimação, como passagem de um estado sólido ao gasoso. Tampouco evapora-se numa simples relação entre sinais. Na escrita poética, a palavra sabe e não sabe o que diz, porque ela quer comunicar algo que os meios de comunicação não alcançam. Contudo, como não temos como contornar o fato de que, para o homo sapiens, a linguagem é uma potência presente em toda e cada coisa, a questão recai sobre conceitos como o sentido do escrito e sobre os modos de ser das palavras vivas ditas e silenciadas – que podem atualizar algo do inconsciente, do que não sabemos, ou apenas intuímos.

Neste contexto, convém apontar um detalhe: uma das questões que atravessa os ensaios de Edson Sousa é que ele se utiliza de conceitos “defeituosos” – não no sentido de imprecisão ou incorreção -, mas num sentido que critica a ideia de que a limpeza ou a positividade das formulações alcance diminuir, ou mesmo apagar, a imprecisão e a ambiguidade da ontologia constitutiva da realidade. E neste gesto, Edson não deixa de fazer uma crítica à metafísica do objeto linguístico, que gostaria de ilustrar com um verso da música Zerovinteum, da banda Planet Hemp:

“É muito fácil falar

de coisas tão belas

De frente pro mar,

mas de costas prá favela”.

  1. “Colocar em dificuldade o signo”, agora considerando a relação lógica-linguagem, nos situa nos impasses do gozo. Quando a relação do sujeito com o significante muda, muda o curso da história. Por exemplo, a inteligibilidade jogada na programação dos computadores universalizou uma dimensão da linguagem regida pelo código binário. Esta mudança trouxe consequências sobre os seres falantes. Se, por um lado, como escreve Julia Kristeva, a dificuldade da representação traz consigo “novos sofrimentos da alma”, por outro, embora este código seja uma espécie de “uniforme”, os sujeitos ainda encontram modos de rasgar sua hegemonia, e conseguem introduzir pequenas diferenças que os representem. Uma forma de diferenciação é a resistência à adesão identificadora e sedutora dos designs das marcas comerciais e a consequente luta por uma identidade de nome com traços próprios.[9] Neste contexto em que a vida está sendo digitalizada, a questão da interpretação que fazemos da passagem da interpretação animal de mundo para a humana ganha uma dimensão fundamental, porque se trata de repensar o tempo da passagem do impulso imediato (input) à combinatória dos vários fatores determinantes à produção pulsional (output). Nesse entremeio, caso não se tome a antropotécnica como destino político inelutável, as máquinas não se tornarão intérpretes hegemônicas de nossas “falhas” de funcionamento. O semelhante continuará a nos causar mais pavor e tremor do que os animais e as máquina (nos termos freudianos, o Unheimlich, o “estranho familiar”). Todavia, hoje, a “familiaridade” com que lidamos com as máquinas de percepção é uma das responsáveis por curto-circuitar aquilo mesmo que elas produziram em seu advento. Outrora os homens se maravilhavam frente à aparição de uma nova invenção; hoje, as máquinas, principalmente as de percepção de imagens, são programadas para liquidar com a estranheza, o mistério, os enigmas e os impasses do ser humano. Por um lado, a constatação de que a palavra recua a eidos, imagem, anda de mãos dadas e com as pernas do compasso técnico da invenção narrativa da moderna experiência de mundo. Por outro, a abertura da vida para o novo precisa do sonho – tal como o filme cinematográfico foi considerado uma máquina de sonhar. Ninguém consegue compreender o que é o pensar ou a criação artística sem entender o que é sonhar. Por um lado, o conteúdo dos sonhos se reduz a imagens-mercadorias, porque a “colonização” do imaginário já penetrou tão fundo no inconsciente que só se sonha em preto e branco – metáfora para in/out. Por outro, a dimensão utópica da pulsão na formação da palavra mostra como sonho e linguagem se entrelaçam. O poema “fala”, mas suas palavras “sonham”.

