“Leopardos invadem o templo e bebem toda a água da pia de sacrifícios, deixando-a vazia.
Isso se repete sempre. Por fim, o evento pode ser previsto e torna-se parte da cerimônia”
Franz Kafka
Os leopardos estão soltos mas manter o ritual da cerimônia depende de cada um de nós, de
todos nós. Daqui do meu apartamento escuto muitas sirenes. A todo momento elas quebram
o silêncio desta tarde de sábado. Sinais de alerta, de urgência, de pressa. Fico imaginando
estas dores no asfalto, as angústias que se reproduzem aos milhares neste país em sofrimento.
Imagino que cada um de nós deve ter uma imagem desta urgência na cabeça, por ter perdido
alguém nesta pandemia, por ter estado em um hospital, por ter se contaminado, por ter
testemunhado o sofrimento de alguém, dos muitos que presenciamos diariamente. Guardo
aqui comigo muitos histórias de amigos e conhecidos enfrentando este vírus. O terrível é
imaginar que os sons da sirene comecem também a fazer parte da cerimônia e já nem o
escutemos mais, e para muitos, até embale o sono da tarde. O Sono da razão produz
monstros (Goya) Fico imaginando as brasileiras e os brasileiros no próximo século, quando
nenhum de nós estiver mais por aqui, lendo os registros deste tempo e tentando entender
como foi possível que tudo isto tenha acontecido. Ficarão muitos registros das vociferações
das feras que rangem os dentes diante daquilo que poderia trazer vida. Não celebram a vida,
celebram o tempo e os templos de destruição , da ignorância , da estupidez. Imaginem que
no mesmo dia em que o Brasil teve o segundo maior número de mortos nesta pandemia
(1541), o presidente deste país se dedica a falar do efeito colateral do uso das máscaras.
Padecemos todos do efeito colateral da profunda intoxicação do espírito que tomou conta
deste país. Vamos precisar de muitas vacinas e por muito tempo. Estamos exaustos, mas
nunca desistiremos. Buscaremos inflar de ar o pulmão de nossa memória pois é ela que nos
dará alguma esperança de novos futuros. Cada brasileiro é hoje um arquivo vivo. Caberá a
cada um deixar seu registro para as gerações que virão. E quem sabe nos reencontraremos
com a lucidez de Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas quando escreve : “Só se pode
viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor.
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso da loucura”.