Brasileiros, se quiserdes ser republicanos, cuidai-vos!!! – Por Luís Henrique Ramalho Pereira & Vanessa Solis Pereira

Brasileiros, se quiserdes ser republicanos, cuidai-vos!!! – Por Luís Henrique Ramalho Pereira & Vanessa Solis Pereira

Franceses, só mais um esforço

Se quiserdes ser republicanos.

SADE

Presenciamos o apogeu em nosso país de modos de operação e de padrões de “solidariedade social mínima”, promovido pelo representante maior do executivo da nação. Um chefe do executivo que se autodenuncia: “Temos um chefe do executivo que mente”. Isso implica em uma injunção de operadores no campo da política de estado, associado a políticas econômicas cada vez mais comprometidas com o desmantelamento de um pacto de bem-estar social, uma vez que o ato populista das migalhas passa ser o “projeto Brasil”. O que essa íntima relação revela? Um fortalecimento de um modelo de gestão marcadamente violento que visa a destruição em diferentes campos e setores da sociedade. A violência como sintoma dessa gestão invadiu os mais variados territórios: do ambiental à defesa, da educação à saúde e ao econômico, mas fundamentalmente a todas as políticas protetivas de etnias, de raça, de gênero, de segurança pública, de cultura e de liberdade. O centro nevrálgico situa-se exatamente aí: um neoliberalismo absolutamente moral e um Estado sob a presença da teocracia sombria e corrupta. Esta combinação amplifica a violência, notavelmente descrita no livro de Jeferson Tenório “O avesso da pele”, no qual o racismo brasileiro é dissecado com uma potência particular. O autor narra sucessivas cenas que apontam para a estrutura racista de nossa cultura, porém na face do fascismo liberal brasileiro o racismo passa a ser um dos elementos mais significativos da estética da violência impetrada pelas atuais políticas de Estado. Ou seja, a implementação de um discurso de raça, há muito questionado, passa a ser um elemento manipulado para desferir o tão planejado discurso de ódio. Para além das estruturas a estética da violência fomenta e multiplica a aniquilação das narrativas das diferenças, assim como neutraliza o movimento discursivo da diversidade.

A aliança do neoliberalismo com a face incansável/inesgotável do fascismo contemporâneo vem se mostrando extremamente promissora aos olhos do mercado, pois quais e quantas dicotomias foram superadas? Onde o Estado foi parar em sua articulação com o mercado e com a sedução teocrática? Uma teocracia corrupta marcada por atos decisórios de políticas de Estado estabelecidas no púlpito pastoral. De um lado o apogeu do conceito de produto/mercado e, de outro, o controle autoritário de um Estado que tudo vê (olhar míope) e tudo manipula, mas pouco oferece de seguridade social.

Tais articulações e concepções engendram-se de forma a associarem-se a um discurso sexista, restritivo e protecionista da “casa-grande”. Uma articulação que nos conduz ao que o psicanalista francês Charles Melman (2003) chama de “gozar a qualquer preço” (p. 112).

“…a emergência do que eu chamaria um fascismo voluntário, não um fascismo imposto por um líder e uma doutrina, mas uma aspiração coletiva ao estabelecimento de uma autoridade que aliviaria a angústia, que viria enfim dizer novamente o que se deve e o que não se deve fazer, o que é bom e o que não é, enquanto que hoje estamos na confusão” (MELMAN, 2003, p. 38).

As multifaces do fascismo contemporâneo manifestam-se de diferentes maneiras, adotando relevos e nuances cada vez mais complexos e obscuros, partindo de uma aproximação arbitrária acerca de dois conceitos aparentemente opostos: o fascismo e o liberalismo. Assistimos impactados à composição das narrativas existentes na sociedade, construindo uma densa cortina de fumaça (literalmente quando o assunto é a devastação da Amazonia), fazendo “passar a boiada” de inúmeros projetos desarticuladores que definem as condições de vida e trabalho do povo brasileiro, e que afetam diretamente as condições de convivência social na polis. A filósofa e escritora Marcia Tiburi nomeou muito bem em suas redes sociais o que estamos vivendo com este governo: “O país inteiro está sob tortura simbólica e física desde então”. O “desde então” se refere ao dia 17 de abril de 2016, quando o atual presidente elogiou o torturador de Dilma, Brilhante Ustra, sob os olhares das autoridades e sem sofrer consequência alguma por esse ato violento, inaugurando aí, publicamente, sua política de ódio e destruição.