No texto ‘Para dar um fim ao juízo’, [10] Gilles Deleuze não deixa de julgar os que se demoram em análises que consideram o sonho como uma forma que nos governa: “Os grupos que tanto se interessam pelo sonho, psicanálise ou surrealismo, prontificam-se também na realidade a formar tribunais que julgam e punem: repugnante mania, frequente entre os sonhadores”.[11] Em contraposição, a receita alternativa literária que Deleuze apresenta ao sonho e ao juízo são estados de “embriaguês, bebidas, drogas, êxtases”, onde se buscaria o antídoto ao mesmo tempo do sonho e do juízo.[12]

Feita esta deferência à sua opinião, erguendo-me nos ombros de um gigante, posso ponderar e lhe contrapor que o sonho não tem como ser “uma forma que nos governa”, posto que ele não é senão um dos momentos da vida. Se aceitarmos que o sonho foi uma ou quiça a forma primitiva do pensar, a paulatina perda da capacidade própria de sonhar, esta sim pode estar nos colocando a serviço da programação onírica de um governo sonhado por outros à pronta entrega para nós. Por um lado, o sonho é um momento da vida. Por outro, sem ele, mesmo que momento fugaz, a vida é diminuída.

E, neste ponto, entendo que o essencial é justamente restituir sentido à palavra sonho, pois o hábito de censurar e contrapor a imaginação em nome da palavra realidade, termina por obnubilar, senão proibir, a utilização da riqueza material dos conteúdos do próprio sonhar. E coloco isto num sentido comum, porque, às vezes, vamos em busca de significações profundas e nos esquecemos da própria profundidade da superfície – tal como a da nossa pele. Como nos diz o saudoso compositor Belchior acerca do que o realismo político pode fazer na cabeça do cidadão comum: “Vivia o dia e não o sol, a noite, e não a lua”.

Na continuidade da leitura de linhas críticas aos utopistas encontramos o pensamento do filósofo romeno Emil Cioran, citado no artigo. Isso também coloca em dificuldade o signo, pois ele nos diz que:

Nous ne sommes réellement nous-mêmes que losque, dressés en face de soi, nous ne coïncidons avec rien, pas même avec notre singularité.[13]

Edson e Manuel destacam uma passagem do livro História e utopia onde Cioran adverte que, sem utopias, todas as sociedades iriam estagnar. (p. 149). Na sequência do texto, os autores destacam outra citação da mesma obra onde se lê: “Só agimos sob a fascinação do impossível: isto significa que uma sociedade incapaz de gerar uma utopia e de consagrar-se a ela está ameaçada de esclerose e de ruína”. (p. 149-150). Não posso concordar in toto com a afirmação que antecede este destaque, que diz que Cioran é radical na defesa da utopia, porque, ele argumenta que, com as utopias, corremos todos os riscos do fanatismo (políticos, religiosos, científicos, os três na mesma quimera). A menor ação anseia o acontecimento, e a indiferença não é o elemento do animal humano: nisso são fabricadas as sabedorias.

Contudo, no momento, refutar é menos importante do que o exercício de usar as lentes dos autores para uma vez vestidas, olhar a partir delas e questionar. Logo, cabe perguntar: qual é a avaliação que atribuem à história, sua vantagem ou desvantagem para o homem (tema nietzschiano) – uma vez que o desejo utópico, por definição, se articula à defesa de um lugar, uma sociedade não existente? O que motiva vocês não seria, no dizer de Cioran, ainda falando sobre a utopia como um “mecanismo”: “a miséria é, efetivamente, a grande auxiliar dos utopistas, a matéria sobre a qual trabalha, a substância com que nutre seus pensamentos, a providência de suas obsessões”. Ou, por outro lado, o desejo utópico não seria movido pela insuportabilidade da história ou pela importância excessiva que vocês atribuem ao tempo? E se o exílio ontológico do animal humano não tiver pátria, não seria a história o refúgio de seu não-ser? Não seria a própria história a efetivação de uma narrativa utópica realizada, efetiva? Para Cioran, ambas são crenças, desfiles de falsos absolutos. Aqui voltamos ao começo do diagnóstico: crença e supervalorização dos acontecimentos no tempo. Querer preencher uma lacuna no/do exílio. Em História e Utopia (de 1960), quando comenta a literatura utópica, ele escreve:


Desde o princípio se distingue o papel (fecundo ou funesto, não importa) que desempenha, na origem dos acontecimentos, não a felicidade, mas a ideia de felicidade, ideia que explica por que, tendo a idade de ferro a mesma extensão da história, cada época dedica-se a divagar sobre a idade de ouro. Se se pusesse fim a tais divagações, ocorreria uma estagnação total. (p. 90).

