Anjo negro e o racismo brasileiro – Por Betty Bernardo Fuks

Anjo negro e o racismo brasileiro – Por Betty Bernardo Fuks

Anjo negro e o racismo brasileiro

Betty Bernardo Fuks [1]

 

Em tempos de pandemia, a nova montagem da peça Anjo Negro de Nelson Rodrigues traz o selo da insistência do psicanalista e diretor de teatro Antonio Quinet, em trazer o Inconsciente – sonhos, sintomas, paixões, culpas – à cena. Trata-se de seu compromisso para com a transmissão da psicanálise e de fidelidade à percepção freudiana de que a psicanálise deve se submeter à autoridade do escritor e do poeta. Psicanálise e criação artística dizem respeito à Outra cena – o Inconsciente

A peça-série-montagem virtual, dirigida por Quinet, é composta de três episódios, conforme a disposição original da obra rodrigueana em três atos, e conta com um elenco de primeira linha. A atuação impecável e comovente do fazer teatro de cada ator, oferece ao espectador da tragédia suporte à interpretação do mundo e do existir.

Assisti ao episódio 1 – “A maldição” -, em meados de novembro. A atualidade da peça Anjo negro e a importância política dessa montagem da Companhia inconsciente em cena nesse momento, me trouxe à lembrança uma frase de Freud que está no prefácio de O homem Moisés e o monoteísmo (1939/2014), escrito às vésperas de sua partida para o exílio em Londres: “Vivemos numa época particularmente curiosa. Descobrimos com espanto que o progresso selou uma aliança com a barbárie” (p.97). Que tristeza que essas palavras continuam tão relevantes em nosso tempo. Alguns dias depois, o Brasil testemunhou nas imagens transmitidas por seus principais canais de TV um ato de barbárie: o assassinato de João Alberto, um homem negro, por dois seguranças brancos do supermercado Carrefour.

Esse acontecimento hediondo é fruto do racismo instituído no país desde o início do processo de colonização dos índios que aqui viviam e dos negros que chegavam da África. Mas o nosso atual Presidente e seu vice, mesmo diante das evidencias de racismo estrutural nas origens do assassinato de João Alberto, desmentiram a existência da facticidade do ódio ao negro. Insistem na ideia de democracia racial porque, segundo eles, “somos miscigenados” (sic). Nem ao menos se deram ao trabalho de reconhecer publicamente que grande parte dessa miscigenação é fruto do estupro perpetrado por homens brancos em mulheres negras e indígenas.

E quis o destino que tamanho desmentido da realidade ocorresse no dia da consciência negra, data dedicada à reflexão sobre a inserção do negro na sociedade brasileira.

O racismo estrutural colocado em cena na montagem atual dessa tragédia mítica rodrigueana caminha na atualidade numa espécie de espiral que vai da negligência ativa à sistemática aniquilação de negros e índios; faz parte da estratégia política que consiste em segregar o outro para fortificar, no caso, o narcisismo da massa branca, representada na peça por Virgínia (Joana Lima Silva). Essa estratégia de segregação do outro levada ao paroxismo desemboca, como disse Lacan, na segregação e no racismo. A estatística mostra que hoje, de cada 100 pessoas assinadas no Brasil, 71 são negras. Trata-se, segundo estudiosos do tema, de um verdadeiro projeto genocida de extermínio de corpos negros. Durante a pandemia, de novo compravam as estatísticas, morrem mais negros. Os que sobrevivem perdem seus empregos com maior facilidade.

Nelson Rodrigues dizia que desde menino percebera uma verdade que escapara ao seu admirado amigo Gilberto Freyre, o escritor de Casa Grande & Senzala: o brasileiro não gosta de negro. “Nada mais límpido, nítido e inequívoco do que o nosso racismo. […] . A ‘democracia racial’ que nós fingimos é a mais cínica das mitificações”. (Rodrigues,1948/2020, contracapa). Em Anjo Negro, o autor escancara essa realidade a partir de um elemento fundamental da política de ódio e segregação do Outro: a família. Uma percepção bastante freudiana: em Psicologia das massas análise do eu (1921/2013), ao invalidar a distinção entre o individual e o coletivo, Freud proscreve também a distinção entre o privado e o público. Os laços de família funcionam, por assim dizer, segundo a lógica de formação das grandes massas. A misoginia e o racismo do casal Ismael (Deo Garcez) e Virginia é um exemplo do tratamento social à mulher e ao negro que assolava a sociedade brasileira em meados do século XX e que ainda se encontra presente no nosso tempo.

