Uma mulher sozinha é apenas a mulher que quer ficar sozinha e pode não desejar ser perturbada por transeuntes – Por Jaquelina Imbrizi

Uma mulher sozinha é apenas a mulher que quer ficar sozinha e pode não desejar ser perturbada por transeuntes – Por Jaquelina Imbrizi

“O que dizer de uma sexualidade feminina ‘outra’ da que foi prescrita no e pelo falocratismo? Como reencontrar, ou inventar, a sua linguagem? Como articular, para as mulheres, a questão de sua exploração sexual com a de sua exploração social? Qual pode ser, hoje, a posição das mulheres em relação ao político? Devem ou não intervir nas ou sobre as instituições? Como podem se desprender de sua expropriação na cultura patriarcal? Quais questões devem elas endereçar ao seu discurso? As suas teorias? As suas ciências? Como “dizer” a elas para que não sejam novamente “recalcadas”, “censuradas”? Mas, também, como já falar (como) mulher? Atravessando o discurso dominante. Questionando a “mestria” dos homens. Falando às mulheres. E entre as mulheres. Essa fala (da) mulher pode ser escrita? Como?” (Irigaray, 2017, p.139)

Ah, que felizes somos nós mulheres por termos uma escritora como Elena Ferrante (2011) para nos brindar com protagonistas complexas, fortes e que têm a produção da escrita, seja a literária seja a acadêmica, como profissão e como modo de se enlaçar às moções de vida. Mais alegres ficamos quando somos apresentados às produções em audiovisual, seja em séries como “A Amiga Genial” seja em cinema, em formato de streaming, como é o caso da produção cinematográfica “A filha perdida”, que estreou em dezembro de 2021, na Netflix.

No que se refere à série, acompanhar o crescimento e a parceria das duas amigas e protagonistas que vão se transformando uma na presença e com a característica da outra e que têm a paixão pelo conhecimento como elo de sua amizade, é reconfortante por apresentar outras possibilidades para a felicidade das mulheres das classes e bairros populares. A legenda em português e o áudio em italiano transporta telespectadores para uma Nápoles ancestral com poucas oportunidades para as meninas estudarem por serem filhas de trabalhadores braçais e por se situarem em famílias embebidas na racionalidade patriarcal. São os cuidados dos filhos e com a casa que estão sendo reservados para elas, mas não no ambiente construído pela escritora do livro e pelo diretor da série “A amiga genial”, as protagonistas subvertem esse destino social, às vezes de modo sutil e às vezes de modo violento. Quem não se lembrou, no que se refere às telespectadoras da série, de uma genialidade fraterna em sua trajetória, tantas amigas irmãs que nos mostraram caminhos e sonhos nunca dantes imaginados para nós, também filhas das classes trabalhadoras e de comerciantes nas cidades interioranas deste enorme Brasil. Quem não se recordou e se transportou para um clima de convivência com aquela ou aquelas amigas geniais? Para quem escolheu a carreira acadêmica, como a autora que escreve este ensaio, é possível lembrar daquela amiga inteligente, moderna e à frente de seu tempo que ia a contaminando e, sem perceber, ela própria já estava questionando e criticando normas e tabus só reservados para o sexo feminino. Ah, como amamos as nossas amigas geniais!!!

No que se refere ao filme “A filha perdida”, cabe destacar as cenas nas quais a nossa protagonista em sua juventude (Jessie Buckley) – na pele de uma escritora, professora universitária, pesquisadora e tradutora de poesia italiana, se apresenta em momentos de mais puro autocuidado e auto afeição, aparentemente, lidos como comportamentos próprios de uma pessoa solitária, egoísta, culpada, amarga por grande parte do público que assistiu, se manifestou nas redes sociais, e não gostou da película. Diferente da série “A amiga genial” que ressalta a sororidade entre as duas amigas, no filme aqui em foco não é este tipo de troca entre mulheres que está em questão, mas são apresentadas as relações entre mãe e filha e entre as mulheres que escolheram ser mães. É a visão de uma mãe (Dakota Johnson) com sua filha que provoca na protagonista uma série de reflexões e angústias a ponto de ela roubar um brinquedo de uma criança, mais especificamente, roubar uma boneca. Não é a minha intenção adentrar nesta seara das relações complexas entre mãe e filha, mas sim avançar para uma crítica à cultura contemporânea que condena aquelas mulheres que escolheram a solitude, ou no mínimo que optaram por passar as suas férias sozinhas para até continuar trabalhando naquilo que elas mais gostam: leituras, anotações em ambiente silencioso e na companhia de seus próprios pensamentos. A despeito disso, o filme explicita certo não-cabimento na contemporaneidade do autocuidado e da auto afeição como hábito e habilidade também em mulheres.