 

Em um conjunto de textos publicado em 1986 chamado Exercícios de Admiração (onde comenta suas admirações por vários intelectuais), Cioran diz que foi em uma conversa com Maria Zambrano no Café de Flore, que decidiu explorar o tema da Utopia: “Resolvi, no mesmo instante, me dedicar à nostalgia ou à espera da Idade de Ouro”. A perspectiva de
abordagem: Espera e Nostalgia… Na noção de utopia dele, há a projeção de um passado melhorado em um futuro improvável. Atentos aos limites de sua abordagem, podemos ver que Cioran labora como um “patologista da utopia”. Suas provocações não devem ser elididas. Contudo, o universo não foi criado “para a indiferença e a estagnação”.[14]

  1. “Colocar em dificuldade o signo” implica também em pensar que, mesmo gestos ou atitudes humanas ditas inintencionais têm um endereçamento. Elas simbolizam algo. Buscam uma saída para os impasses do gozo. Mas as palavras são antes “dissoluções de nós” do que “soluções”. Ocorre, porém, que na rapidez das mudanças técnicas propostas a partir de nosso século recém acabado, perdemos um pouco bastante a capacidade de entendimento de metáforas. Isso testemunha contra uma das condições necessárias ao entendimento da escrita poética. As próprias palavras acabam virando signos sem significação – como marcas de produtos estampados numa parede. O regime de atenção do semiocapitalismo concentra-se em algumas expressões que condensam a polissemia significante, ou a abundância da simbologia, em signos petrificados. Ora, um discurso sem semântica, sem possibilidade hermenêutica, opera as analogias de modo digital. A simbolização permite tornar o presente ausente, e vice-versa. Ela permite que virtualidades do passado de um sujeito – que de outro modo estariam mortas – sejam atualizadas. Em contraposição, num sistema codificado binariamente, porém, presença e ausência se tornam absolutas. Na ausência da possibilidade de “descarregar” ou representar/transfigurar o excesso de sentido do presente do ausente, o conteúdo das enunciações subjetivas tende a ser tomado como um enunciado objetivo. Não atribuímos ao computador o adjetivo de “burro”, “teimoso” ou “dogmático”. Por sua vez, a redução da interpretação recebida de certas enunciações políticas emitidas por seres falantes a enunciados dogmáticos assemelha-se à recepção de anúncios publicitários – que são, em sua maioria, imperativos. E, um discurso que exclui a hesitação, o ruído, ou seja, um discurso que está sendo ditado pelo modo como as máquinas se relacionam – uma vez que somos “forçados” a nos relacionarmos com elas -, só pode ser transmitido por sinais ou signos acústicos cujo significado tende a se reduzir a um símbolo auditivo ou visual, ou seja, algo que não tem significado verdadeiro ou falso, mas algo que representa uma ordem imperativa.
  2. Logo, “Colocar em dificuldade o signo” implica também em pensar que a linguagem possui função interrogativa, exclamativa, declarativa – e não apenas imperativa. Implica numa indisposição em acatar cegamente os enunciados e deduzir deles um ser/sentir/fazer sem antes procurar saber do que se trata.

Uma vez que a natureza não oferece em nenhum lugar uma “essência” a partir de si, mas somente onde seu caos é nomeado pela palavra, a capacidade dos signos de metaforizar, de metonimizar e de condensar significantes é fundamental. Da mesma forma: diretamente, nada sabemos do processo da formação de um sonho. Não temos acesso ao seu conteúdo latente senão interpretando, com palavras, a manifestação do sonhador que, por sua vez, já é uma interpretação por palavras. As leis da linguagem, ao crer no expansionismo evangélico, viriam de Deus. Mas Deus não filosofa e nem poetiza. Tampouco, a entrada e a permanência em ambientes institucionais bem iluminados, acolchoados, climatizados, clean, oferecem saída para a desordem social. Platão se referia a eidos como um termo que significava primeiramente “forma”; só depois veio a ser “ideia”. Contrariamente a seu mestre, Aristóteles não entendia as ideias como entidades superiores das quais todo o físico simplesmente tomaria parte, mas como uma força interior constituinte que agiria em cada ente individual para que ele pudesse se tornar coisa concreta. Esse autoengano da metafísica antiga quanto a qual seria o agente instaurador da identidade se estendeu até o idealismo moderno. Podemos suspeitar que a dedução da gênese, ordenamento e finalidade do mundo a partir de princípios abstratos sempre foi e é encobrimento de algo outro que não deveria ser: a falta de consistência, o estremecimento, o desmoronamento, a imperfeição. E tudo isso não se tornou possível senão pela invenção do alfabeto. A mera colocação de um nome não preenche o não-lugar do nome que falta, pois o que o nome deseja seria nomear de uma vez por todas a Coisa, e acabar com a inquietação da própria falta que traz consigo.