Elias (Lucas Gouvêa), o irmão branco e cego de Ismael, representa a cegueira, elemento crucial para compreender de que forma a tragédia da segregação racial permanece sendo propagada (Fernandez & Santiago, 122). Essa cegueira também se manifesta no repúdio de Ismael à própria cor de pele, no casamento inter-racial assentado num estrupo; nos recorrentes filicídios cometidos por uma mulher branca em conluio com o marido negro e na hierarquia patriarcal. Todos esses temas colocados em cena emergem sob o manto da violência estrutural conferida à diferença da cor da pele.

A medida em que a violência ia avançado, por meio de atributos imaginários negativos e teorias ditas científicas que pregavam a ideia de inferioridade da raça negra, a cultura afro-brasileira ia se degradando. A linguagem do colonizador branco visava destruir a humanidade dos negros. Assim, o significante negro se tornou sinônimo de ser inferior e primitivo, dotado de uma mentalidade pré-lógica. E a proibição do uso das línguas africanas, acabou privando o povo negro de si mesmo. “A lingua é mais que sangue”!, escreveu o filósofo Franz Rosenweig (Klemperer, 2000, epígrafe), quando da ascensão do Terceiro Reich, o regime que distorcendo palavras e formas sintáticas da língua alemã criou uma nova língua para propagar a ideologia da raça pura.

No Brasil pós Segunda Guerra Mundial de Nelson Rodrigues, o negro assimilado permanecia segregado. Ismael torna-se médico, casa-se com uma branca na tentativa de transformar seu corpo negro em corpo branco. Entretanto, os efeitos da colonização ecoam através das gerações: o protagonista negro de Anjo negro, apesar de todas as “conquistas”, permanece ocupando o lugar de estrangeiro. Como homem de pele negra lhe restou o não reconhecimento, a exclusão até mesmo da diferença e a identificação com o homem de pele branca. Identificação que tem como consequência a explosão do ódio de si. Ismael, nome bíblico atribuído ao filho de uma escrava com o patriarca Abraão (Gênesis, 16-25), tem vergonha da própria cor, rejeita a mãe negra. Seu desejo sempre foi tornar um branco, isto é, embranquecer. Recusa de si mesmo, retrato fiel daquele que colonizado quer recobrir a suposta natureza abjeta derivada da sua pela negra com máscaras brancas, conforme chama atenção Franz Fanon em Pele negra, máscaras brancas(1952/2008). A internalização da linguagem racial do colonizador branco que reduziu o significante negro à condição de abjeto, marca de um trauma, ecoa em suas escolhas.

A violência contra a mulher, a dominação do homem sobre ela, ocupa um lugar fundamental no universo de Nelson Rodrigues. Ismael estrupa Virginia que, por sua vez, revive a cada relação sexual o gozo da violência sofrida. Virginia vive numa prisão familiar montada pelo marido. Mata seus filhos negros repetindo, assim, a tragédia da Medéia de Eurípedes como farsa, mas nem por isso menos trágica. Medéia, a princesa estrangeira, envenena os filhos a quem ama verdadeiramente, vingando-se da traição de Jasão. Virginia envenena dois filhos e afoga um outro, não para se vingar de Ismael que a violentou e a mantém presa e, sim, por seu horror à pele negra, o estrangeiro ex-timo a si mesma. Na cena magistral do diálogo entre Ismael e Virginia escutamos o verdadeiro motivo do assassinato dos anjos negros. “Eles morreram porque eram pretos”, diz Ismael à mãe assassina. E…… Virginia concorda.

