Sinais de fumaça outra vez – Por Sílvia Nogueira de Carvalho

Sinais de fumaça outra vez – Por Sílvia Nogueira de Carvalho

 

 

Capa da edição 1649 do jornal uruguaio Marcha, disponível na Casa da Memória de Montevidéu. A manchete de 30 de junho de 1973 – “Não é ditadura” – tem o valor de um chiste, pois foi publicada 3 dias depois da decretação da mais recente ditadura uruguaia.

 

A Amazônia queimava em uma corriqueira segunda feira de agosto de 2019 e alguns supunham que não houvesse nada a temer… O dia se fez noite em SP e, fechado em seu estúdio de trabalho no centro da cidade, o moço não soube, não viu. Dois dias depois perguntou-se sobre a vida que assim escorria pelas pontas de suas digitais, tão conectadas a uma virtualidade carente de sentido. Se as telas dos computadores não lhe serviam para se ligar – e antes o desligavam do que se passava ao redor -, de que lhe valeriam?

Ao final da segunda semana de um novo ano, 2021, já não ocupamos nossos estúdios de trabalho há muitos meses. Sempre que possível nos encontramos em nossas casas, convertidas em espécies de abrigos de um mundo devastado pela suspensão da circulação social que efetivamente poderia nos alimentar.

Despertamos cedo e com fome neste 17 de janeiro, pois arde uma cidade amazônica – outrora figurada como zona franca de alegrias ou espaço de civilidade encravado num generoso pulmão do mundo -, na perdição de um comando nacional miseravelmente cruel. Sucessivos dias D transmutaram velozmente a hospitalidade devida aos doentes em indiferente hostilidade aos cidadãos que simplesmente precisam… respirar.

Os jornais abertos seguem informando. Que a PGR insta município e estado às suas responsabilidades, ao passo que avança devagar na interpelação das que são devidas à federação. Que o presidente da câmara calcula que possamos esperar ainda mais – pra que essa pressa tão grande? -, pois lança para o futuro qualquer esperança de barragem, de impedimento desse ardil.

Sinais de fumaça outra vez. Deveríamos voltar a dormir a fim de sonhar futuros impossíveis, embalados na catarse barulhenta das panelas cidadãs? Anteciparíamos uma carta de adeus aos parentes que, ingratos da vida que nos legaram, votaram com sordidez em 2018 – parentes-serpente que, até aqui, e pacientemente, insistimos em cultivar? Passaríamos um bilhete-cola aos jovens que amamos – os jovens a quem criamos, analisamos ou educamos, aos quais transmitimos seivas da vida – a fim de lembrá-los de que, frente à enésima negativa, restaria ativamente desistir, faltando ao exame do Enem?

Feito fogo, o crime se alastra. Às 10 da manhã poderemos ingressar na transmissão do veredicto concedido à vacina do Butantan. É preciso acordar, pois o general brada a possessão de todas as doses.

O mundo internacionalizado desistiu de nós: nações europeias não nos receberão em rotas de fuga, fordistas veículos americanos não nos transportarão, novas vacinas de produção asiática não virão em nosso socorro. No bico do Twitter resta a advertência ao Ministério da Saúde: “Este Tweet violou as Regras do Twitter sobre a publicação de informações enganosas e potencialmente prejudiciais relacionadas à COVID-19. No entanto, o Twitter determinou que pode ser do interesse público que esse Tweet continue acessível”.

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi… Não é mais possível tentar o pneumotórax de Bandeira. Resta-nos um consolo de praia de Drummond:

 

A injustiça não se resolve /

À sombra do mundo errado / 

murmuraste um protesto tímido /

Mas virão outros. 

 

17 de janeiro de 2021