Na medida em que a palavra se empobrece pelo ataque prepotente do fluxo ininterrupto das imagens técnicas, este recuo incide tanto sobre as potencialidades do pensar utópico, quanto da escrita poética. Às vezes, o imperialismo da imagem é a realização de uma utopia às avessas, porque frente às novas questões que se impõem desde a realidade social, ele impossibilita que elas se tornem minimamente pensáveis.

“O nome que falta vem apontar um furo no saber, furo este que é a única brecha através do qual um pensamento sobre utopia é possível”[15] – conforme podemos ler no texto de Edson e Manoel.

Para dar uma contribuição final a esta tentativa de resumir a riqueza das ideias contida na obra de Edson Sousa, as linhas acima se amarram ao seu título: Furos no futuro. Uma vez que já conhecemos o fracasso das formas realistas da socialização capitalista quanto à possibilidade de criar um mundo mais digno para as pessoas e não para Das Kapital ou para Die Ware, podemos pensar em diferentes “pontos-furo” como rachaduras ou fissuras que nos ajudem a romper com determinadas estruturas ideológicas de dominação pelo saber e pela técnica. No entanto, como não é possível mudar tudo de uma vez, após a rejeição das fórmulas dominantes, é preciso tentar fazer algo de diferente. E é aí que surge o problema. O cientista político irlandês John Holloway, radicado no México, autor de Fissurar o capitalismo[16] (Editora Publisher Brasil), nos diz que “as fissuras são sempre perguntas, não respostas”. Em função disso, termino por colocar algumas perguntas-reflexões sobre o alcance da poesia.  

A partir de que condições a poesia pode produzir rupturas em nossa percepção de mundo e possibilitar uma nova visão? Se for verdade o dizer de Cleanth Brooks de que “todo poeta que lemos altera, de alguma forma, nossa concepção total de poesia”, e se for verdade que a linguagem poética é um exemplo bem sucedido de furo no contínuo da história, então, de que modo devemos compreender o conceito de “totalidade”?

Eu penso que, aqui, o conceito de totalidade supracitado está sendo usado de um modo crítico, ou seja, no mesmo sentido dado por Kant aos limites da razão. Em primeiro lugar, essa “totalidade” deveria perfazer uma certa compreensão do todo social no qual o poeta está inserido. A poesia tem seus sintomas, mas eles devem ser separados e não confundidos com tipos de produção sintomáticas. Tal como o adágio popular de que “para um bom entendedor, meia palavra basta”, cada fragmento poético visualizado na sequência da produção do artista, roça compreensivamente este todo. Porém, para que a compreensão crítica desta totalidade possa, a partir dos fragmentos que compõem uma obra poética, serem tocados de fato, seria necessária uma confluência, uma expansão e uma multiplicação desses “pontos-furos”, desses nomes que faltam. Logo, remetendo-me a debates que não mais são tematizados hoje da mesma forma como o eram nos anos 60, 70, do século passado, a saber, acerca da função social da literatura, deixando de lado a subordinação da “arte realista” como propaganda do regime soviético, ainda assim penso que a poesia não pode ser conformista, porque o conformismo a mata na gênese, ao impedir a subversão criativa do sujeito – seja ele autor ou leitor. Desnecessário dizer que as formas que se conformam ao pré-estabelecido não contribuem em nada para o “retratamento” da língua. Já as formas que resistem a ele são tensas e estão em permanente reconstrução – tal como um paciente que passivelmente experimenta a susceptibilidade das boas e das más sensações de seu corpo durante o período de convalescência.

