” Na claridade do dia
ninguém distingue
o vaga -lume”
Abbas Kiarostami
(Nuvens de algodão)
Li o livro de Lelei Teixeira emocionado. Um livro que mostra tantos avessos daquilo que não vemos, não pensamos, não imaginamos. O título “E fomos ser gauche na vida”(Editora Pubblicato, 2020) e a capa da artista Mariane Rotter “Meu ponto de vista” dizem muito. Apontam uma cegueira do mundo, imagens que surgem partidas, escondidas em um espelho que parece só querer refletir o que faz semelhança, recusando o diferente. O que não vemos em plena claridade do dia?
Lelei é uma escritora densa, intensa, inspirada, atenta aos detalhes do mundo e registra em seu livro parte de sua história de vida junto com a irmã Marlene Teixeira. As origens, a família, os projetos, o mundo por vir e os desafios que ambas enfrentaram devido ao nanismo. Recolhe tantas vivências, palavras que escutou, violências sofridas, desafios para viver em um mundo ainda tão excludente e preconceituoso. Aprendi muito já que expande o pensamento para muitos outros que sofrem preconceito. Mas os vaga-lumes insistem e este livro traz luz, esperança, compromisso com um mundo que ainda sonhamos viver.
Marlene morreu em 2015 e este livro era um sonho das duas irmãs. Agora está aí para nos abrir tantos caminhos. Escreve Lelei “Teríamos, sim, alguma chance em um mundo onde, na maioria das vezes, pessoas com alguma deficiência, ou com um comportamento e opção sexual taxados de estranho, são invisíveis.”
A história de vida das duas irmãs conta também outras histórias da vida cultural de Porto Alegre, do Brasil e do mundo. São tantas referências a livros, filmes, músicas e ainda uma análise contundente da derrocada política de um Brasil que desmoronou nestes últimos anos.
Imaginem que até mesmo apedrejadas já foram, alvo de piadas, humilhação, exclusão e tantas dificuldades para acessar um mundo que não está a altura da dignidade que a vida exige.
Tantas viagens lindas que fizeram: Cuba, Paris, Peru, Portugal, Bahia e , em cada uma, Lelei compartilha frames de imagens vaga-lumes, nuvens de algodão.
Uma surpresa ao saber que um fragmento de texto meu onde reflito sobre a fria maquinaria do mundo foi escrito por Marlene em um cartão postal que ela ofereceu a Lelei, em 2006. Nestas horas vemos que as palavras que registramos voam para tantos lugares. Lembrei de uma manhã de conversa que me marcou muito com Marlene quando conversamos sobre a tese de doutorado dela sobre Chico Buarque. Uma memória musical..
Quem ler este livro vai poder descobrir tantos invisíveis, mas também poderá identificar os vaga-lumes que se debatem na claridade do dia.