Essa escrita-sintoma de uma travessia pela catástrofe-país resulta da articulação entre dois tempos de contato sensível com o irremediavelmente outro: o tempo da escuta da fala de uma jovem quarentenada e o tempo do olhar a fotografia de uma americana desmascarada. Tecida no encontro com muitas outras vozes, corresponde a um retrato psicanalítico de um tempo que insiste em não nos deixar esquecer.
Viva o cordão azul e encarnado
Eu sei, serei feliz de novo
Meu povo, deixa eu chorar com você
(Djavan, Serrado)
Eu não sabia que o modo como normalmente vivo era chamado quarentena – disse a jovem estudante ao educador universitário Mario Saladini, quando ele abriu sua primeira aula remota conversando sobre os limites impostos por Vírus à interação humana.
Não haveria nada mais diverso no modo como eu vivia. O contraste se deu no começo de tudo, quando acabava de transfigurar em largas expressões de rosto os abraços que antes tocaram a pessoas queridas. Algo constrangida, pedia então licença aos motoristas do Uber para abrir minha janela e usar máscara e lamentava a perda da assistência da Regina, a quem pude encontrar ao longo dos últimos 27 anos cuidando da minha casa.
Foi ainda quando entendi que o gosto pelos restaurantes que preparavam meus almoços durante a semana inspiraria minha inclinação a racionalizar as refeições que passaria sistematicamente a cozinhar: definir listas de compras a partir de cardápios previamente planejados, favoritar receitas, porcionar pratos, essas coisas. Homenageava cada um deles, em saladas Martín Fierro, lentilhas Gulab Hari, curry a Futuro, frango De la paix. Noites se seguiram entre lulas provençais de la Frontera e pizzas Diavola. Formas de estar um pouco lás.
Achei mais previdente estender meu trabalho presencial até o 19 de março. Assim, na semana em que alguns de nós já haviam generalizado a abertura de suas janelas on-line, alternava entre abrir a porta do consultório para as crianças, os adolescentes e alguns adultos mais sensíveis e reconstruir o enquadre com aqueles que já estavam prontos para se recolherem em suas casas. Uma pergunta de outrora – beijo, abraço ou aperto de mão? – se transmutara: facetime, skype ou signal? Com a câmera ligada o tempo todo ou só durante as entradas e saídas, fomos redesenhando a situação psicanalítica.
Visitaria então, uma última vez em longa temporada, amigos e familiares mais próximos. Minha sobrinha Maria experimentou precocemente, aos 3 anos, o cancelamento de sua festa de aniversário. Mas deu tempo de encontrá-la em casa, meio de longe, e de levar-lhe um presente divertido. Comovia-me o vizinho que transferiu seus ensaios privados para o pátio do edifício e, munido de um amplificador, interrompia o silêncio da tarde atraindo-nos com seu violino para as varandas e janelas ao redor.
Comprava água, bastante água, e uma cadeira ergonômica para os longos períodos de atendimento em casa, pois intuía a necessidade de diferenciar o espaço de estar com meus analisantes daqueles destinados à escrita ou ainda à reunião com colegas e alunos.
A esse tempo, meus grupos de pertencimento trabalharam intensivamente. Fomos identificando novas dinâmicas e frequências possíveis para a experiência inédita de nos enlaçarmos nesse empenho comum, bem nomeado por Julián Fuks como a rejeição mais coletiva da morte já registrada na história (https://www.google.com.br/amp/s/www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/04/17/ensaio-a-rejeicao-mais-coletiva-da-morte-ja-registrada-na-historia.amp.htm).
Assim foi se tornando mais fácil pacificar a incontornável exigência de aprofundar a experiência da solitude. Muitas horas de sono, muitos sonhos. Reconexão com a vida dos primórdios, feita de alimento, repouso e brincadeira. Ah, e de choro. Na alegria de um videoclipe, Isso também vai passar (https://youtu.be/wYLvzI8cy28), na tristeza das contagens inumeráveis (https://inumeraveis.com.br) dos nossos mortos, idos antes de conseguirmos alcançar sequer meia cidade em rigoroso distanciamento social.