Por fim, minha escolha do título do artigo, a saber, O nome que falta, assinado por dois, já é uma indicação de que não basta apenas que nomes sejam firmados em um trabalho de parceria. O desafio maior é que as “afinidades eletivas” se elevem àquilo que a expressão latina “communicatio idiomatum” define tão bem – uma comunicação das línguas que lança as raízes de uma verdadeira experiência vital, em que a língua se vinga da língua na língua em busca de um desiquilíbrio instaurador de algo novo. Este “novo” deve fazer oscilar as relações que há entre o desejo de poder de Logos e de Eros. O barbante no qual a esfera do pêndulo de Foucault está atada nunca passa pelo mesmo lugar. Ele oscila em elipse. Contudo, ao chegar aos extremos, caso forcemos demais um dos polos, ele pode arrebentar: quer seja pelo excesso de razão, ou pelo excesso de sentido. Para podermos permanecer dentro dos limites da “simples” razão e do “mero” sentimento, a consideração do impulso somático na formação da consciência humana é fundamental. Ele permite que, quando estamos brincando juntos nesta gangorra da roda-vida chamada mundo, ao estarmos no ápice, não enlouqueçamos, crentes de que somos onipotentes, e, ao mesmo tempo, que quando estamos embaixo, não enlouqueçamos crentes de que somos por demais frágeis. Em outras palavras: que quando a inspiração da voz de um tende a se esterilizar, e a sua respiração acabar, haja sempre um sopro do outro, por mais mitigado que seja, para que o esforço conjunto da tradução do inominável e do inefável alcance um termo, um bafejo de esperança – ainda que provisório. Para que quando nossa sensação sinta de que estamos vivenciando um mundo “eternamente igual”, indiferenciado e indistinto, o outro nos mostre que o mesmo comporta diferença e distinção. Ou, nas palavras de Theodor Adorno, que criticam o famoso aforismo 7 do Tractatus Logico-Philosophicus: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”, de Ludwig Wittgenstein. Concedido o fato de que Wittgenstein não disse que se deva calar sobre qualquer coisa, Adorno insiste em sua filosofia da expressão que o preciso é: “Dizer o que não se deixa dizer”. Concedamos que não dá para dizer tudo. A palavra nunca é plena. Não dá para dizer senão “de certa forma”. Todavia, também dá para dizer “de certa forma” de outra forma, ou seja, de forma diferente. Ou, também, por que não? – ainda não sabemos qual é a forma! Ainda nos falta o nome por vir. Enquanto tomarmo-nos como sujeitos “very important persons”, mentalmente constituidores de qualquer coisa que exista fora de nós, a tendência é encobrir este estatuto falho, equivocadamente interpretado como mero fracasso, ao não levarmos em conta o quanto somos assujeitados por um fora do “eu penso”. O delirare, o sair do sulco, a “viagem” do poeta, o “sair fora da casinha”, são condições essenciais para manter uma certa “normalidade” no trato com a relaidade. Tratam-se de momentos e formas de encontro que se subtraem à mobilização total e à pseudoatividade sóbria que é oferecida a muitos e que lhes parece sinônimo de uma intensa participação social que poderia ser ampliada até os confins do planeta pelos meios de comunicação social – como se a quantidade de respostas aos estímulos induzidos por emissões fosse por si só sinônimo da qualidade da comunicação. De tanto querer estar up to date e responder a tudo e a todos, a capacidade de percepção de um só encontro, de uma só pessoa, de um só poema, de um só si mesmo, se vê perturbada pelo temor de que chegamos tarde demais. Atos precisam de tempo. Esta mobilização total ocupacionista não tem tempo para a poesia. Este presente cerceado nos faz esquecer da interrogação acerca do futuro, e do próprio presente que a poesia nos oferece. O presente que a poesia nos oferece, se bem recebido e não jogado no lixo da história, pode nos ajudar a suportar a solidão cósmica, pois a atenção a ela dada significa sobretudo “respeito”. Não importa o estudo das “flores”, o conhecimento da antologia poética de um autor. O poeta moçambicano, que na infância se achava um gato, Mia Couto, recebeu uma caixa de presentes com saias, colares e brincos de Fidel Castro, que pensava que ele era mulher. A falta de atenção significa sobretudo desrespeito. E respeito significa, sobretudo, atenção – e não afeto ou amor. Por isso, sempre fico com uma pulga atrás da orelha ao ver, no facebook, postagens de trechos de poesias. Estão elas ali “postadas” porque realmente se reconhece a periculosidade do trabalho do poeta, ou são meros penduricalhos que visam tornar a imagem do compartilhador mais luzidia? Ao meu ver, o verdadeiro sentido do “respeito” que deveria impelir o compartilhamento de uma comunicação – seja ela direta ou mediada – é o sentimento de corresponsabilidade tanto ao dito quanto ao não-dito.

