O que aprendemos com Bruno Pereira e Dom Philips – Por Jaquelina Inbrizi e Sheila Saad

O que aprendemos com Bruno Pereira e Dom Philips – Por Jaquelina Inbrizi e Sheila Saad

Não foi um fato isolado os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, pois há um tipo de “repetição compulsiva do trauma” (Türcke, 2010) na terra brasilis, principalmente quando fazemos um paralelo com o que aconteceu com os ambientalistas, Chico Mendes, Maxciel dos Santos, Paulino Guajajara e Dorothy Stang, e com a representante política, Marielle Franco (no caso, à sua luta pela garantia de direitos da população LGBTQI+ e pela proteção das juventudes periféricas). Há muito tempo os povos indígenas e as florestas sofrem com o descaso de políticos e do Estado brasileiro como um todo. E Bruno e Dom sabiam disso. Por este motivo, corajosamente, se tornaram defensores do ambiente que nos acolhe e dos povos originários, a despeito das ameaças contra suas vidas. O primeiro, como profissional da Funai, depois, da Univaja – União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, e o outro, como jornalista radicado no Brasil há dez anos (voluntariamente, escolheu lutar a nossa luta!).

Não há palavras suficientes para agradecer tudo o que fizeram por nós, povo brasileiro. Partiram desta vida como heróis. Fizeram pela Amazônia o que a grande maioria não tem coragem de fazer. Escancararam as atrocidades corriqueiramente cometidas contra jornalistas, ambientalistas e quem mais ouse ameaçar o capital predatório (Ribeiro, 2022), que ouse ameaçar aqueles que chafurdam nos prazeres advindos do dinheiro sujo, ganho à custa do sofrimento da natureza, de outros semelhantes e dos animais. Que essa imensa comoção diante da violência perpetrada ao Bruno e Dom  não seja em vão.

Que essa tristeza que se abateu sobre os brasileiros e brasileiras, minimamente atentos ao que se passa ao seu redor, não seja em vão. Desde as eleições de 2018, vimos avançar um discurso presidencial que legitima os feminicídios, o uso indiscriminado de armas, os genocídios contra a população em situação de vulnerabilidade socioeconômica, as queimadas, o garimpo ilegal, entre diversas outras aberrações que recheiam os jornais diários, nos enchendo de temor e incertezas. Somente como consequência da pandemia da Covid 19, contabilizamos mais de 660 mil mortes.  Vimos crescer a impunidade, o descaso, a boçalidade, truculência, indiferença e apatia: “não estamos alegres, é certo, mas por que razão haveríamos de ficar tristes?” (Maiakóvski, 1927).

Infelizmente, são inúmeras razões, digníssimo poeta. Nossa dor é coletiva. Necessitamos urgentemente de uma humanidade que acolha as nossas diferenças e nos estimule a retomar o entusiasmo e a alegria. Não é possível aceitar passivamente que o Brasil volte para o mapa da fome. Queremos notícias melhores, que nos encham de orgulho, não de vergonha. Esta última, por estarmos restritos a nossos lares, como patetas, enquanto gente sem caráter e vil toma decisões cruciais secretamente e à nossa revelia. Se locupletam do dinheiro público e dão risada da desgraça alheia: e daí?

Penso que o incômodo de estar bem alimentada e dormindo sobre camas macias seja angustiante para uma parte da população, que não sabe como reagir, e por este motivo, se afunda envergonhada numa depressão cívica (Losso, 2022),  em que a alegria é  superficial, não mais verdadeira como foi um dia. Estamos aqui nos referindo a um tipo de estado de ânimo singular em suas articulações com o contexto sociopolítico, descrito por Losso (2022) como um sofrimento psíquico que advém das ininterruptas agressões ao nosso sistema democrático; do retrocesso nas conquistas de direitos; da destruição paulatina das nossas universidades públicas e do ataque direto aos institutos de pesquisa e seus pesquisadores e suas pesquisadoras; do tipo de notícias privilegiadas por nossos jornais e nossas redes sociais, que enfatizam a informação para ser consumida rapidamente com temas menos relevantes para a edificação do trabalho do amor (Costa, 2022); muitos são os conteúdos ressaltados que suscitam a nossa compulsão à repetição traumática que traz a cada dia destaques para os ataques ao nosso bem comum vindos de quem menos poderíamos esperar.