De primeiro momento, é a cena na qual a protagonista está sozinha, dirige o seu carro, em um lindo dia de sol, escuta sua música favorita e coloca uma das mãos para fora da janela do carro, e sente o vento, a liberdade do ar que corre entre os seus dedos fatigados dos teclados dos computadores. Ela respira e sente o ar de um país estrangeiro e, pelo andar da carruagem, ela quer experimentar este lugar de estrangeira em uma viagem que ela escolheu fazer sozinha e longe das duas filhas adultas. Uma solidão acompanhada de livros e cadernos nos quais ela sempre faz anotações. Ela chegou atrasada ao local idílico que escolheu para passar alguns dias porque se permitiu esquecer do relógio em um momento de férias.

A segunda cena é quando ela está deitada em sua cadeira de praia em um dia ensolarado e se permite experimentar um sorvete, sim dá-me um cornetto, era o refrão da música italiana que acompanha uma propaganda nas décadas de 1980. Há prazer em sentir o sol em sua própria pele, há deleite em deixar o sorvete escorrer pela pele de seu pescoço e colo, e literalmente, se lambuzar. Haja erotismo em uma cena desse naipe, hein?

O terceiro momento se refere ao seu primeiro mergulho no mar, um corpo que se deixa boiar e tem só o céu como infinito. Ou seja, um deixar-se ficar boiando de costas nas águas quentes tranquilas de um dia iluminado pelas cores azuis turquesas que a rodeavam.

O quarto momento, a protagonista resolve jantar no restaurante e está sozinha sentada em um banco em frente a um balcão e ao seu prato de comida, este sim, acompanhado por uma bebida alcóolica, quando se aproxima o caseiro Lyle (Ed Harris) para conversar. Ela não demonstra animação com a chegada dele e depois de algum tempo, ela diz: “agora, eu posso terminar o meu jantar?”. Ele se constrange e se retira. Portanto, caros e caras: “Uma mulher sozinha é apenas a mulher que quer ficar sozinha e pode não desejar ser perturbada por transeuntes”.

O quinto momento, que a diretora e roteirista Maggie Gyllenhal fez questão de mostrar é a cena de auto afeição, em linguagem popular, a cena sutil de masturbação experimentada na juventude da protagonista. A pesquisadora está sentada em uma cadeira, estudando e concentrada com o seu fone de ouvido, treinando uma língua estrangeira, literalmente, deixando a estranha sonoridade entrar em seus ouvidos e escutando-a com atenção, deixa-se tocar e sente o seu próprio corpo: a vulva, o clítoris e vagina.

A protagonista (Olivia Colman) se autoriza e divide com o público estes pequenos prazeres nas cinco grandes cenas de autocuidado apresentadas no filme. Mas o inusitado é que em cada uma destas cenas há alguém para atrapalhar, um grupo de turistas barulhentos, os barcos dirigidos em alta velocidade e cheios de componentes rumorosos que apresentam perigo de vida para quem quer nadar calmamente, o caseiro que quer prosear e, por último, uma de suas filhas pequenas que dá pequenos murros na sua cabeça para chamar sua atenção enquanto ela tentava obter o orgasmo e ao som de uma poesia declamada em língua estrangeira a penetrar em seus ouvidos.

Assim, podemos apresentar certa visada do filme que é a de que vivemos em uma sociedade que supervaloriza o barulho da falsa felicidade comprada para se estar sempre ao lado de alguém, de preferência um homem, com o intuito de mascarar a nossa dificuldade de convivermos conosco. Uma sociedade que não suporta uma mulher que usufrua das vantagens de se estar só, de se estar na companhia do sol. É impossível ser feliz sozinha poderia ser um dos slogans do filme. Cabe lembrar aqui a canção “Satisfeito” de Marisa Monte, cujo refrão coloca esta premissa para reflexão:

Quem foi que disse que é impossível ser feliz sozinho?

Vivo tranquilo, a liberdade é quem me faz carinho”.