Até que me encontrei afinal diante de um intervalo, na temporalidade paradoxal da antecipação de um feriado. Vinte de novembro, falecimento de Zumbi dos Palmares, consciência negra, aconteceu no vinte e um de maio, quinta-feira. Ainda assim, zoom, daríamos aula e me apressei em revisitar algo da obra de Grada Kilomba.
Descendente de angolanos, portugueses e são-tomenses, nascida em Lisboa em 1968 e residente em Berlim, Grada é uma artista de mão cheia, formada em psicologia e em psicanálise. No Brasil, mostrou dois de seus projetos na 32ª Bienal de Arte de São Paulo, Incerteza viva (2016): a videoinstalação O projeto desejo (2015-2016) e a performance Ilusões (2016); lançou seu livro Memórias da plantação – episódios de racismo cotidiano na Feira Literária Internacional de Paraty de julho de 2019 e instalou a exposição Grada Kilomba: Desobediências poéticas pelos quatro cantos da Pina Luz, entre julho e setembro de 2019.
O primeiro capítulo de seu Memórias da plantação[2] descreve a máscara do silenciamento da qual Grada ouviu falar muitas vezes durante sua infância, numa espécie de memória viva enterrada em sua psique e pronta para ser contada. A artista a reconta assim:
Tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos. Ela era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito negro, instalado entre a língua e o maxilar e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanas/os escravizadas/os comessem cana-de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de mudez e de tortura. Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/os “Outras/os”: Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?
Grada Kilomba, Memórias da plantação, p. 33
Compilo trechos para levar aos meus alunos. Haveremos de falar da boca como especial símbolo da enunciação, mas também, no âmbito do racismo, órgão de opressão severamente censurado, cenário em que se faz metáfora para a posse:
Fantasia-se que o sujeito negro quer possuir algo que pertence ao senhor branco: os frutos, a cana-de-açúcar e os grãos de cacau. Ela ou ele quer comê-los, devorá-los, desapropriando assim o senhor de seus bens. Embora a plantação e seus frutos, de fato, pertençam ‘moralmente’ à/ao colonizada/o, o colonizador interpreta esse fato perversamente, invertendo-o numa narrativa que lê tal fato como roubo. ‘Estamos levando o que é Delas(es)’ torna-se ‘Elas/eles estão tomando o que é Nosso.’ Estamos lidando aqui com um processo de negação[3], no qual o senhor nega seu projeto de colonização e o impõe à/ao colonizada/o. É justamente esse momento – no qual o sujeito afirma algo sobre a/o “Outra/o” que se recusa a reconhecer em si próprio – que caracteriza o mecanismo de defesa do ego.
Grada Kilomba, Memórias da plantação, p. 34
Articularemos o medo branco de ouvir o que poderia ser revelado pelo sujeito negro ao conceito de recalcamento:
Esse é o processo pelo qual ideias – e verdades – desagradáveis se tornam inconscientes, vão para fora da consciência devido à extrema ansiedade, culpa ou vergonha que causam. Contudo, enquanto enterradas no inconsciente como segredos, permanecem latentes e capazes de ser reveladas a qualquer momento. A máscara vedando a boca do sujeito negro impede-a/o de revelar tais verdades, das quais o senhor branco quer ‘se desviar’, ‘manter à distância’ nas margens, invisíveis e ‘quietas’. Por assim dizer, esse método protege o sujeito branco de reconhecer o conhecimento da/o ‘Outra/o’. Uma vez confrontado com verdades desconfortáveis desta história muito suja[4], o sujeito branco comumente argumenta ‘não saber…’, ‘não entender …’, ‘não se lembrar…’, ‘não acreditar…’ ou ‘não estar convencido…
Grada Kilomba, Memórias da plantação, pp. 41-42
Por fim, refletiremos um pouquinho sobre reparação:
Reparação, então, significa a negociação do reconhecimento. O indivíduo negocia a realidade. Nesse sentido, esse último estado é o ato de reparar o mal causado pelo racismo através da mudança de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário, ou seja, através do abandono de privilégios”.
Grada Kilomba, Memórias da plantação, p. 46
Sem qualquer ingenuidade, quis assim pensar a mudança na agenda dos feriados da cidade de São Paulo como gesto humanitário de um prefeito que não elegi mas que pareceu verdadeiramente preocupado em preservar vidas, o que fundamentalmente quer dizer poupar a exposição mortífera da maioria esmagadora de pretos e pobres, sempre mais vulnerável a toda sorte de catástrofes sociais, para que não seja mais uma vez esmagada.
Mobilizada por esta proposição, a subsequente pesquisa empreendida pela pediatra Adriana Stama Suzuki, nossa aluna, o confirma:
“(Há) dados epidemiológicos da Prefeitura de São Paulo mostrando que o risco de morte de negros e pardos por covid-19 é muito maior em relação aos brancos, da ordem de 60% e 20% maior, respectivamente. Como discutimos, questões socioeconômicas e históricas ajudam a explicar a presença dos negros como grupo de risco da covid-19”[5].
Adriana também transcreveu para nós dizeres de Márcia Alves dos Santos, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “Esses indicadores corroboram o racismo, que é um determinante em saúde. E isto está refletido no boletim epidemiológico da prefeitura de São Paulo. Piores condições de vida e trabalho determinam o maior risco de adoecimento e morte, não apenas pela covid-19, mas também por outras doenças. A dificuldade de acesso aos serviços de saúde é um fator crucial para aumentar o risco de complicações e óbitos” e de Celso Athayde, um dos criadores da Central Única das Favelas: “É natural que os negros sofram as maiores baixas por vários motivos. Somos 78% da base da pirâmide, que está exposta desde o início da pandemia para o Brasil não parar, como frentistas, garis, balconistas de farmácia ou caixas de supermercado. O colapso do sistema acerta em cheio os mais vulneráveis, aqueles que têm cor”.
Com licença poética, quero é dizer que é chegada nossa vez de usarmos as máscaras de agora, ficarmos entocados em nossas casas-grandes, providenciarmos sua faxina e cozinharmos nossa comida. Gestos de mínima reparação.
Contudo, numa coincidência inquietantemente estranha, enquanto acabava de tomar essas notas, fui surpreendida pelo envio indignado, feito por minha amiga Cristina Barczinski, da fotografia de uma supremacista branca anti-quarentena nos Estados Unidos da América, portando um cartaz que dizia: “Focinheiras são para cães e escravos. Sou um ser humano livre”. Esse cartaz era miseravelmente ilustrado pela mesma imagem da escrava Anastacia portando a máscara do silenciamento a que Grada Kilomba se refere. Novo contraste: assim como eu, mas às avessas, a americana também pensava em aludir às máscaras com as quais nos protegemos, uns aos outros, dos riscos da pandemia. Mas, no cartaz dela, nada de poesia, símbolo, recalcamento[6], metáfora. São outros os nomes dessa sua crença, em clara positividade: impostura, fetiche, recusa e perversão. Que Vírus!
Por favor, fiquem em casa. Outra hora a gente descansa. Ain’t got no.[7] (https://www.youtube.com/watch?v=H7jzb_2s-hU).
São Paulo, 23 de maio de 2020.
[1] Psicóloga, analista institucional, psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é editora do jornal digital Boletim Online e professora no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma. Integrante dos coletivos Escuta Sedes e troça coletiva – psicanálise, arte e política.
[2] “A máscara – colonialismo, memória, trauma e descolonização” In: Kilomba, G. Memórias da plantação – episódios de racismo cotidiano. São Paulo: Cobogó, 2019.
[3] No sentido da problemática da recusa.
[4] Em inglês: “dirty history”, frase frequentemente usada pela escritora Toni Morrison para descrever seu trabalho artístico quando argumenta que sua escrita traz à tona os assim chamados “negócios sujos do racismo” (1992).
[5] Adriana aqui se refere às contribuições enunciadas, em aula, por Mateus Erthal, Roberta Matos, Luciana N. Santos, Rafael Morais e Renato Aro, no contexto do acompanhamento atento de toda a turma.
[6] No sentido de seu mais além, designado por Freud como declínio do complexo de Édipo (cf. Iannini, G. Notícia bibliográfica de O declínio do Complexo de Édipo in Neurose, psicose, perversão / Obras incompletas de Sigmund Freud, p. 267).
[7] Sigo aqui a trilha sonora indicada por nosso aluno Renato Aro, na voz de Nina Simone.