Nelson Rodrigues não é um dramaturgo ingênuo. Está na trilha de Plauto – “O homem é o lobo do homem” – e quiçá também do dito freudiano em O Mal-estar na Cultura (2010/1930)- em relação à vocação da humanidade de “satisfazer no próximo a agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apropriar-se de seus bens, humilhá-lo, causar-lhe dores, tortura-lo e mata-lo” (p.124). Rodrigues mostra que Ismael é capaz de cometer crueldades mórbidas sob o signo de paixões sombrias e violentas. Com isso, o dramaturgo desconstrói o mito da democracia racial, sem cair na armadilha de romantizar o negro, mostrando que a clivagem entre brancos e negros no Brasil é mantida pela desigualdade racial, política e econômica que condena a população negra à segregação e, como disse a pouco, ao extermínio (Fernandez & Santiago).

Antes de terminar minhas considerações quero retornar ao manifesto de Quinet contra o racismo estrutural e inconsciente que lemos na abertura da peça. São palavras que me remetem ao conhecido diálogo de Freud com Einstein em “Por que a Guerra?”. Em resposta à questão que o físico lhe endereçara sobre paz Freud, com seu estilo inconfundível, responde que abraçar o pacifismo não é consequência da lógica da razão. Trata-se de algo da ordem de uma aversão ética e estética, situada mais além do ideal de erradicar o mal, ou da ilusão da construção de um mundo sem violência e sem ódio.

Freud é categórico em sua resposta a Einstein: o antidoto contra o traço compulsivo e indestrutível da alma humana em humilhar, destruir e infligir dores ao outro é manter a chama do desejo de construir permanentemente e indefinidamente acesa. Isso significa, para nós analistas, que se no plano coletivo estamos impedidos de exercer a clínica sob transferência, por razoes éticas não podemos deixar de escutar e denunciar a impunidade da incitação à guerra, a segregação e ao racismo.

Essa posição, que impede a psicanálise ficar neutra na luta entre cultura e barbárie, liga-se à responsabilidade cívica do analista, de modo inexorável. São questões que provocam no analista o desejo de preservar os fundamentos de sua prática: convocar a alteridade a desfazer os jogos de espelhos direcionando o sujeito a apropriar-se de sua história no reconhecimento do outro.

A psicanálise vem sendo convocada a escutar o Movimento Negro no Brasil que nos chama atenção para a negritude, o modo de se sentir e de afirmar- negro, como elemento de um grupo humano. Esse movimento, enquanto instrumento de combate para garantir direitos fundamentais de dignidade humana, nos interpela a questionar a marginalização da cultura negra na contemporaneidade. A tradição de escutar o excluído remonta aos primeiros textos clínicos de Freud e está presente em escritos nos quais aborda com mestria o tema da política de sua época. No meu entender, a releitura de Quinet da peça mítica Anjo negro retoma essa tradição freudiana.

 

Bibliografia,

Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas.Salvador: Universidade Federal da Bahia. (Originalmente publicado em 1952).

Fernández M. & Santiago V. “Anjo negro: as fundações racistas do Estado no Brasil”. In: LARR. Pp.121-134. DOI.https://doi.org/10.25222/larr.267. Acesso em 30/11/2020

Freud, S (2010) O mal estar na cultura. Tradução Renato Zwick. Porto Alegre. LP&M. (Originalmente publicado em 1930)

________ (2013) Psicologia das massas, análise do eu. Tradução Renato Zwick. Porto Alegre: LP&M. (Originalmente publicado em 1921)

_________(2020) “Por que a Guerra”? In:Obras incompletas de Sigmund Freud. Cultura, Sociedade e Religião. Belo Horizonte: Autênica,2020 (Originalmente publicado em 2021)

_________(2014). O homem Moisés e o monoteísmo. Tradução Renato Zwick. Porto Alegre LP&M. (Originalmente publicado em 1939)

Klemperer, V. (2002) LTI: A linguagem do Terceiro Reich.São Paulo: Contraponto.

Rodrigues, Nelson (2020). Anjo negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Originalmente publicado em 1948).

[1]Psicanalista. Escritora. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ). Editora revista online Trivium: estudos interdisciplinares