O objetivo deste breve escrito é ensaiar uma faceta da racionalidade instrumental moderna que se deslocou e se ampliou à posição de coordenadora de ações sociais graças às novas técnicas comunicativas. Ele tenta responder a uma pergunta específica sobre seu uso: a recepção de conteúdos veiculados pelos meios audiovisuais de massa pode contribuir à transformação da percepção humana até o ponto extremo de obscurecer, pelo seu excesso de emissões, o próprio sentido da existência? O conteúdo sobre o qual se debruça parte de imagens e discursos veiculados pela cobertura da imprensa sobre as vítimas da COVID-19. A partir dele, deduz hipóteses sobre possíveis mudanças na simbolização da morte.
Circula pela Internet uma tirinha na qual uma pessoa está tendo um ataque cardíaco e alguém grita: “– Algum doutor?”. A ironia da história é dupla, pois há sim um doutor presente – só que em filosofia. Após se identificar, e frente à continuidade da súplica que afirma: “– Ele vai morrer”, o doutor responde: “– Todos nós vamos”.
Fora da ficção, tal desfecho de cena revelaria uma brincadeira de mau gosto. Na realidade, porém, o problema não é apenas o deslocamento e a manifestação de um dito espirituoso numa hora inadequada, mas a seriedade com que somos surpreendidos em momentos em que não mais sabemos o que fazer.
Com a disseminação do novo coronavírus, a morte se tornou realmente uma res publica, ou seja, uma coisa pública, algo que diz respeito a todos. E não apenas no sentido idealizado da definição romana, em que “todos”, na verdade, diz respeito à bem poucos: cidadãos ou pessoas livres. Ao contrário da maioria dos “plebeus”, hoje, uma parcela significativa e não desprezível destes antigos “patrícios” pode ser computada em nossa pátria por uma peculiar coloração verde-amarela composta por “reses” humanas ávidas de carne. Com sua “humanidade” em baixa, desafiam o novo coronavírus com delírios de imunidade. Por sua vez, o vírus põem-nos na condição de absolutamente assujeitados. Tal como se fosse a “coisa em si” kantiana – inalcançável ao nosso conhecimento, mas determinante absoluto dos fenômenos –, nem mesmo Deus nos salva da natureza em sua nova manifestação.
Assim, a pergunta pelo que virá depois da morte pela COVID-19 ressuscitará paixões latentes no mundo inteiro. Por vários lados surgirão cobranças sobre por que determinadas medidas e não outras foram tomadas; ou, por outro lado, se o valor dos atos de sacrifício – como o confinamento forçado pelos Estados (autoritários ou democráticos) – valeu à pena como rito de passagem por esta forma de deixar de viver.
Portanto, há duas coisas a considerar: Por um lado, que isso diga respeito a todos não significa que seja vivenciado da mesma forma. Na realidade, pouquíssimos, talvez alguns super-ricos prevalecidos de informações no estágio incipiente da pandemia, e que foram de helicóptero habitar suas ilhas particulares, podem dar-se o luxo de sentirem-se sublimes frente à avalanche. Por outro, no extremo oposto, temos pessoas que habitam em partes do mundo em que sequer há a mínima infraestrutura de comunicação, portanto, nenhum dado estatístico. Estes podem até morrer, mas a morte não figurará nos gráficos animados das telas. Portanto, a chamada subnotificação tem um agravante: antes de ser de casos particulares, ela é de contingentes inteiros de pessoas. Onde fica a alteridade subnotificada? Em nossa latitude, uma vez mais emerge um Brasil profundo, feito de sub-gentes, de imundos, de seres que passam a existir enquanto mortos, não como pessoas, mas como possíveis transmissores ou como habitantes de um condomínio de porcos ou de frangos infectos. E neste momento, a idiotia midiática, por mais que os mostre figurando em variados lugares, sequer consegue isolar consequentemente a psicopatia da “rês” presidencial, pois seus radares estão mais focados na detecção de imagens e em gráficos estatísticos. Suas identidades são tão dignas de notas quanto a identificação de morcegos como causa da virose.
Quanto ao devir, pergunta-se: o que mudará na percepção desses “todos”, uma vez que essa totalidade é mais uma ideia usada a serviço da regulação social da parte de Estados e dos grupos dominantes do que uma realidade global?
O peso da manutenção do funcionamento do sistema produtivo sempre foi transferido aos trabalhadores. Contudo, em sua lógica invertida, os supracitados “patrícios” contabilizam os “atos de sacrifícios” dos “plebeus” como sendo seus ou em nome da Pátria. Ao lado das perdas de seus ganhos econômicos imediatos, celebrarão a morte como um devir inevitável, naturalizando-a como crise necessária para uma “nova” vida.
