Por que continuo a lutar? Porque estou vivo!
Davi Kopenawa
Uma canção indígena, imagens de uma estrada à noite , a voz de Arnaldo Antunes lendo seu manifesto Isto não é um poema escrito em homenagem a Moa do Catendê, assassinado no dia da votação do primeiro turno nas eleições no Brasil em 2018. É essa a porta de entrada do filme Um poeta na Amazônia, de José Huerta, cineasta espanhol , radicado em Paris. As palavras do músico Arnaldo Antunes dão o tom do que veremos no filme. Diante de um cenário obscuro e de urgência, em que “o Brasil nega qualquer Brasil possível, cega qualquer futuro possível” como reagir? O filme de Huerta parece ser uma resposta a essa cena inicial. Ele nos leva ao coração da Amazônia , nos apresentando o trabalho do poeta César Felix, que criou um polo de resistência cultural em Rio Branco (AC).
Félix abriu um espaço de encontros em um café e o nomeou Café com Poesia. Assim, toda uma comunidade de pessoas que se sentem excluídas e ameaçadas por suas opções políticas e sexuais, encontram ali um lugar de acolhimento, de escuta, de troca de ideias e de experiências. Huerta tem um olhar atento para o Brasil há anos e já fez outros documentários em nosso país, como “Urubus” (2007), “Em direção a uma terra sem dor” (2007), “Uma semana em Parajuru” (2009), “To Blo Dayi – viagem às origens africanas da capoeira” (2015) e outros. Já filmou também na Bolívia, Peru, Colômbia, Senegal, Benin, Madagascar.
Estamos diante de um filme que quer auscultar o coração da floresta e daqueles que resistem bravamente a sua destruição. Não lutam só pela sua sobrevivência, mas pela de todos nós, pois sabemos bem que a floresta amazônica significa vida para todo o planeta. As motosserras, os “dragões de ferro”, como nomeia o poeta, abrem feridas profundas e, se não nos acordarmos a tempo , perderemos tudo. O filme tenta registrar um pouco dessa dor no testemunho de muitas pessoas. Comovente o relato de Maria Zenaide, a parteira de origem indígena que acompanha o nascimento de muitas crianças enfrentando situações de precariedade. Uma figura musical, compositora, e que insiste em nos dizer que a música traz saúde. Huerta esta atento à composição dessas cenas e a filma também à noite, com uma pequena vela nas mãos adentrando a mata , como um vagalume lutando pela vida. Em uma de suas músicas ouvimos “ os primeiros vagalumes são como as mulheres de força”.
Outro vagalume que ilumina o filme é Sebastião Pereira, o Tião. Entramos com ele na floresta onde ele mostra algumas de suas riquezas . Ele raspa a casca da seringueira e mostra o seu efeito cicatrizante quando colocado em um ferimento. Diante de um Jatobá, abre um pequeno orifício e vemos jorrar um líquido de dentro da árvore que tem uma função medicinal para anemia. É antinflamatório e, segundo ele, é também o viagra da floresta. Nesta cena surge então a pergunta: por que motivo se iria derrubar uma árvore como esta?
Um dos fios condutores deste filme é um verso de César Felix “Se oponha com sonhos, não com lágrimas”. Portanto, ao mostrar alguns cenários de destruição vemos imediatamente também a força destas comunidades em tentar responder , como podem, a tantas violências. O conhecimento da história é fundamental nestes movimentos, e o filme nos ajuda a construir uma narrativa da lógica de “ocupação’ da Amazônia, sobretudo a partir do período da ditadura militar no Brasil quando se pensava a floresta como um grande vazio. Sabemos bem a quem interessava ocupar estes “vazios” fazendo terra arrasada de tudo que viam pela frente : flora, fauna e comunidades indígenas e ribeirinhas. Esse cenário não mudou muito e só se agravou nos últimos anos em que as áreas de destruição da floresta aumentaram assustadoramente e o número de assassinatos e expulsão de indígenas de suas terras, também.
O filme termina com um chamado de esperança, quando César Felix e José Huerta visitam uma comunidade indígena dos Ashaninka, quase na fronteira com o Peru. São os povos dos pássaros, e, assim, certa imagem de liberdade é transmitida na forma como vivem. Em uma das cenas finais, vemos um indígena se pintando silenciosamente enquanto ouvimos uma fala do atual presidente dizendo o seguinte: “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola”. Mas a beleza da cena é mais forte, e a fala deste indígena responde à ameaça. Ele diz em alto e bom tom: ‘Somos brasileiros, e é neste país que vamos lutar pela sobrevivência”. Vamos precisar de muitos poetas na Amazônia, e este filme não deixa de ser um chamado, pois a sobrevivência é para todos nós.
Link para assistir o filme
Texto publicado originalmente no Caderno DOC do Jornal Zero Hora em 13 de agosto de 2022.