Maico Fernando Costa
Deborah Lima Klajnman
Paulo César Endo
Ao debater o nosso lugar enquanto psicanalistas na sociedade, descobrimos com a contundência merecida a história de Hélio Pellegrino. Um desses espaços foi as reuniões do próprio coletivo “Psicanalistas pela Democracia”. A partir destas discussões, procuramos investigar e construir projetos de trabalho que tenham o objetivo de confrontar as políticas fascistas que produzem violência, ameaçando de forma vertiginosa a democracia brasileira que não é afeita ao Estado capitalista (ENDO, 2012).
Dentre os tantos assuntos que dizem respeito a estes problemas que nos acossam, há uma necessária análise de implicação e de conjuntura que realizamos, respectivamente, resultantes nas seguintes impressões: uma parte significativa de nós analistas pouco ou nada está preocupada com as iniquidades sociais existentes em seus diversos planos e, junto a isso, vivemos possivelmente no Brasil, desde a redemocratização (período pós ditadura militar), sob a batuta do atual presidente, o retorno de graves e evidentes ameaças aos direitos humanos mais fundamentais à vida.
E, no que nos cabe, sentimo-nos impelidas e impelidos a buscar pelo nome de analistas que na história brasileira recente fizeram objeção a regimes sociais que incentivavam a tortura e estavam arraigados em sistemas governamentais ancorados em privilégios de classe, destilando ódio contra os chamados povos minoritários (pessoas inferiorizadas pela sua singularidade de classe, de raça, de etnia, de orientação sexual e de gênero). Por conseguinte, retornamos a nossa frase inicial por meio do levantamento da seguinte questão: qual representação de analista possuímos então para nos referenciar, como postura possível diante dos discursos e práticas que fomentam a destruição e o desprezo às pessoas pobres, pretas, indígenas, mulheres e LGBTQIA+?
Sem qualquer ode à presença de um certo “Messias”, “já ir” nos separando de figuras de “Mito”, para o momento, parece-nos uma condição sine qua non face aos nossos duros enfrentamentos – nós que nos colocamos ao lado das pessoas mais sensíveis e que mais sofrem os efeitos de um governo que favorece a pobreza, as condições de miserabilidade e os diversificados tipos de preconceitos sociais. Portanto, neste sentido, desejamos apresentar um pouco da biografia de Hélio Pellegrino, bem como compartilhar notas a respeito de sua prática psicanalítica e de suas reflexões em torno da sociedade de seu tempo. Este caminho foi construído por intermédio de seus livros póstumos, publicados por sujeitos que se inspiravam em seu legado político intelectual (MOURA, 1988; PELLEGRINO, 1988; 2004; PIRES, 1998; VIANNA, 1994).
Biografia e vida
Hélio Pellegrino foi um psicanalista, militante da causa operária, poeta, ensaísta e psiquiatra de formação (PELLEGRINO, 2004). Nasceu em Belo Horizonte (BH) no dia 5 de Janeiro de 1924 e faleceu no dia 23 de março de 1988 no Rio de Janeiro. Era filho de Braz Pellegrino e Assunta Magaldi Pellegrino. Foi casado com Maria Urbana Guimarães, a primeira das três companheiras com quem dividiu a vida, de seu casamento tiveram sete filhos. Junto de Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, constituiu amizades que perduraram por mais de 40 anos, compondo um grupo de amigos e poetas que ficou conhecido como “Os 4 mineiros”.
Segundo Pires (1988), desde jovem, Hélio tinha uma sensibilidade para a literatura, a filosofia e a política. Autor de inúmeros poemas, nutria um amor pela poesia. Sobre a filosofia, chegou a admitir que só não a cursou pelo fato de que na sua juventude não havia em Minas Gerais uma Faculdade de Filosofia. E em relação à política, Hélio sempre foi um rapaz inquieto e obstinado contra todas as formas de autoritarismo e de injustiças sociais, já aos 21 anos decidiu se candidatar como Deputado Federal, tal tipo de engajamento e militância se manteve por toda a sua vida. Foi inclusive, ao lado de outros críticos literários, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), para citar alguns deles: Antonio Candido, Sérgio Buarque de Hollanda, Lélia Abramo, Apolônio de Carvalho e Henfil (PIRES, 1998; PELLEGRINO, 2004).
No que toca aos caminhos que o conduziram à Psicanálise, certa vez comentou que se formou em Psiquiatria motivado pelo ímpeto de querer resolver “problemas pessoais” e sensibilizado pela humanidade que encontrava no sofrimento, contrária ao zelo científico médico:
Lembro-me de uma aula de fisiologia nervosa, no segundo ano. O doente, com tabes dorsal, ao centro do anfiteatro escolar, era um velhinho miúdo, ex-marinheiro, vestido com o uniforme da Santa Casa, onde estava internado. Suas pernas, hipotônicas, atrofiadas, pendiam da mesa de exame como molambos inertes. Jamais me sairá da memória o antigo lobo-do-mar, exilado das vastidões marítimas, feito coisa, diante de nós. Suas andanças pelo mundo, seus amores em cada porto ficavam reduzidos, em termos de anamnese, a um contágio venéreo ocorrido décadas atrás. O velhinho, contrafeito, engrolava o seu depoimento, fustigado pelos gritos de – “fala mais alto!” – com que buscávamos saciar nosso zelo científico. De repente, o desastre. Sem controle esfincteriano, o velho urinou-se na roupa, em pleno centro do mundo. Vejo-o, pequenino, curvado para a frente, tentando esconder com as mãos a umidade ultrajante. Seu pudor, entretanto, nada tinha a ver com a ciência neurológica. Esta lavrara um tento de gala, e o sintoma foi saudado com ruidosa alegria, como um goal decisivo na partida que ali se tratava contra a sífilis nervosa.