Assim, embora diga que vamos todos morrer, a ironia do douto filósofo nos convida a pensar em formas de representação que não se resignem ou capitulem frente à ideia de que todos morrem da mesma maneira. O poder sempre nos sugere que o que nos acontece é merecido. Sua superioridade de sugestão nos compele à manutenção da ordem dominante tanto quanto apela e ameaça com força física ou interesses materiais. O esforço para resistir à sua sugestão abre um espaço virtual de liberdade onde podemos decidir sobre que tipo de vida vale a pena. Para quem não se prende fetichistamente aos números, uma única vida violentada e morta pela falta de um respirador artificial não é menos interessante de ser avaliada do que um massacre coletivo. Dentro de um todo acrítico, o individual é despachado como resto não-assimilável ou é mutilado. O material do qual se compõe sua história é classificado sob o ponto de vista de um determinado problema de administração funerária. Por isso, faz sentido a inversão da pergunta: vamos todos morrer, é certo, mas isso que toleramos antes da morte, é isso vida?
O novo coronavírus, um agente “impessoal”, mas atuante, recoloca em cena as desigualdades ocultas da nossa sociedade, ou seja, revela que o “todo” que atinge, a partir de determinadas condições materiais das populações, atinge uns e outros de forma bem diferente.
Se fosse ainda possível retirar a máscara das ideologias, depois dos vários anúncios de sua morte, apareceria à cara limpa que o suor e o sangue sacrificado pelos trabalhadores e aspergido nas telas da televisão em espetáculos grotescos de corpos amontoados e máquinas escavando a terra para sepultá-los em valas comuns, servem às lágrimas de uma parte – bem pequena – que encobre com as mesmas as distorções perceptivas que resultam no que chamam, sem problematizar, de “realidade”: não a que estão vivenciando agora – posto que não se deva tirar a máscara –, mas a que vivenciavam bem antes.
Portanto, imaginar ou interpretar a nova vida que virá pode não passar de um substitutivo ou acréscimo sobre essa ideia milenar de sacrifício, ou seja, que a resposta específica à doença dependa, por exemplo, no caso desta nova patologia, da idade e do estado geral da saúde do paciente. Todos querem encontrar sentido imediato para o sacrifício. Por isso, pode ser que se encubra, inclusive, um dos sentidos seculares da morte: que a convalescença despede a doença como algo morto, como se diz, por exemplo, depois da guerra vem o tratado de paz, etc. Antigamente, as vítimas humanas sacrificadas aos deuses eram cultuadas magicamente como transições necessárias. Por isso, o culto da vida nova que os rituais de passagem celebravam era também um culto da morte.
Apesar da aparente trivialidade desta colocação, já podemos antecipar uma cisão profunda na existência de quem sobreviver ao novo coronavírus, pois o estilo da morte pela COVID-19, a forma do ritual de despedida, subtrai da percepção a visão do cadáver e aproxima a passagem cada vez mais a uma tendência que se tornou dominante a partir do momento em que as imagens técnicas colonizam nossa percepção cotidiana, a saber, a tendência a associar o que morre à morte de uma imagem, expropriando os parentes do estranhamento de ver o corpo real do ente querido indo embora.
Essa tendência não é nova. Há muito tempo a morte é escondida da visão pública. Contudo, por motivos preventivos e necessários, seu desdobramento involuntário pode torná-la cada vez mais banal, ou seja, como se o que morresse fosse apenas da ordem da aparência, da imagem empírica. Isso acaba, desafortunadamente, tendo efeito de alívio, porque produz uma aproximação entre o midiático e o vivo. Não é incomum que algumas pessoas sintam mais a “morte” de um personagem de novela ou, caso de muitos admiradores do reality show global, a eliminação de um brother.
Contudo, a estranheza causada pelos mortos não é, de início, sua não mais existência, mas o fato de que eles, embora privados de vida, ainda assim estão aqui. Por um lado, uma nova estranheza virá pelo fato de que o tempo da despedida sofre um achatamento. Por outro, por nem saber onde foram enterrados. A despedida é uma não-despedida, uma dispensa rápida. A vida para aqueles que ficam será uma lembrança contínua do trauma – ainda mais para aqueles que morreram pela falta de respiradores.
