Banzeiro òkòtó – mais uma aviso de incêndio no Brasil
Edson Luiz André de Sousa[1]
“A Amazônia salta para dentro da gente como num bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal de nosso pensamento e nos mistura à medula do planeta”
Esta é uma das imagens fortes que inundaram meu pensamento na experiência de ler o último livro da Eliane Brum: “Banzeiro Òkòtó – uma viagem à Amazônia centro do mundo”,(Companhia das Letras, 2021) Banzeiro será a minha palavra-chave para finalizar este ano difícil e desafiador onde enfrentamos tantas destruições . Banzeiro, escreve Eliane Brum, é como o povo do Xingu nomeia a revolta do rio, suas zonas de perigo. Estamos no meio do Banzeiro e os que lerem este livro verão mais de perto a hemorragia no coração verde do Brasil e do mundo. Fiquei muito impactado com a leitura e sobretudo pelo talento da Eliane Brum de nos levar pelas mãos, passo a passo, para dentro do coração das trevas. Ela foi morar em Altamira e é de lá que ela nos endereça este livro carta, este livro manifesto, este livro aviso de incêndio. Ela nos escreve de perto dos gemidos de dor da floresta, das populações ribeirinhas expulsas de suas casas pela violência da Usina de Belo Monte, da população indígena e quilombola perdendo seus territórios e vivendo sob constante ameaça, dos adolescentes que se suicidam em atos extremos de desespero, do furor perverso dos grileiros impondo suas lógicas de violência.
Conta muitas histórias das muitas que tem escutado de tantas pessoas que encontra: palavras cicatrizes. Do Otávio, do Antonio, da Raimunda, da Maria Leusa …. . Histórias de desespero, mas também de força e sobrevivência. Este livro que precisa ser lido por todas e todos pois nos devolve em palavras algumas imagens do Brasil e da vida que já perdemos e que, se não agirmos imediatamente, perderemos definitivamente. Como escreve Ailton Krenak “O futuro é agora, pode não haver amanhã”
Eliane se mistura no texto que escreve e se dilui nele também: seus impasses, suas dúvidas, suas escolhas, sua tristeza, seu luto, seus amores Uma inquietação vertida em linguagem e que nos contamina o espírito, nos chamando à responsabilidade diante do nosso tempo. Temos neste livro muito da história do Brasil, as raízes racistas, o massacre no presidio de Altamira, a lógica de violência que tem feito a riqueza de muitos a custa da vida e sacrifício de muitos. E diante desta história podemos entender um pouco mais como foi possível termos chegado aonde chegamos. Gostei especialmente da crítica que faz a ideia de esperança colocando no lugar um compromisso com a imaginação . Ela lembra a jovem ativista sueca Greta Thumberg que reage ao que dizem que ela traz esperança “Não quero sua esperança. Eu não tenho esperança. Quero seu pânico, quero que você sinta o medo que eu sinto todos os dias”. É deste espirito de Banzeiro que Eliane Brum junto com tantas outras e outros propõem o movimento #liberteofuturo.
O capitulo que acompanha a saga das tartarugas mães que procuram um lugar seguro para a desova e tendo agora que enfrentar os rios amputados de vida é uma metáfora precisa do Brasil em que estamos mergulhados ou nos afogando. Nestas imagens comoventes que descreve como espectadora , encontro uma força que vamos precisar cultivar e compartilhar.
Tenho uma destas fotografias das tartarugas feitas pelo Lilo Clareto, parceiro de tantas reportagens da Eliane e que guardo agora como um registro de memória de seu trabalho tão importante. Lilo morreu contaminado pelo vírus da Covid, mais uma vitima da politica violenta que contaminou este país. Algumas imagens coloridas estão presentes no livro e nos permitem mergulhar na beleza do olhar de alguém que ainda foi capaz de sonhar com outras geografias para este país.
Escrevi estas breves notas como um convite para que mais gente possa mergulhar neste Banzeiro… com urgência… Que 2022 nos devolva um pouco mais de futuro.
[1] Psicanalista, Analista membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre)