No livro em que toma a moral como objeto de estudo e analisa suas manifestações nos campos de concentração, Tzvetan Todorov nos conta que sua motivação para escrever sobre o Holocausto foi a crença de que corremos o risco de repetir o passado se o ignoramos, e observa que ele tem sempre algo a nos ensinar[1].
Ao seu modo, também a psicanálise testemunha que a repetição é o jeito humano de pedir passagem para o caminho da elaboração daquilo que nos assombra. Mas, para isso, é preciso não confinarmos a rememoração nos porões da História. E isso vale tanto para a História coletiva, quanto para história de um sujeito e seus dramas singulares.
No seio da História, a nuvem conservadora que paira no céu do mundo contemporâneo é uma declaração expressa de que os regimes totalitários podem vicejar tendo como adubo os seus próprios escombros, brotar na calada da noite e alicerçar suas raízes retorcidas e mortíferas, capilarizando-as em nosso cotidiano.
O título deste escrito utiliza o termo fascismo para fazer referência a todo e qualquer sistema sociopolítico que tenha como alicerce a deturpação dos valores democráticos e a negação da democracia. É certo que há especificidades entre o totalitarismo alemão e o fascismo italiano – para ficar nos exemplos mais conhecidos. Contudo, o que importa aqui é cernir as coordenadas sociopolíticas dos sistemas totalitários, trazer elementos sobre a lógica intersubjetiva que os funda, e propor uma leitura, desde a psicanálise, acerca do lugar do pai nestes sistemas.
Para começarmos esta prosa, convidemos Umberto Eco e registremos aqui algumas passagens de seu preciso texto Ur Fascismo, “O fascismo eterno”[2].
A primeira coisa que Umberto Eco destaca sobre o fascismo é o culto à tradição. O que está em jogo não é tanto os preceitos da tradição em si, mas a aura de sabedoria e verdade que toda tradição comporta. Uma verdade anunciada de uma vez por todas, e que serve de guia interpretativo. Como consequência, não há porque ter avanços na aquisição do saber. Tudo já se sabe, de uma vez por todas, nesta verdade anunciada.
O culto à ação, em detrimento da reflexão, é outra coordenada fascista por excelência. Por isso a crítica depreciativa às Universidades, por isso a vida intelectual é coisa de comunista. “Pensar é uma forma de castração”, diz Umberto Eco. E se tem algo que o fascismo literalmente abomina é todo e qualquer tipo de castração que incida sobre a desmedida de seu poder.
Além disso, o fascismo eterno é racista por definição, por temer e abominar qualquer signo da diferença. O diferente é sempre um intruso. Igualmente, o fascismo é o reino da xenofobia, e clama seu amor pelo nacionalismo, como forma de sedimentar sua identidade e demarcar muito claramente quem são os de dentro e os de fora.
Outro ponto que lhe é característico: a luta pela vida se transmuta em vida para a luta. O estado de guerra é apregoado e precisa ser constante. O pacifismo é interpretado como conluio com o inimigo. E outro ponto, o qual decorre do anterior: assim como a guerra, o heroísmo é cultivado ao extremo. Mas como o heroísmo e a guerra são difíceis de sustentar a todo momento, o fascismo eterno desloca seu gozo com o poder para o campo do sexual. Dito de Umberto Eco: “Como o sexo é também um jogo difícil de jogar, o herói do fascismo eterno joga com as armas, que são seu Ersatzfálico, seu substituto fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma inveja permanente do pênis”[3]. Umberto Eco, ao que tudo indica, leu Freud…