Estas imagens recebidas nas poltronas das salas de estar anunciam, amiúde, a ausência do Estado. Elas podem ser comoventes. Mas no Brasil profundo, no Brasil não mediado e não aquecido pelas “cobertas” das telas, o ar há muito tempo se tornou gélido e rarefeito. Não são tiros de espingarda de ar comprimido; são fuzis que perfuram a pele negra nas favelas. O ar que se respira em nome da manutenção futura de um sistema claustrofóbico é contaminado pela uberização da vida, que faz com que, como complemento de renda, aposentados em bicicletas entreguem comida em portarias de condomínios e, ainda ofegantes – como jogadores no final de uma partida mata-mata – peçam uma “boa avaliação”, pois estão iniciando um novo emprego e necessitam ser aceitos pelo aplicativo.
Para incompreensível pavor e estranhamento, certamente se buscarão argumentos. Filmes e obras de arte, produções do inconsciente serão criadas com os materiais fantasmáticos e demoníacos que o invisível novo coronavírus e a morte pela COVID-19 alimentam – como forma de apreender o inapreensível – pondo ele, uma vez mais, em quarentena, simulando-o serialmente, como forma de conjuração com o que fez conosco. Todavia, assim como o incipiente proletariado morria de fome se não conseguisse vender a sua mão-de-obra no mercado capitalista, o atual “precariado” morre agora de doença por ser obrigado a optar entre a contaminação nas filas da Caixa Econômica ou a morte faminta. Muitos morrem sem saber. O ser-para-a-morte heideggeriano ainda respondia a um projeto, a uma escolha. Seria demais exortar esses indivíduos a não serem alienados, “abduzidos”. Não há mais um centro orientador em relação ao qual eles teriam se desviado de uma vida autêntica. Para eles, a reificação se tornou uma norma vital.
A menos que haja uma mudança radical no sentido da morte capturada pelo sistema, não creio que esta inconformidade e esse inominável repousem. Por um lado, há pessoas sensíveis que já estão dando passos em direção a um “descanso”, ou seja, ensaiando maneiras de contornar, de dar forma e nome a este pavor inominável e informe. Porém, por outro lado, a própria morte está sendo explorada como sensação e irá propiciar razões contínuas aos poderosos para o aumento de medidas de restrição às liberdades individuais e sociais. E, nesta direção, a alta tecnologia audiovisual animará o espetáculo dos horrores. Mesmo que não o gere, explorará o medo como um conceito transcendental – no sentido de que o tornará visível em toda parte, até que uma vacina seja descoberta. A presentificação regular e repetitiva do número de mortos está sendo utilizada como recurso competitivo de audiências. Com isso, sua presença apavorante continuará, pois poderemos ser o próximo. Pensaremos sempre, ao mesmo tempo, nos que foram e na possibilidade de não ficarmos. Continuaremos cansados; não os deixaremos descansar nem descansaremos, porque se não há condições de possibilidade de enterrá-los definitivamente, então também não haverá como formar uma memória.
Mesmo o abrandamento do terror coletivo fará os mortos serem “menos”. Todos trabalharão, uma vez mais, como sempre, na expiação do grande regulador social do ocidente cristão: a culpa. O cenário de uma arquitetura urbana, momentaneamente alterada pela genuflexão de funcionários em frente a lojas, pode ser compreendida, com toda ambigüidade que o gesto comporta, como súplica à abertura daquele que se tornou, ao mesmo tempo, instância de um destino cego e salvador, a saber, o deus mercado. Essas imagens, porém, antes somente vistas em templos sagrados, marcam a tendência atual de sacralização do profano: a aceitação surda de mais escravidão, mais aviltamentos, mais assédios morais e sexuais, estupros, violências e mortes. Sempre deve existir alguém para levar porrada. Os que cuidam da vida, a vanguarda no enfrentamento da COVID-19, é espancada na Praça dos Três Poderes. E, para não quebrar o clima de “normalidade”, e continuar a semear falsas esperanças, os telejornais terminam com salvas de palmas ao corpo de enfermagem.
O dilema social entre segurança versus liberdade, caso a escolha penda para o lado da segurança, aprofundará o partido da necropolítica, da biopolítica da morte. Se não conseguirmos “reparar” o dano que é a lembrança sempre revivida do sem-sentido do pavoroso, se passarmos a procurar proteção nele, não formaremos uma nova memória, porque, neste sentido, ao contrário do uso comum da palavra, precisamos nos esforçar repetidamente para esquecer – não dos mortos, mas do fato de que eles ainda estão aqui.