Um livro bem escrito é uma ópera inacabada, uma obra à espera do leitor. “Furos no futuro”, porém, somente serão feitos se abrirmos a obra – que significa tanto pôr as “mãos à obra” e continuar sua construção, quanto inaugurá-la. Porém, uma obra somente é aberta se entendermos que ela nos interpela, nos fadiga, nos convoca a repensarmos o presente de nossas próprias circunstâncias histórico-existenciais. Não sendo possível maiores desdobramentos da relação “psicanálise e utopia”, minha a mensagem é a de que nossa aparente e também nossa efetiva impotência, na época da abundância de comunicação e informação, é potência desorganizada. E, por fim, recoloco a questão de que precisamos pensar, cada um em seu campo de atuação, sobre as condições de possibilidade de reunir diferentes modos e confluência e multiplicar os pontos-furos que a poesia nos oferece. Marx tinha uma máxima de que quanto mais riqueza o trabalhador produz, maior é a exploração, mais riqueza é expropriada (do trabalhador) e apropriada (pelo capital). E, analogamente a este pensamento, a hodierna inundação de estímulos sensíveis midiáticos pode levar à alexitimia, ou seja, à dificuldade de expressar e distinguir os próprios sentimentos – quer sejam de dor psíquica ou de prazer. Este paradoxo configura um impasse fundamental não resolvido da carência humana – que tanto pode ser sentida enquanto falta como enquanto excesso.   

Eu resumiria: Furos no Futuro – psicanálise e utopia é um livro que nos chama à atenção acerca da possiblidade de um novo começo. Não apresenta receitas fáceis sobre o desenrolar deste processo. Todavia, sabe diferenciar e distinguir a posição de quem se conforta nos mistérios gozosos do amor sintomático à dor ou ao prazer imediato de quem compreende que sofrimento e alegria são momentos constitutivos do ser humano. Em outras palavras: ensina como lidar com as urtigas. Uma vez que todo humano é um ser ferido em sua memória – seja ela pele ou psique -, a diferença decisiva está no teor dos meios “curativos” que aceitamos utilizar para aprender a conviver com o vazio que elas encobrem: “Finitude, acima de tudo”.

Edson Sousa recita Ernst Bloch: o pior é não ter esperança. Traduzindo: onde desperdiçamos a chance de conduzir nossa esperança, os horizontes de nosso futuro a um clareamento pensado, aí seremos jogados de volta ao já-sempre, permanecemos nas relações existentes, que nos aprisionam e que também para o futuro nos acorrentam ao que permanece eternamente igual.

 

 

[1] Cf. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/188-noticias-2018/580228-o-pensamento-critico-morreu-entrevista-com-franco-berardi.

 

[2] SOUSA, Edson Luiz. Furos no futuro – psicanálise e utopia. Porto Alegre, Artes & Ecos, 2022.

[3] https://outraspalavras.net/poeticas/o-carteiro-e-o-poeta/

[4] Apud SOUSA, Edson, op.cit., p. 154.

[5] SOUSA, Edson. Op. Cit, p. 150.

[6] Ibidem.

[7] SOUSA, Edson. Op. Cit., p. 154

[8] Idem, p. 147.

[9] A lógica da expansão imperialista do modo de vida moderno ocidental faz vistas grossas a isto e rotula estas lutas como um mero desinteresse do público pela modernização. A “cadeia” McDonald’s foi rechaçada das cidades de La Paz, Cochabamba e Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, após infrutíferas tentativas de inserção. Não resta dúvida de que esta contracorrente somente foi possível porque os povos andinos destas cidades ouviram o que o passado tinha a lhes dizer desde o presente, evitando com isso que o discurso exótico do multiculturalismo lhes engolfasse.

[10] Deleuze, Gilles. Crítica e clínica, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1997, p. 143-153

[11] Idem, p. 147

[12] Ibidem.

  1. Emil CIORAN. La chute dans le temps. In: œuvres. Paris: Gallimard, 1995, p.1071. (Não somos nós mesmos até quando, postos à face de si, não
    coincidimos com nada, nem mesmo com nossa singularidade
    ).

[14] Apud, SOUSA, Edson. Op. Cit, p. 149.

[15] SOUSA, Edson. Op. Cit, p. 148.

[16]A entrevista pode ser encontrada em:  https://www.ecodebate.com.br/2013/10/10/john-holloway-autor-de-fissurar-o-capitalismo-nossa-forca-depende-da-capacidade-de-dizermos-nao/