Aqui um parêntese para a demonstração cotidiana da violência, enquanto uma arma sistemática contra o povo brasileiro. No livro ‘O avesso da pele” Jeferson Tenório descreve:

“Quando ele disse isso, você lembra que um dia já tinha sido algemado como um bandido. Isso aos catorze anos, quando você estava num ponto esperando o ônibus, em Copacabana, para ir encontrar seu padrasto. Foi aí que o ônibus parou e dele desceram alguns moleques que apontaram para você dizendo: foi ele, foi ele. Você não tinha a mínima ideia do que estava acontecendo, e num impulso decidiu correr e, ao olhar para trás, viu um monte de gente correndo atrás de você. Por um instinto de sobrevivência você entrou em uma galeria de lojas, na rua Barata Ribeiro. Você entrou no primeiro lugar aberto que encontrou: uma igreja evangélica Assembleia de Deus. Aos trinta anos você até pensou que deveria ter se tornado pastor para retribuir sua salvação. Você entrou e se escondeu atrás de um dos bancos. A igreja estava vazia. Ficou ali, quieto, esperando, escutando a própria respiração. Mas então ouviu gritos: ele tá aqui, ele tá aqui. E de repente a igreja foi invadida por sabe-se lá quantos daqueles moleques sedentos por vingança. Um deles te achou e te apontou. Em instantes vieram todos para cima de você. Socos e chutes na cabeça, na barriga e no rosto, até você começar a sentir o gosto enjoativo do sangue. Você não ofereceu nenhuma resistência, apenas se colocou em posição fetal e tentou dizer: eu não fiz nada. Depois começou a perder os sentidos…você ainda pode ouvir um deles dizer: nós vamos te passar neguim, tu vai morrê agora, neguim. (TENÓRIO, 2020, p. 17 e 18).

A violência imprime a aliança de ao menos dois estatutos, o político e o econômico, de forma a demarcar um quadro socialmente instável e abalado do laço social vigente. Portanto, a face nefasta do racismo ancora sua potência narrativa na legitimidade das forças políticas do Estado de Direito.

Sendo assim, a ligação inevitável da incidência de operadores do quadro político/social nos apresenta pistas valiosas para compreender, já desenhadas na história, um modo de manutenção e ascensão cada vez mais violenta e perigosa do fascismo liberal. Partindo então das ideias de tal articulação política podemos passar a repercutir as suas faces determinantes, tanto quanto aos quadros de mediocrização da vida, de desarticulação de garantias e direitos, quanto aos de massacres promovidos por políticas de Estado que apontam a violência e a perseguição como estratégias de poder e vigilância sobre toda e qualquer narrativa “diferente” ou divergente. Como foi o caso mais recente de violência brutal extrema, em Foz do Iguaçu, em que um apoiador de Bolsonaro invadiu a festa de aniversário do tesoureiro do PT, Marcelo Aloizio de Arruda, de 50 anos, e o assassinou a tiros por divergências ideológicas e políticas.

Na medida em que definimos uma apresentação mais pontual acerca dos conceitos políticos aqui adotados, ou seja, situamos a articulação existente entre o fascismo contemporâneo e sua estética neoliberal, aproximamos a ideia apresentada por Vladimir Safatle (2017) de que o liberalismo e sua nova roupagem é fundamentalmente um discurso moral de caráter disciplinar. Ao articularmos esses dois âmbitos políticos partimos da definição de que o fascismo e o liberalismo avançam para além de uma operação política/econômica que se relacionam de forma a definir uma série de operações no campo do comportamento e dos ideários do século XXI. Tal ideário de prosperidade, sucesso e progresso, definidos por um nacionalismo liberal e um caráter liberalista conservador passam a marcar de forma impositiva o campo do trabalho, das relações sociais e, inevitavelmente, o campo do Direito. Portanto, tais elementos anteriormente citados passam a ser atacados de forma sistemática no novo modelo de articulação aqui chamado de fascismo liberal.

Vejamos as definições: Liberalismo, substantivo masculino, doutrina dos partidários da livre-empresa, que se opõe ao socialismo; mais particularmente, teoria segundo a qual o Estado não deve intervir nas relações econômicas que existem entre indivíduos, classes ou nações. Fascismo, substantivo masculino, regime político fundado por Benito Mussolini, na Itália em 1922, baseia-se no despotismo, na violência, na censura para suprimir a oposição, caracterizado por um governo antidemocrático e ditatorial (HOUAISS, 2009).

