Que mistério engravida esta cidade? Entregadores de aplicativos sonham? – Por Julia Ferry e Paulo Endo

Que mistério engravida esta cidade? Entregadores de aplicativos sonham? – Por Julia Ferry e Paulo Endo

“Mas sonho dormindo ou sonho acordado, que você quer saber?”(resposta interrogatória de um entregador de aplicativo quando lhe perguntei sobre os seus sonhos).

 

O desejo de escutar os entregadores das plataformas de apps à despeito de seus sonhos ocorreu pelas vias da aproximação de Julia Ferry com alguns entregadores durante as movimentações de breque, que ocorreram nos meses de junho e julho em São Paulo. Em uma conversa com um entregador, ele pôde contar que sonhava frequentemente com cenas das entregas. Estimulada por isso, ocorreu a ela ampliar e explorar esse “espaço onírico”, propondo-se interrogar outros entregadores sobre os seus sonhos, curiosa para saber se apareceriam imagens referidas ao trabalho que realizam.

O objetivo desse texto é contribuir para compor juntamente com o projeto “Sonhando Alto” e com o “Inventário de Sonhos: Sonhos de Pandemia” que têm colocado em circulação os sonhos durante  a pandemia e a ascensão da ditadura no Brasil, como patrimônio coletivo a partir da visada e da escuta psicanalítica. Ambos divulgados e realizados como projeto com a participação do Psicanalistas pela Democracia.

 

Sonho 1

“Sonho com as costas doendo como sempre estão quando a mochila fica pesada. Acontece que eu olho pra trás e não tem bag nenhuma. Eu acordo meio preocupado que ela tenha sumido, mas abro o olho e vejo que ela está ali do lado da cama”

 

Sonho 2

“Tô andando de bicicleta em um parque, e ouço bem no fundo do ouvido a música que toca no celular quando solicitam uma entrega, é a música do ifood. Mas eu olho pro meu celular e não tem nada”

 

Em sua maioria homens, em bicicletas ou moto, carregando mochilas estampadas pelo logo de uma empresa de aplicativo, tornaram-se figuras presentes em todos os cantos das cidades. Se há um corpo que circula, atravessa e desloca a cidade inteira – mesmo no momento que incidiu o pico da pandemia – são os entregadores dessas plataformas. A cidade é o pano de fundo, o território que não se esgota. São eles que recortam ostensivamente a geografia da cidade, mas continuam invisíveis.

O som que acompanha essas solicitações, no entanto, é curto, convocatório e previsível na sua repetição. Como se vê nos sonhos narrados, se o trajeto é inesperado – uma avenida lotada ou um parque tranquilo -, a trilha sonora é presumível, tocando em looping “bem no fundo do ouvido”.

Nos dois sonhos, não há pedido algum. No primeiro deles é curioso se pensar que a única “peça” que faz identificar um entregador aos olhos da população é a sua mochila reluzente. Essas se vêem de longe. O login e a mochila é o vínculo desse entregador com a plataforma a quem “oferece os seus serviços”.

 É a mochila que desaparece, embora o peso permaneça. Para o cliente, contudo, é só a mochila que aparece, quem a carrega é, de fato, desimportante. Esse, talvez o peso nas costas de ser apenas um emissário da única coisa que realmente importa: a mercadoria.

 No segundo sonho, o pedido é inexistente, mas a solicitação musicada persiste a importunar com o seu barulho. Um ruído demandante, impessoal e que, ao final, não é nada. Nada significa, altera, convoca ou comunica. O som do aplicativo é um chamado para nada, ninguém, nenhum lugar. Todos são ninguém; a cidade inteira é lugar nenhum.

 

Sonho 3

“Estou dentro de casa, sentado na cadeira da cozinha, o aplicativo está desligado, mas ele continua tocando”

 

Curioso deduzir sobre esse celular que “continua tocando”, e que é também instrumento necessário para poder trabalhar fazendo entregas. O aparelho que faz as chamadas que o levam para fora de casa, é o mesmo utilizado para trocar mensagens com as pessoas de “dentro de casa” via whatsapp. Convivem nessa tela a comunicação impessoal e exterior com o algoritmo e as suas relações mais íntimas e pessoais. No sonho, mesmo em casa, o celular convoca ao trabalho. O celular, um artifício que atravessa as distâncias enquanto divide, fragmenta, separa. Tornar-se imprescindível não resulta em tornar-se importante.

 

Sonho 4

“Eu estou dormindo, sonho que tô pedalando, fazendo as entregas. Dessa parte eu não me lembro, mas minha esposa diz que eu falei várias vezes durante a noite: já deu baixa no pedido?”

 

No sonho do entregador, sua esposa tem acesso a algo dele, uma fala sua, que ele próprio desconhece. Não lembra de dizer, mas também não duvida que tenha tido. Aliás, vê pertinência nessa agonia, neste resto diurno. A companheira do sonhador lhe revela a repetição/exaustão que invade o seu sono. Do pedalar infinito ao aplicativo que determina quando parar.