E, se falamos sobre regimes totalitários, outra convidada ilustre é Hannah Arendt, e ela trouxe em sua bolsa seu magistral “Origens do Totalitarismo”, para conhecermos um pouco sobre o lugar do líder nos governos totalitários. Sobre este ponto, ela nos diz que o fascínio que os líderes totalitários irradiam reside na crença fanática que eles têm no si mesmo.[4] A retórica que sustenta sua suposta competência decorre da utilização das informações com o propósito de afirmar reiteradamente apenas uma opinião com “inflexível consistência”.[5] Isto porque o líder precisa sustentar uma aura de infalibilidade (o que hoje, em nossa Terra Brasilis e em termos francamente risíveis, podemos nomear como uma aura de imbroxabilidade…). Mas o que Arendt diz é que esta aura de infalibilidade não decorre de nenhuma inteligência superior, mas da interpretação das forças históricas ou naturais, as quais, sendo anunciadas e reiteradas incessantemente, ganham o estatuto de verdade. E aqui vemos, ao vivo e em cores, o matiz religioso que caracteriza os sistemas totalitários. Este matiz se apresenta como uma espécie de supersentido, que convence sedutoramente seus adeptos, e os instala no conforto das respostas prontas. Em termos políticos, tais verdades incontestáveis, fruto da manipulação de “informações oficiais” e da proliferação de Fake News (peço licença à Arendt, mas não resisti a atualizar suas colocações. Creio que ela compreenderia…) visam garantir que a palavra do líder tenha força de lei suprema, de forma a que ele resguarde a sua posição, ou seja, resguarde o lugar hierárquico de sua palavra, logo, do que enuncia como seu desejo. Assim, Arendt sublinha que não são as ordens do líder que conquistam a aceitação e a submissão, mas o desejo do líder, um desejo sempre mutável e inapreensível e, por isso, experimentado como onisciente e onipresente pelos seguidores.
Desde a visada da psicanálise, o fascismo é compreendido como um discurso, cujos contornos podem ser caracterizados como o que Lacan nomeou de Discurso do Mestre.[6] Todo discurso, Lacan propôs, é um modo de fazer laço social e de aparelhamento político do gozo no exercício do poder. Em se tratando de discursos de mestria, seu ponto de mira se dá, justamente, pelo desejo megalomaníaco de posse do saber total com vistas ao gozo com o poder total. Sendo um discurso, causa e efeito das vicissitudes históricas, o fascismo não é um mero evento, mas irromperá na cena sociopolítica, se repetirá a cada vez que uma determinada configuração sociopolítica assim o permitir e desejar. Digo configuração sociopolítica, mas, não percamos de vista que qualquer sistema político só viceja se for animado pelos sujeitos que orquestram a vida da História.
É o que Eric Santner, no interessantíssimo livro “A Alemanha de Schreber”, fundamenta com riqueza teórica. Nele, Santner se debruça sobre um traço característico dos regimes totalitários: o traço paranoico.[7]
Daniel Paul Schreber, juiz cuja carreira foi abalada por surtos psicóticos, era filho de Daniel Gottlob Moritz Schreber, eminente médico que se encarregou da educação dos filhos utilizando, entre outras providências, aparelhos ortopédicos que ele mesmo construía, e que obrigava os filhos a usá-los em seus próprios corpos, dia e noite. Um pai disciplinador ao extremo, cuja palavra nunca foi posta em questão[8].