Por que chamarmos o modelo político/econômico atual de fascismo liberal?  Segundo Umberto Eco (2018) em seu instigante livro/testemunho “Fascismo eterno”, vivemos um fantasma perpétuo, algo que irá nos acompanhar, mas que não podemos nunca deixar de lembrar já que a todo o momento, ele está à espreita, ele se disfarça e busca novas formas. Segundo o pensador italiano “O fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitária, nem tanto por sua brandura, mas antes pela debilidade filosófica de sua ideologia” (p. 26 e 27). Portanto, a aproximação de diversas roupagens do fascismo atual ao fascismo histórico italiano é entre outras acoplagens a representação mítica do líder/pai, adotando um caráter retórico e desprovido de filosofia, além de uma “liturgia militar” (ECO, 2018, p. 29).

Para o programa fascista ser efetivamente executado era necessário que se elegesse um adversário claro e inequívoco: o comunismo. Sua face atual não deixou de lado seu inimigo histórico, ampliou sua pregnância e seus tentáculos, ou seja, o inimigo mais do que nunca se transformou em um poderoso adversário a ser definitivamente abatido. Neste momento histórico é que a aliança entre fascismo e liberalismo se dá, irmanados em torno não somente de um inimigo histórico, um opositor delirante, mas em um impedimento real para os planos políticos e econômicos dos dois modelos, ou seja, a exaltação do mercado. Eco (2018) afirma que “o fascismo italiano convenceu muitos líderes liberais europeus de que o Novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista (p. 30 e 31).

Para melhor definirmos a articulação entre esses dois sistemas, torna-se necessário ressaltar que o fascismo histórico era, inicialmente, um regime totalitário recheado de contradições, ou seja, se autoproclamava uma ordem revolucionária que ancorava as amarrações entre a igreja, a educação e o livre mercado, campo fértil para a aproximação dos liberais extremamente interessados na ampliação de um novo e expansivo marco regulatório econômico.

A aproximação entre esses sistemas se dá de diferentes formas: a primeira enquanto estatuto de sujeito, ou seja, o liberalismo aporta as suas narrativas no sujeito/mercado, apostando que o mercado passa a ter estatuto categórico.  Tal narrativa passa a definir a forma de acoplagem atual com o fascismo.  Como nos afirma Dufor (2005) “A mercadoria, como os capitais, com efeito, deve poder circular sem entraves nas fronteiras e, se possível, sem fronteiras – nos referimos às normas estabelecidas pelas instâncias de gestão dos investimentos estrangeiros e do comércio internacional” (p. 76). A segunda é a escalada discursiva que conecta a narrativa democrática a do utilitarismo de mercado, ou seja, o mercado deve funcionar irrestritamente para garantir que o desejo social possa ser ilimitadamente saciado, portanto, a narrativa do livre mercado reafirma a sua íntima relação com os objetos. Dufor (2005) explicita apontando que “a narrativa da mercadoria apresenta os objetos como garantia de nossa felicidade e, ademais, de uma felicidade realizada aqui e agora” (p. 76).

Estabelecermos essa íntima relação entre Fascismo e o Neoliberalismo colabora para compreendermos os agentes profundamente envolvidos com a violência de Estado e os impactos no laço social.    Tal articulação aproxima às instâncias subjetivas e objetivas da violência em seu operador na matriz da polis, ou seja, a íntima relação da violência e suas marcas em uma sociedade ainda tão carente de políticas de promoção e prevenção de saúde, segurança, direitos civis etc.

Ao reconhecermos os fenômenos subjetivos da violência, as suas incidências no campo da saúde, da educação, da arte e da micropolítica, passamos a compreender os fenômenos como produtores de narrativas que invadem e fomentam verdadeiras máquinas de guerra. O laço entre a garantia de segurança, confiança e felicidade oferecida pelo pai mítico, agora encontra uma acoplagem bem mais atual e eficiente, a felicidade oferecida pelo mercado, assim como, o empreendedorismo religioso, ou seja, o encontro ilimitado com o objeto de prazer. A ilusão de segurança e de prazer ilimitado passa a figurar como narrativas fantásticas que apontam para uma singularidade do assujeitamento.

A cultura do terror

O colonialismo visível te mutila sem disfarce: te proíbe de dizer, te proíbe de fazer, te proíbe de ser. O colonialismo invisível, por sua vez, te convence de que a servidão é um destino, e a impotência, a tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser. (GALEANO, 2008, p. 157).