Essas cenas são repetidas à exaustão, e nós, espectadores, nos transformamos em receptores autômatos de um conteúdo e de uma imagem que não foram por nós escolhidos, alguns podem se acostumar com esta engrenagem que dessensibiliza e cansa a vista e a alma. Inspiradas nas ideias de Christophe Trücke (2010), podemos afirmar que, ao nos acostumar,  parece que infligimos o horror em direção a nós mesmos. Este é o mecanismo da compulsão à repetição traumática, que para o autor ele é constitutivo da cultura e da subjetividade humana. Nós somos feitos historicamente deste mecanismo de destruição criativa. No caso específico do sujeito na contemporaneidade, em convivência constante com a tecnologia e as redes sociais, ele incorpora o que o atemoriza, como, contraditoriamente, a única forma de se livrar ou se defender daquilo que lhe faz mal. Ou seja, ao banalizar o mal que nos circunda, talvez estejamos incorporando o horror e repetindo detalhes dos mesmos gestos que nos horrorizam.

São os choques contemporâneos presentes nos nossos sonhos, cada vez mais transformados em pesadelos que tentam lidar com os acontecimentos traumáticos (Gondar, 2016) da contemporaneidade. Um sonhar sem fantasia que vai do sonho à dor (Pontalis, 2005). O tempo para a reflexão e para transformar o martírio em processo de criação é exíguo em uma sociedade que exige respostas rápidas, cujos critérios são a utilidade e seus valores de troca. Portanto, estamos sob os auspícios de um novo regime da atenção (Trücke, 2010) que nos deixa exaustos e sem forças para a luta que vale à pena, antes preocupados com as urgências dos afazeres vinculados às produtividades do mundo da mercadoria. O que nos impede de perceber aquilo que destoa do sempre igual e, assim, mantém a máquina a girar sem sair do lugar, uma engrenagem perversa que diminui a nossa energia vital. O trabalho da compulsão à repetição suscita tanto esforço quanto o trabalho do amor, este sim na busca de construção de novos elos com os seres viventes.

Jurandir Freire Costa (2022) resgata a terminologia “trabalho do amor”, inspirada nas ideias do psicanalista Michael Balint e na produção teórica de Freud. O pai da psicanálise postulou o trabalho do luto, o trabalho do sonho, o trabalho psíquico de elaboração dos acontecimentos traumáticos, como exemplos de processos psíquicos que exigem energia dos sujeitos, seja para criar o novo, seja para manter o sempre igual. De acordo com Costa, precisamos cuidar de nós mesmos para que não sejamos também os agentes de maus tratos para com os outros e para conosco, e, para isso, seria necessário escolher melhor o que assimilamos, evitar não reagir da mesma forma e no mesmo tom daquilo que representa algum tipo de ameaça à nossa autoconservação. Ou seja, há que se evitar um revidar contra nossos pares daquilo que sentimos como força superior a nos impingir medo, como os ataques à democracia e os retrocessos nas conquistas dos direitos, fruto das ações perpetradas pelos representantes do poder executivo no governo federal a despeito de certa resistência de parte de alguns representantes do legislativo.

O que produz energia vital são algumas iniciativas belíssimas que pipocam em diversos lugares, capitaneadas por seres humanos generosos e idealistas, como foram Bruno e Dom. Estes sim parecem se esforçar para manter o trabalho do amor, que se aproxima do “amor fati” que se amplifica em direção  à humanidade, natureza e aos seres viventes. Gente que está nas ruas distribuindo alimento e outros auxílios, fazendo o que a grande maioria também deveria estar empenhada em fazer, diariamente, para dignificar e dar esperança à humanidade.  São as ONGs e associações de bairro, iniciativas do terceiro setor que fazem o trabalho destinado aos nossos governantes, eleitos democraticamente pelo mesmo povo que padece.

No campo das artes também podemos fazer referência ao convite de Chico Buarque para “Que tal um samba?”; à convocação de Muniz Sodré (2022) para nos sentarmos em roda de modo a entoar canções que remontam às nossas negritudes e brasilidades; à chamada de Deborah Colker nos convidando para refletir sobre “A cura” do que não tem cura, indicando as encruzilhadas possíveis entre arte e culturas africanas. No campo da religião temos o padre Julio Lancellotti; no âmbito da política vemos a possibilidade de construção de aliados em campos nunca imaginados, como aqueles que desistem de suas candidaturas com vistas à construção de uma frente antifascista, por meio da retomada de articulações com os movimentos populares como MTST.

No campo do humor, característica tão brasileira, temos as críticas tão certeiras do programa GregNews, no qual Gregório Duvivier (2022), por meio de seus chistes e suas piadas, produz risos e reflexão.  Esses momentos fugazes, quem sabe, possibilitem reavivar a nossa consciência crítica à dominação rumo a uma posição subjetiva de resistência à ela em quaisquer de suas modalidades. Nós que aqui escrevemos este texto, já estamos sentindo um bom agouro, ao elencar e inventariar os vários  exemplos do trabalho de amor advindos de diversos setores da sociedade brasileira, pois precisamos sim que eles sejam destacados, visibilizados e espraiados por todos os cantos do planeta. Há sim um movimento coletivo que visa a reconstrução de um país.

O Brasil está doente. No próximo outubro, teremos a oportunidade de sair dessa letargia doentia. Um povo sem esperança é um povo triste, não vai à luta. As urnas eletrônicas, mais uma vez, vão nos oferecer a oportunidade de mudança e de fortalecimento da democracia. Porém, seria simplista demais acreditar que somente ao eleger um novo representante dará ao calejado povo brasileiro uma solução de longo prazo para suas mazelas. Para realmente espelhar a sua grandeza, o Brasil precisará passar por um processo abrangente e generoso, que atenda a uma nova ordem mundial, repleta de sabedoria, generosidade e cuidado. Rumo a um esforço coletivo na construção do trabalho do amor.

Essa direção envolve uma revolução profunda na estrutura de poder, como a descriminalização das drogas, realizada de forma planejada e cuidadosa, a Educação Básica, as universidades públicas e os professores com condições para desenvolver seu trabalho com qualidade, a reengenharia das grandes cidades, um sistema de saúde pública potente e o respeito ao meio ambiente, aos povos indígenas, aos animais e a todas as minorias, entre outras. Ou seja, precisamos fortalecer os espaços políticos e as instituições que valorizam a cultura, a saúde, o espaço público e as nossas florestas.

E para discutir abertamente esses temas é preciso realmente ser impávido colosso. Porque o que se viu desde o ano de  2016, com o golpe parlamentar, foi um uso raso da política por parte dos representantes do legislativo e executivo vinculados à extrema direita, todos visando apenas obter ganhos para si mesmos, sem interesse em abordar questões fundamentais e polêmicas. O povo brasileiro precisa de uma doce mãe gentil e corajosa, não de símbolos retrógrados de um patriarcado bélico e ineficaz. É uma ferida gigante pela própria natureza que precisamos curar, para existir futuro sob um formoso céu, risonho e límpido. Não há grandeza neste presente repleto de ausências e omissões. Sigamos as trilhas do trabalho do amor de Bruno Pereira e Dom Philips, sem receios e melindres em conjugar o verbo esperançar, cunhado por outro dos nossos grandes, também tão maltratado pelo atual governo federal, o nosso educador Paulo Freire.

Este texto foi escrito em memória dos Brunos, Chicos, Doms, Dorothys, Paulos, Marielles: presentes! E, também, para ajudar as autoras a saírem de certa depressão cívica. A escrita que cura em conjugação com os verbos sonhar e esperançar.

By Gabriela Casanova

** Jaquelina Inbrizi é professora na Unifesp, nasceu em Guaxupé e mora em Santos

** Sheila Saad é jornalista e mora em Guaxupé, Minas Gerais

Referências:

BUARQUE, Chico. “Que tal um samba?”. https://www.youtube.com/watch?v=1yW77WeLYYc

COSTA, Jurandir Freire Costa. Entrevista para a Ação de Extensão Clínicas Sociais, Psicanálise e Filosofia. https://www.youtube.com/watch?v=OSttyTso02o

DUVIVIER, G. Filhos. https://www.youtube.com/watch?v=dCK2zK-riUE

GONDAR, Jô. Trauma, cultura e criação: Ferenczi com Christoph Türcke. Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

LOSSO, Eduardo Guerreiro. Depressão Cívica: sofrimento psíquico por agressão à democracia. In: https://revistacult.uol.com.br/home/depressao-civica-e-agressao-a-democracia/

MAIAKÓVSKI, Vladimir – E Então, Que Quereis? Poema extraído do livro “Maiakóvski – Antologia Poética”, Editora Max Limonad, 4ª. Edição/1987

https://www.escritas.org/pt/t/11185/e-entao-que-quereis

PONTALIS, Jean-Bertrand. Entre o Sonho e a dor. Aparecida. SP: Ideias & Letras, 2005. (Coleção Psicanálise Século 1)

RIBEIRO, Sidarta – Sonho Manifesto, Dez Exercícios Urgentes de Otimismo Apocalíptico, Companhia Das Letras – 2022.

SODRÉ, Muniz. O samba de Chico Buarque. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/muniz-sodre/2022/07/o-samba-do-chico-buarque.shtml

TÜRCKE, Christoph. Filosofia do Sonho. ljuí : Ed. Unijuí, 2010 (p.127)