Santner nos mostra que o pai de Schreber tinha um lugar de destaque social como médico, educador e escritor de livros, tinha um lugar de influência intelectual e cultural, logo, um lugar de prestígio e poder político. Ocupava um lugar que lhe permitia o exercício de poder sustentado em seu saber científico, e utilizava este saber para reinar como pai. Considerando o peso social do lugar ocupado pelo pai de Schreber – e, claro, do fato de que suas obras eram lidas, apreciadas e serviam de “manual” para outros profissionais – Santner faz uma associação entre a paranoia como estrutura clínica e sua eclosão como um traço que possibilitou a identificação dos alemães aos ditames do regime fascista e a consequente ascensão do nazismo. Levando em consideração o enlace entre a dimensão subjetiva e a dimensão política, a compreensão de que uma dimensão reverbera na outra, Santner utiliza uma expressão tão interessante quanto apropriada para se referir ao pai de Schreber: um pai em excesso, pai que reaparece, no delírio de Schreber, como perseguidor e castrador sobretudo na figura de seu psiquiatra, Flechsig[9]
Desde a psicanálise, podemos representar este pai em excesso como uma versão do pai que Lacan nomeou de pai imaginário, figura detentora de todo o poder, de todas as mulheres, de todos os gozos. Pai que encarna o superego obsceno e sádico, superego que não se curva à lei, que dela pensa ser o dono, e não o seu representante simbólico. Ou melhor, um superego que despreza a ordem simbólica e o valor da palavra como intermediadora dos conflitos entre os homens, como produtora da abertura de sentidos que esteia o diálogo e a reflexão. E por não fazer função de lei simbólica, tal superego “dá à luz” a um ego super, o ego de Schreber. Ego que perseguido e acossado pelo imaginário amordaçador do poder do pai, não consegue se defender de outra forma, a não ser esposando a paranoia, modo de resistência desesperado, cuja escrita de seu delírio, em suas “Memórias de um doente dos nervos”[10], termina por ser uma tentativa de fazer frente ao pior. Este pior que não ousa dizer seu nome, porque não nutre desejos por nomes, apenas por supersentidos, verdades prontas, acabadas, finais, que têm a intenção de calar quem quiser questioná-las.[11]. O fascismo, realmente, não suporta dividir espaços de saber. Não suporta que outras palavras venham concorrer com as suas puídas e anacrônicas palavras. Não suporta que a política aconteça sem o comando de sua “tendência literalizante do poder disciplinar”, como diz Santner, evocando a fecunda teoria do poder de Michel Foucault.[12]
Alguns anos antes de espocar a Segunda Guerra Mundial – mas já experienciando o socialismo e a ascensão do regime nazista –Freud teorizou sobre o enlace entre o subjetivo, o cultural e o político, sobre o que ressoa de mal-estar na cultura quando o superego cultural assume o comando de forma fascista. Lacan releu, de forma perspicaz, as teorizações freudianas sobre o superego cultural como agente da repressão, e apontou que o recrudescimento da religião vem lhe servindo de um lucrativo fermento para relançar a lógica que fomenta a segregação social e a tirania da raça, inaugurados pelo nazismo. Segregação e tirania que hoje também tomam como alvo de seu saber rasteiro, preconceituoso e espúrio, as questões de gênero.
Em nível da prática política, impossível não vermos que a identificação com lideranças onipotentes e carismáticas – característica fundamental dos bem-sucedidos governos totalitários de outrora – não desapareceu, mas apresenta hoje um vestiário atualizado, up to date: por um lado revela a identificação com líderes midiáticos e pragmáticos, que empunham sem rubor o discurso do empreendedorismo e da eficácia da gestão, governando países e cidades como se fossem suas empresas ou, o que é pior, o quintal de suas casas. E por outro lado, desvela a identificação com aqueles que se valem de um messianismo capitalista, pastores-empresários cujas “ovelhas” não almejam o reino dos céus, mas as mesmíssimas graças materiais e financeiras que as destes senhores. Em nome do bem, lucram como Mestres do pior, gozando com a face nua e crua do pior.
O pior causa. A causa é o pior. Colocar o pior em causa. Atentar para o que causa o pior.
A esta altura do texto, acredito que o leitor e a leitora estejam se perguntando a que eu me refiro quando utilizo a palavra pior. E então lhes digo, com as letras da psicanálise, que o pior é o mal radical que nos habita, e que Freud, com sua coragem intelectual, colocou em cena. Um mal que desliza, incessantemente, do sujeito ao político e vice-versa, reverberando como mal-estar na cultura. Este mal é estrutural, é uma das faces da Coisa freudiana que enlaça o sujeito ao Outro e ao outro. O assombro com esta constatação freudiana é o que leva o Eu a projetar no outro o mal que o habita e do qual nada quer saber. Perceber o outro como depositário do mal, do erro, da incompetência, da lascívia e de outros atributos não tão nobres, confere ao Eu sua deliciosa soberba narcísica. Estratégia por demais humana, da qual ninguém escapa, certamente. Mas, o espelho em que o Eu se mira, com o objetivo de incessantemente confirmar sua bela e bondosa imagem, não lhe poupa de refletir, também, o que desta imagem escapa aos ideais de perfeição. O mal expulso pela porta da frente, retorna, sorrateiramente, pela porta dos fundos. E pode vir acompanhado do pior.