Neste sentido, cabe indagar o papel que as redes sociais estão cumprindo. Primeiro, enquanto lugar de uma despersonalização e anonimato da palavra nega e desvitaliza o simbolismo da morte. A capacidade própria do símbolo é substituir ou sugerir por analogia formal a ausência de algo. Neste sentido, as redes sociais são pobres em oferecer possibilidades de se ter uma experiência com o estranho, com o desconhecido, com o ausente. Quando representam pensamentos, idéias ou qualidades, o modo de expressão dominante é a figuração alegórica. Traduzindo seu modo de operação em termos filosóficos platônicos de essência e aparência, ou em termos psicanalíticos freudianos do latente e manifesto, sobressai-se nelas uma base estrutural em que o conceito mais próximo seria a aparência ou o manifesto. Mas, para ambas as tradições de pensamento, os conceitos de “aparência” e “manifesto”, guardadas as diferenças epistemológicas, são sempre aparências ou manifestações de algo outro que não aparece ou não se manifesta diretamente. Por exemplo, em sua doutrina do sonho Freud enumera a morte como tendo uma representação simbólica.
Portanto, há um inalcançável da morte pela figura, pela representação imagética. Não há língua adequada para dizê-la, e muito menos sentido unívoco. Por isso, ela pode ser interpretada como venturosa, assustadora, ou pavorosa. A morte está sempre presente na vida, entretanto como algo irrefletido, como “captura”, “rapto”, “seqüestro”, tomada à distância. Todo o cuidado com ela não é pouco. O espaço que ela ocupa é um lapso de tempo, porque ela é aparência única de uma distância próxima.
Por isso, as redes sociais – em cujo solo predomina o cultivo de imagens de superfície do que somos, pensamos, fazemos e sentimos – evidenciam uma falta própria à imagem que é sua incapacidade de autonegação. Por isso, paradoxalmente, mesmo a morte sendo de tudo e de todos mais sabida, a intensidade de sua exposição midiática, de forma nua e crua, é atormentadora. Esse saber é saber denegado, recalcado. Por isso, às vezes, a imagem recebida da morte pode dar a entender que na verdade ela quer dizer não a si mesma.
Tanto é assim que as redes sociais são regidas por mecanismos de censura superegóicos, ou seja, ao “desreprimir” e franquear a utilização de qualquer conteúdo da rede, o ideal de “compartilhamento” dos mesmos não apenas desloca os traços definidores do conceito de superego freudiano, mas o inverte, até o ponto de desbancá-lo: não mais uma instância moral de censura, com suas proibições, mas instanciação estética de uma moral instantânea que nos desacostuma de mostrar o que somos, pensamos, fazemos e sentimos. Em seu lugar temos a assunção positiva de uma imagem de sucesso e felicidade. A negatividade é eliminada. E, com ela, certos impulsos oriundos de camadas profundas de nossa história, que para uma correta apresentação necessitariam de tempo e coragem para serem trabalhados. Falar sobre eles, seja em nível individual ou social, é desestimulado.
Há uma prova confiável para o fato. A recomendação do uso de máscaras – mesmo que não seja de todo conclusivo que nos afaste da praga viral – já está sendo explorada por marcas comerciais. Vendidas a preços extorsivos, ainda assim sua busca “viraliza” na rede. Por outro lado, ao serem estilizadas como únicas – por exemplo, observei um rosto que estampava uma foto de família – apontam para o fato global de que, se não “fizermos” uma boa imagem de nós mesmos para os outros, ou seja, se não formos percebidos midiaticamente e nos destacarmos, quer seja pela marca, pelo valor pago pelo produto ou pelo design diferenciador, por mais bem de saúde que estivermos, podemos ter a sensação de que estamos “mortos” para a sociedade. E quando nos subtraímos ao olhar externo, esse sentimento de “estar morto” pode atacar o nervo vital de nossa existência. Quando o novo coronavírus ameaça literalmente com o real da morte, sua simbolização é impossibilitada não apenas pelo excesso de exposição midiática das vítimas da COVID-19, mas pela adoção de um comportamento da forma mercadoria. Desnecessário dizer que quem não usa máscara está num estágio anterior à imaginação: está alucinando imunidade. Como nosso ego traumatizado está mais ocupado em se proteger dos estímulos vindos de fora, do que em assimilá-los e elaborá-los, tentamos imaginariamente nos proteger. Então, o que resta é um simulacro da representação da morte. Ai de quem renuncie publicamente a usar a imagem como couraça customizada em sua defesa. Portanto, nada como fugir para a realidade social e fazer de conta que ficar em casa é uma ilusão ou um desejo conspiratório de quebrar a economia nacional.
*Flademir Roberto Williges é professor de filosofia do IFRS – campus Porto Alegre. Doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.
(A imagem é de Tony Smith , Die (1962)