Quando a primavera chegar e não for setembro

 

Nós brasileiros não sabemos da primavera desde 2016. Ano do tiro no coração da democracia brasileira quando a primeira presidenta legitimamente eleita foi arrancada da Presidência da República e substituída pelo golpista e destruidor de direitos consagrados Michel Temer. Era o preâmbulo e o pulo do gato para o que aconteceria em 2018.

 O roteiro da tragédia brasileira teve aí seu princípio institucional que nos lançaria nas mãos de golpistas, torturadores, milicianos, negacionistas que passaram a desgovernar, destruir e achincalhar o país de todas as maneiras e, agora, com o executivo em suas mãos.

O absurdo foi consolidado e não houve, desde então, um momento sequer de paz e confiança no atual governo. Ao contrário tivemos que conviver com ameaças, negligência, indiferença e desapreço por vidas, valores e conquistas humanitárias seculares como a realização de promessas de campanha.

Para isso foi utilizada a conhecida estratégia de colocar, por ação e omissão, a vida de brasileiros e brasileiras em risco, seja por serem alvos constantes do fetiche por armas de fogo de uma família de insanos, seja porque essa mesma família segue simbolizando a negligência profunda aos graves problemas enfrentados pelas populações vulneráveis no país. Hoje, evidentemente, muito mais vulneráveis.

Ministros desse governo fazem seu trabalho sujo cotidiano menos espalhafatoso, menos visível, mas não menos corrosivo aos direitos, mecanismos e políticas de inspiração democrática inauguradas no país nos últimos anos, e que ainda engatinhavam.

Mais grave e preocupante ainda é que soubemos, desde pelos menos as eleições de 2018 que, no Brasil, milhões batem palmas para a estupidez e a imbecilidade a granel, cuspida todos os dias na cara da sociedade brasileira. Aqui é Victor Klemperer que nos ajuda quando observava estupefato, que diante dos comícios do nacional socialismo alemão as pessoas não estavam rindo diante das pantomimas, verborragias e absurdos de Hitler. Não; elas estavam aplaudindo.

 2016 é o ano em que inauguramos o Psicanalistas pela Democracia como tentativa de  resposta e oposição direta, desde a psicanálise e a partir de muitxs psicanalistas brasileirxs, aos ataques sucessivos à tudo que permeia, penetra e se irradia deliberada ou distraidamente; planejada ou espontaneamente; consciente ou inconscientemente para destruir a democracia. É possível fazer isso corroendo seus mecanismos, calando seus atores, descaracterizando seus propósitos.

Desde então muitos veem trabalhando no PPD para plantar o que medrará na estação vindoura. Ela precisa de uma safra exuberante e pródiga, mas ainda não tem previsão de sua chegada. Não basta, contudo, aguardar a primavera: é preciso trabalhar por ela. Se e quando ela chegar precisa encontrar terreno arado e sementes aninhadas no chão.

Desde o princípio, lá em 2016, proclamamos e repetimos que o PPD é de todxs, porque só assim poderá ser de cada um.  Grifamos com isso que a despeito da importância de tantos grupos, associações e sociedades de psicanálise no Brasil, às quais a psicanalise deve sua existência e transmissão e onde são tantos e numerosxs as/os psicanalistxs trabalhando, é preciso que haja lugares, espaços, àgoras onde psicanalistas assim nomeados, possam se encontrar em defesa do que é comum e contra aquilo que se apresenta como privilégios imerecidos, herdados e supostos que capturam e sequestram o que é singular e próprio, para arrebanhar mais privilégio e operar com violência redobrada contra a maioria.

Obviamente incluímos aí as mazelas que atravessam as próprias instituições psicanalíticas há mais de um século.

Só em dia com a democracia-dentro e fora de casa- que permite, possibilita e engendra o ilimitado da língua, a proliferação das falas e os confins da linguagem é que podemos garantir que projetos erigidos para matar a cultura e sua diversidade; a arte e sua potência imaginativa; as humanidades e sua vocação crítica; as pessoas e seu direito de continuar vivendo não progridam.

A psicanálise refundou a palavra do intérprete. Deu a ela sua delicadeza dialogal, livre, flutuante. Expôs e revelou um espaço que só se inaugura quando há fala sob a guarida de uma escuta e, nesse lugarejo discreto e potente -o espaço analítico-, evidenciou as possibilidade profundas e infinitas que se plantam nas vidas que se fazem outras e, desse modo, se coletivizam como laço, encontro, projeto e sonho.