 

Sonho 5

“Sonho que um carro bate na minha moto bem nessa esquina aqui, da consolação com a paulista. Eu acordo com a batida”

 

Sonho 6

“Eu sonho que meu irmão, que também é entregador sofre um acidente. Acordo na hora assustado.

Mas o sonho não é um sinal de que vai acontecer, né?”

 

Nesses dois sonhos, o sonhador desperta no exato momento em que uma fatalidade se consuma. A exposição ao acidente revela-se nesse ponto insuportável, o que lança o sonhador para fora de seu sonho, devolvendo-o à vigília na qual os restos do sonho ainda o perseguem e o medo produz ruídos: “…não é um sinal de que vai acontecer né?”

 

Sonho 7

“Eu acho que não tem nada a ver, mas eu sonhei hoje que tava com muita vontade de comer pastel, mas ia comprar e tava muito caro. 10 reais! Eu não como”

 

O ponto deste entregador fica em um cruzamento onde ocorre uma feira aos finais de semana no bairro de Higienópolis. A barraca de pastel fica na esquina. Me ocorreu perguntar se ele já tinha feito alguma entrega de pastel. Ele responde: “Olha só! Pior que já. O cheiro do pastel ficou na mochila até quando cheguei em casa”.

Outra associação que ele fez foi a lembrança de uma outra cena. Enquanto fazia uma entrega, parado em um semáforo, um morador de rua passava pedindo dinheiro para um homem que dirigia um carro e que estava comendo um pastel. O homem dá o pastel que estava comendo, com duas mordidas, ao morador de rua: “essa cena me emocionou”.

 

Sonhos diurnos

 

“O sonho de todo biker é conseguir comprar uma moto”

 

“Ah eu sonho com uma vida melhor, poder comprar uma moto, ter condições de cuidar bem dos meus filhos.

 

E dormindo, o que você sonha?

 

Ah! Hahahaha dormindo eu não sonho não”

 

Essa relação entre sonho como projeto para a vida e o sonho sonhado foi trazida por esses dois entregadores a quem perguntei sobre seus sonhos. Se não foi possível relatar aqueles que são da ordem do onírico, não ausentaram quanto aos sonhos concretos ainda não realizados. Como me disse um outro entregador: “Sonhar à noite eu não sonho, agora, de dia, todo mundo sonha né?”

 

Escrever esse texto, bem como explorar esse método de pesquisa através da psicanálise, se faz um desafio. Estamos longe da busca por totalizações de sentido ou reivindicações de correlações universalizantes para quaisquer conteúdos sonhos o que, certamente comprometeria o que propõe a clínica, a teoria e a escuta psicanalítica. A imposição de generalidades cede ao singularmente radical, contingente e arbitrário da produção inconsciente ativadas pela escuta da narrativa que constitui o segundo tempo do sonhar.

 

A intenção aqui perdura como uma aposta na imagem, naquilo que elas podem trazer de possíveis interpretações, vestigiais, insistentes e inesgotáveis.

 

Os sonhos colhidos e trazidos aqui podem, quem sabe, provocar o olhar e a escuta sobre esses imprescindíveis desimportantes que sonham. Em oposição às imagens que se pretendem portadoras de verdades monolíticas, fica a intenção, convertida em trabalho de compreensão. Fomentar as imagens oníricas como possibilidades de mobilizar novas formas de dizer, escutar e encontrar nos confins da desumanização pessoas que sonham, por desejo ou necessidade; dormindo ou despertas.

 

Se há algo em comum que todo sonho pode enunciar é que nunca é possível dizer tudo sobre ele, mas sempre é possível dizer algo a mais.

 

Quando conto um sonho à analista de hoje

quase não diz nada mais uma vez cala a boca

como se buscasse que no silêncio do meu próprio romance

minha realidade fale eu contudo

persisto não acabo de despertar

ao que parece preciso encontrar um sentido freudiano

para o que não tem, já disse, não tem

mais volta.

(…)

vou acabar caindo no diário íntimo e a poesia

terá que versar sobre outros assuntos

porque existe outra linha, tem que existir outra (Kamenszain, 2015, p. 21)

 

O gesto de publicitar os sonhos, pode ser também uma jornada de um convite psicanalítico. Levantar esses sonhos sonhados por esses entregadores é uma forma também de levar essas imagens inéditas para o mundo. Poder explorar o potencial negativo (falta constitutiva) que as contém, podem-se também abrirem-se daí outras formas infinitas de pensamento e criação a fim de estimular o gesto político da imaginação. Narrar o sonho é abrir o próprio pensamento ao mundo. É, de alguma forma, estender o que é da ordem da singularidade à servir também como registro pessoal-histórico de um tempo que dirime esperanças e multiplica as distâncias, não raro travestidas de uma proximidade oportunista e circunstancial. De outro modo pouco se saberá quantos e quais sonhos se guardam nessas bags.

 

 

Referências:

KAMENSZAIN, T. O livro dos divãs. Rio de Janeiro: 7 letras, 2015. Tradução: Carlito Azevedo e Paloma Vidal.

Endo,P. Freud, o inconsciente, a des-memória, a in-memória e os paradoxos do esquecimento, do sonho e do real de Auschwitz . Revista Percurso, ano XXX, junho de 2018. p.89-96