Cioran (1949/2011) em “exercício de insubmissão” nos atenta para as articulações que compõe o inexplicável ato de resistir, pois resistir consiste em um ato desesperado de manter-se interrogando a si e ao outro. Não é um simples defender-se, mas uma ação que propõe depurar isto que chamamos sociedade, quais as suas forças, quais as suas motivações e quem são os nossos inimigos. Para ele cada instante é a abertura para a liberação inexplicável do confronto homem versus homem.

O homem e a violência

Zizek (2015) afirma que a violência se articula num campo histórico e ela disseca as entranhas de nossa sociedade, pois ela interroga a nossa própria linguagem e o nosso entendimento de produtos, o que é marca de um sistema político, econômico e social vigente.

No entanto, para isso, são necessárias reflexões sobre o discurso e seus efeitos no laço social. Eis o fundamento de um trabalho político articulado com a psicanálise, com ações e pesquisas, que promovam novas significações no campo social. Para Foucault (1970/2014),

O discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que se manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é o objeto do desejo; é visto que isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mais aquilo, por que, pelo que se luta, poder do qual podemos nos apoderar, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo (p. 10 e 11).

Na “Ordem do Discurso”, Foucault (1970/2014) vê uma relação entre a produção de discurso, a produção de subjetividade e a psicanálise, em especial com Lacan (1985), no sentido de que a produção de discurso desvela o sujeito, mostra o que é produzido por ele e ao mesmo tempo produz novos sentidos, novos significados. Nesta perspectiva, é fundamental compreender a origem da violência para poder avaliar o seu contexto histórico e suas dimensões sociais. Isto permitirá identificar as marcas de seus conflitos que podemos afirmar estarem situadas em processos claros de exclusão. Logo, delinear os aspectos objetivos e subjetivos da violência é compreender o que ainda é invisível no que diz respeito aos fenômenos sociais.

Para compreendermos esta natureza paralaxe da violência, devemos focar os curtos-circuitos entre diferentes níveis. Por exemplo, entre o poder e a violência social: uma crise econômica que leva a devastação é experienciada como um poder incontrolável quase natural enquanto deve ser experenciada como violência. (ZIZEK 2015, p. 10)

A violência assume em nossa sociedade um manto invisível de submissão quanto aos interesses do sujeito, pois a violência subjetiva é experimentada num plano de fundo de uma não violência, uma não perturbação. Contudo, a violência subjetiva é precisamente o que organiza as relações de poder em nossa sociedade. Portanto, pesquisá-la e elucidá-la torna-se urgente e necessário. É neste campo fértil que a psicanálise oferece um vasto arcabouço teórico de reflexões que subsidiam a pesquisa na esfera clínica e social.

A brutalidade da violência parece hoje não ter fim:

E ainda assim, por mais que você seja sincero consigo, por mais que você derrube as ilusões, sobrará sempre aquela dúvida sobre suas reais capacidades. E essa é a perversidade do racismo. Porque ele simplesmente te impede de visitar os próprios infernos. Sim, Freud nos escapa… (TENÓRIO, 2020, p. 86).

O racismo é uma das formas mais brutais da violência vigente em nosso país, forma essa que os psicanalistas precisam se mobilizar de maneira urgente. Esse modo de violência que produz efeitos devastadores em nossa sociedade, carece por parte dos analistas de uma posição de resistência. Negligenciar a essa prática discursiva terá certamente um custo brutal e letal. Ampliar o debate é sustentar espaços de diálogo no enfrentamento ao desamparo, vulnerabilidade e exclusão, temas tão bem trabalhados na bela obra de Jeferson Tenório. Será que o medo é a única coisa que nos restou?

Brasileiros, se quiserdes ser republicanos, “#Ele não!!!”.

 

Referências Bibliográficas:

CIORAN, Paul. Breviário de Decomposição. Rio de Janeiro. Editora Rocco, 2011.

DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Tradução Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.

ECO, Umberto. O fascismo eterno. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2018.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

GALEANO, Eduardo. O livro dos Abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2008.

HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

LACAN, J. (1964). O Seminário – livro onze – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: Gozar a qualquer preço. Tradução Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.

SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017.

TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das letras, 2020.

ZIZEK, Slavoj. Violência. São Paulo: Editora Boitempo, 2015.