Nada do que acontece no encontro analítico permanece ali confinado. Tudo vaza, excede, salta, voa e escapa para a vida que vivemos como analistas e como analisantes quando somos -ou tentamos ser- cidadãos. Trata-se de uma potência que vive de seu pulsar (pulsão) e se inventa como singularidade para expandir-se na outridade que, por vezes, parece una, compacta, uníssona, mas não é, e nosso trabalho acontece para evidenciar isso todos os dias.

Disse Freud num dos inúmeros momentos de sua obra: a relação amorosa, sexual é o instante em que as fronteiras do eu tendem a desaparecer. Momento em que a fantasia parece quase conseguir que o diverso, no momento em que se exerce como corpo e psiquismo com outrem,  emula a experiência psíquica e corporal da unidade perfeita, um dia perdida.

Vivemos isso no sonho, na experiência sexual plena, nas experiências sublimes da gratuidade e em tudo que se celebra em comum quando se conquista o que num determinado tempo e lugar, e para determinadas pessoas, se reconhece como conquista da própria liberdade, mas que só encontra sua significação quando se constata e se celebra juntos, a partir da certeza de que determinados anseios particulares só se plenificam quando compartilhados.

Em 2021 continuaremos juntos e celebraremos juntos com corpo e alma a safra que plantamos, porque o tempo da espera amadureceu a amizade que se prontificou quando tudo era disrupção, separação e isolamento. O PPD segue adiante com a mesma convicção de seu início e dará continuidade às mesmas ideias que plantaram nossos projetos especiais de 2020: Associações Livres, A Poesia e a Máquina, o  Sonhando Alto e a edição dos vídeos Porque votamos em Boulos e Erundina.

Todos esses projetos foram realizados com a carinhosa e amiga colaboração da organizadora e organizadores Abrão Slavutzki, Marta Cerruti e Daniel Mondoni e juntamente com os organizadores do PPD André Costa, Denise Mamede e Bruno Fedri. Esses projetos em vídeo criaram fatos e experiências inéditas para nós e, esperamos, para aqueles que com eles se envolveram, assistiram e os compartilharam. Agradecemos aos inestimáveis entrevistados que nos forneceram material precioso na composição de cada um dos vídeos que compuseram Associações Livres: as queridxs Betty Fuks, Edson Sousa, Isildinha Baptista, Maria Rita Kehl, Miriam Debieux, Tania Rivera e Caty Koltai.

Destacamos ainda que durante semanas ao longo do ano de 2020, o PPD Edson Sousa publicou diariamente pequenos textos, vinhetas, comentários, imagens como um anteparo colocando em palavras contra a força bruta que assola o país e explode nas mídias. Trabalhou como quem empurra a bestialidade para seu curral, enquanto ela grita e berra. Nesse período seus pequenos textos inspiraram outrxs escritorxs a enviar novos textos e materiais para o PPD e semeou, uma vez mais, a palavra contra coturnos.

Já no final do ano o PPD entrou na campanha Boulos/Erundina em São Paulo. Mais de 85 pessoas (psicanalistas e não psicanalistas) trabalharam diariamente, durante todos os dias que antecederam a votação do segundo turno das eleições, rearticulando princípios, desejos, sonhos e anseios aquietados até então. Foi um grupo que trabalhou com alegria, panfletando nas ruas; escrevendo textos; produzindo e editando vídeos; postando informações, comentários e incentivos; organizando manifestações e abaixo assinados e, por fim, mobilizando colegas, familiares e conhecidos. Boas parte dessas iniciativas foi divulgado e postado diariamente no PPD.

A necessidade e o prazer de estarmos juntos nessa campanha especial, dois anos após as últimas eleições presidenciais, nos uniu em torno do extraordinário, e o virtual se adensou como realidade vivida, fraterna e partilhada criando uma alucinação positiva nas nossas redes: os sonhos que embalávamos enquanto trabalhávamos sobre o que ainda viveremos.

 Uma vez agradecemos ao GGN pela parceria que continua na manutenção de nosso blog e a todxs que colaboraram enviando textos, sugestões, comentários e incentivos contribuindo para constituir a história da psicanálise no Brasil que um dia o PPD auxiliará a contar.

2021 não será para amadores, mas acreditamos que após quase cinco anos de trabalho coletivo repleto de singularidades, já podemos dizer que somos veteranos.

Abraços a todxs que acompanharam o PPD por mais esse ano e que atenderam nossos convites seguindo, compartilhando, divulgando, enviando textos e vídeos e torcendo pelas nossas iniciativas. Renovamos o convite à vocês para continuarem trabalhando por uma psicanálise que não faz de sua escuta, original e única, um álibi para seu silêncio.

2021 logo também vai passar, mas nós não pretendemos passar com ele.

Perduraremos!

Até breve, até 2021!