Ao longo dos séculos, na política, o escoamento do mal, o seu banimento, é perseguido pelo desejo de fazer o bem, pelos esforços não tão desinteressados como parecem ser, de que predomine uma política do bem-estar. Tal política diz ter amor pela felicidade e pelo bem do outro, mas incorre no equívoco interesseiro de oferece-los como moeda de troca do gozo com o poder. Melhor seria, talvez, não temer tanto o mal-estar na política. Não para gozar com ele disfarçadamente, mas para poder reconhecê-lo e faze-lo passar à palavra. Modo linguageiro de lidar com o pior que combina bem com a noção de democracia. Mas, para isso, é preciso suportar o real da castração, da qual nenhum sujeito escapa, e que comparece a cada ato político, queiramos ou não.
A Alemanha de Schreber nos mostrou o risco de irmos do pai ao pior, mas ela também pode nos servir para pôr em questão qual versão do pai desejamos ter para não incorrermos no pior. Talvez seja preciso aqui sublinhar que não se trata, tampouco, de “banir o pai” e com ele qualquer forma de autoridade e de diferenças de lugares de poder. Se trata de resistir à tentação de crer no poder de Um só homem, de faze-lo Deus (ou de mito!), cuja palavra, por ser supostamente detentora de toda a verdade, oprime e cala quem não se curvar a Sua verdade. Trata-se, como propôs Lacan – e eu parafraseio, com a intenção de favorecer a compreensão do leitor – de preservar o lugar do pai, mas de resistir à tentação de se servir abusadamente do poder que este lugar é suposto possuir.
Em conclusão, um dado curioso e um desejo: o dado curioso – e deveras preocupante – é a informação de que o nome Schreber é conhecido na Alemanha pelas pequenas áreas ajardinadas – os Schrebergarten. Estas áreas, são uma homenagem a Moritz Schreber pelos seus trabalhos como médico e educador, pela sua contribuição à sociedade alemã sobre os benefícios do ar puro e do exercício físico.[13]
E o desejo, forte e esperançoso, meu desejo, é o de que no dia 30 de outubro, nos jardins do Brasil, brotem flores democráticas.
[1] Refiro-me ao tocante livro Em face do extremo. TODOROV, Tzvetan. São Paulo: Papirus, 1995.
[2] Trata-se de um Conferência de Umberto Eco, que pode ser lida em https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/43281/umberto-eco-14-licoes-para-identificar-o-neofascismo-e-o-fascismo-eterno. Eco faz uma leitura próxima de Todorov ao apontar a permanência do fascismo entre nós.
[3] ECO, idem.
[4] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Anti-semitismo, Imperialismo, Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 355.
[5] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Anti-semitismo, Imperialismo, Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 355, nota 1.
[6] LACAN, Jacques. (1969-1970). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
[7] Que fique bem claro que falar de um traço paranoico para aludir à um sistema político totalitário, só é viável teoricamente na medida em que se compreende que esta alusão visa teorizar sobre a produção de subjetividade que tem lugar como efeito deste sistema e de seus característicos modos de exercício do poder.
[8] Freud fez do caso Schreber um dos mais conhecidos e férteis de seus casos clínicos. FREUD, Sigmund (1911). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) descrito com base em dados biográficos (Caso Schreber). Belo Horizonte: Autêntica, 2021 (Obras Incompletas de Sigmund Freud).
[9] SANTNER, Eric. A Alemanha de Schreber: uma história da modernidade. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
[10] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
[11] Não à toa, lembra Santner, um dos argumentos centrais da junta psiquiátrica, a favor da interdição de Schreber não foi o fato de ter escrito suas “Memórias”, mas de querer publicá-las.
[12] SANTNER, idem, 1997.
[13] SANTNER, idem, 1997.
*A imagem que acompanha este texto pode ser localizada em https://www.estudokids.com.br/totalitarismo/