O velho ficou esquecido como um atropelado na noite. A aula prosseguiu, brilhantemente ilustrada. Os reflexos e a sensibilidade cutânea do paciente foram pesquisados com maestria. Agulhas e martelos tocavam sua carne – esta carne revestida de infinita dignidade, que um dia ressurgirá na Hora do Juízo. Meu colega Elói Lima percebeu juntamente comigo o acontecimento espantoso. “O marinheiro está chorando” – me disse. Fomos três chorar.
Entre lágrimas e urina, nasceu-me o desejo de me dedicar à psiquiatria. O choro do velho, seu desamparo, sua figura engrouvinhada, sobre a qual parecia ter-se abatido todo o inverno do mundo, tudo me surgiu de repente como o grande tema de meditação, a partir de cuja importância poderia eu, quem sabe, encontrar um caminho. A meus olhos, a tabes dorsal integrou-se numa pessoa humana visada como todo. Esta totalidade única e indissolúvel deveria poder tornar-se objeto de ciência. Já ouvira falar em Freud, nos abismos do inconsciente, na medicina psicossomática, que dava seus primeiros passos (PELLEGRINO, 2004, p. 24-25).
Entretanto, o abandono da Psiquiatria e o encontro assumido com a Psicanálise teriam começado diante de um incômodo frente à tradição médica da primeira,
(…) anterior à psicanálise limitava-se [a psiquiatria] a descrever e a catalogar as manifestações psicopatológicas, buscando-lhes não o significado profundo, em termos de história humana, mas o substrato neurofisiológico que as pudesse explicar. Tratava-se, em suma, de explicar, não de compreender (PELLEGRINO, 2004, p. 27).
Por outro lado, para ele, a Psicanálise era, “(…) essencialmente, a ciência da liberdade humana” (PELLEGRINO, 2004, p. 26), o instrumento capaz de captar e compreender a complexidade do ser humano. E foi movido por um desejo de se tornar psicanalista, além de estar vivendo um período de “crise existencial”, que Hélio decide com Maria Urbana se mudar para o Rio de Janeiro – cidade na qual tem a experiência de duas análises pessoais, primeiro com Iracy Doyle e depois com Catarina Kemper.
Hélio Pellegrino, era uma figura controversa, boêmio, de temperamento explosivo e dedicado intensamente ao trabalho, de acordo com o que encontramos em suas biografias (PIRES, 1998; PELLEGRINO, 2004), possuía uma formação cristã que se ancorava na luta social, posicionava-se como um psicanalista marxista. Consumava confrontar a ditadura militar e foi em razão disso que chegou a ser preso por alguns meses, sendo acusado de líder comunista (MOURA, 1988; PELLEGRINO, 1988; 2004; PIRES, 1998; VIANNA, 1994).
Colocados estes elementos de sua história, interessa-nos a prática e a leitura particular de Hélio, a nosso ver, original em relação à Psicanálise. A articulação que ele, enquanto psicanalista, construía em torno da sociedade brasileira de sua época, em suas análises críticas referentes à opressão, à tortura e ao sofrimento da classe trabalhadora, ainda nos parece fundamental. Como anunciado acima, em breve Psicanalistas pela Democracia apresentará material inédito sobre a vida e a obra de Hélio Pellegrino, fruto das pesquisas recentes de Maico Fernando Costa e Deborah Lima Klajnman na busca de documentos, artigos e entrevistas que revelassem algo além do já sabido por esse personagem incisivo da psicanálise e da história brasileira. Esse conjunto comporá mais um dos projetos especiais do PPD. Aguardem!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ENDO, P. C. Política, cultura e mercado num mundo sem valores: diálogos entre psicanálise e estética. Trivium – Estudos Interdisciplinares, v. 4, n. 1, p. 65-72, 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/trivium/v4n1/v4n1a08.pdf. Acesso em: 03 de janeiro de 2022.
MOURA, J. C. (Org.). Hélio Pellegrino: A-DEUS. Petrópolis: Vozes, 1988.
PELLEGRINO, H. A burrice do demônio. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
PELLEGRINO, H. Lucidez embriagada. São Paulo: Planeta do Brasil, 2004.
PIRES, P. R. Hélio Pellegrino: a paixão indignada, 2 ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Prefeitura, 1998.
VIANNA, H. B. Não conte a ninguém…: contribuição ao histórico das sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1994.