Por conta destes cinco momentos do filme “A filha perdida”, e também de nossas experiências em acompanhar a série “A amiga genial”, podemos afirmar inspiradas nas idéias de Luce Irigaray (2017) que escritora, roteirista e diretora exercitam um “falar-mulher entre mulheres”, pois inventam uma estrutura de discurso para colocar as mulheres como protagonistas que mudam seu destino social, que ousam viajar sozinhas em tempos de transatlânticos lotados de pessoas aparentemente felizes em atividades barulhentas e em grupo. Protagonistas que estão cercadas de livros e de cadernos, sempre a escrever um novo projeto, sempre à procura de temas e anotações para suas pesquisas. Ou seja, são figurações de mulheres que têm autonomia em seus próprios trabalhos e que enfrentam um mundo de empecilhos para irem atrás de seus sonhos. Sobre o falar-mulher, a psicanalista Irigaray (2017, p.154) afirma:

Pode haver um falar-entre-mulheres que seja ainda um falar-homem, mas esse pode ser também um lugar no qual se ousa enunciar um falar-mulher. É certo que com esse mulheres- entre-elas (e essas é uma das apostas dos movimentos de libertação, quando não são organizadas com o modelo de poder masculino, ou quando não estão reivindicando a tomada do poder ou sua derrocada), nesses lugares onde se processa a fala-entre-as-mulheres, enuncia-se algo de um falar-mulher. É isso que explica o desejo ou a necessidade de não integração: a linguagem dominante é tão poderosa que as mulheres não ousam falar-mulher fora do contexto de não integração”.

Ou seja, trata-se da construção de uma linguagem que fale das mulheres em seus próprios termos, fale “da”, “sobre”, “com” elas, que exercite um “falar (como) mulher”, “falar (da) mulher” e uma “fala da mulher”, para que elas possam expressar-se de modo descolado da racionalidade patriarcal.

Mulheres que exercitam e colocam na pauta do dia a masturbação que é um tipo de autoconhecimento, autocuidado, auto afeição e auto afetação que não está à mercê do falo, da supervalorização da vagina como receptáculo para o pênis, tão valorizado por alguns psicanalistas, inclusive por Sigmund Freud (2011), ao falar sobre o desenvolvimento psicossexual infantil. Há hierarquia no olhar do psicanalista que se refere ao clitóris como um pênis pequeno e que insiste na inveja universal do pênis na formação psíquica das meninas. Há também condescendência ao seu momento histórico ao considerar o orgasmo vaginal como maduro e desconsiderar o orgasmo clitoridiano. Por sua vez, Irigaray subverte esta concepção da sexualidade feminina sempre pensada a partir de parâmetros masculinos:

“Assim, por exemplo, o autoerotismo da mulher é muito diferente do autoerotismo do homem. Este tem necessidade de um instrumento para se tocar: a sua mão, o sexo da mulher, a linguagem…E essa autoafetação exige um mínimo de atividade. A mulher se toca sozinha, e nela mesma, sem a necessidade de uma mediação, e antes de toda a separação possível entre atividade e passividade. A mulher “se toca” o tempo todo, aliás sem que seja possível proibi-la de o fazer, já que o seu sexo é constituído por dois lábios que continuamente se beijam. Desse modo, ela já é duas – não divisíveis em (umas) – que se afetam” (Irigaray, 2017, p,24)

Em um movimento circular e inclusivo, podemos deleitarmo-nos com o fato de que escritora, roteirista, diretora e a maestria das três atrizes constroem um novo discurso sobre, com e entre as mulheres, ao exercitarem “um falar-mulher entre mulheres” e “um falar-mulher para mulheres”.

Na foto a atriz e cantora Jessie Buckley, a atriz, diretora e roteirista Maggie Gyllenhaal e as atrizes Olivia Colman e Dakota Johnson. Só faltou na imagem, a escritora Elena Ferrante, que como todos sabem, mantém sua identidade sob sigilo e há segredos sobre o seu verdadeiro nome.

Referências:

Ferrante, Elena. A Amiga Genial. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2011.

Série “A amiga genial”. https://otageek.com.br/2021/06/30/5-motivos-para-assistir-a-amiga-genial-na-hbo/

Filme “A filha Perdida” https://www.google.com/search?q=filme+a+filha+perdida&oq=filme+a+filha+perdida&aqs=chrome..69i57j46i433i512j0i512l3j69i64l3.11858j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8

Freud, Sigmund. Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. In O Eu e o Id, ‘Autobiografia” e outros textos. Obras Completas volume 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Irigaray, L. Este Sexo que não é só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo: Senac, 2017.