Celio Garcia em Belo Horizonte: uma homenagem – Por Ana Marta Lobosque

 

Célio Garcia participou ativamente da formação de muitos trabalhadores e de muitas gerações psi. Desejo ressaltar aquilo que trouxe para minha geração e, ao dirigir-se a nós, o que me trouxe a mim.

Em primeiro lugar, Célio foi um daqueles que nos trouxe Lacan – e, com Lacan, um outro jeito de ler Freud.  Numa época em que a formação dos psicanalistas em Belo Horizonte era extremamente conservadora, e a produção na área da psicanálise pouco interessante intelectualmente, surgiu o Colégio Mineiro de Psicanálise, com uma concepção diversa da teoria analítica, e, por isso mesmo, pretendendo repensar a questão da formação dos seus agentes. O Colégio não durou muito tempo, mas irradiava, ou concentrava, ou dava acesso, a alguma coisa difícil de esquecer para quem passou por lá. Era este modo de conceber o inconsciente, as pulsões, a transferência, em ruptura com o registro psicologizante, limitado, estreito, em que era comumente pensado então – e de perceber as decisivas consequências disso, na clínica como na formação.  Ora, a interlocução com Célio era indispensável para que esse horizonte novo se descortinasse. Não que ele ocupasse cargo algum, ou qualquer tipo de função diretora institucional; pelo contrário, preferiu permanecer numa outra instituição analítica, mais tradicional. Mas conversar com ele, ouvi-lo falar, ler esta ou aquela nota que escrevia, ou um texto ou um autor que indicava, foi uma contribuição inestimável para a psicanálise em Belo Horizonte, muito especialmente neste momento – final dos anos 70, início dos 80 – em que os primeiros seminários de Lacan começavam a circular por aqui.

Mas Célio não era só psicanálise, era também filosofia – ou melhor, fazia a única ponte que se encontrava então por aqui entre psicanálise e filosofia. Em nenhum outro lugar me lembro tão vividamente dele como nas salas empoeiradas do oitavo andar da FAFICH: chegava para seus seminários com uma mochila nas costas, da qual extraía, invariavelmente, uma garrafa de café e copinhos de papel. No lançamento de um livro seu, alguém comparou Célio a Melquíades, aquele personagem de Cem Anos de Solidão que passava de tempos em tempos pelo pequeno vilarejo de Macondo, trazendo a cada vez, em seu baú, os objetos e invenções mais insólitas. De fato, como o baú de Melquíades, a mochila de Célio, além da garrafa  de café, continha livros, textos, nomes, ideias e  autores desconhecidos – e as perspectivas que se abriam arejavam o provincianismo da nossa visão.

Sobretudo, na psicanálise como na filosofia, Célio trazia um agudo senso da dimensão política, que tanto faltava a nossos professores, sobretudo na área psi. Ao lado de José de Anchieta Corrêa, Cézar Rodrigues Campos, Antonio Benetti, trouxe Foucault a Belo Horizonte, no início dos anos 70- e essa presença foucaultiana, à qual não tive acesso direto, teve os mais marcantes efeitos na minha formação e na de tantos outros. Por este senso político, a psicanálise, com Célio, nunca era neutra, nunca se deixava institucionalizar ou normatizar. Não se restringia a uma prática liberal dentro do consultório, enquadrada por um setting, definida por uma instituição: conversava com outras disciplinas, buscava outros espaços de produção e ação, inclusive, e muito especialmente, no âmbito da saúde pública e da saúde mental.

A saúde mental belo-horizontina, como se sabe, deve muitíssimo à psicanálise. Talvez não se saiba tanto, e é preciso que se diga: deve muitíssimo à psicanálise tal como Célio a trouxe, viva, inquieta, curiosa, decidida a não deixar-se domar.

Neste momento em que o mundo-Macondo em tempos de pandemia parece cumprir a etapa final de seus cem anos de solidão,  não podemos, presos em casa, nos despedir de Célio Garcia com velório, sepultamento, missa de sétimo dia, enfim com  todas as cerimônias de adeus da nossa cultura – às quais eu certamente compareceria para prestar-lhe homenagem, e abraçar todos aqueles que sentem profundamente a partida  do amigo, analista e educador. Lamento. A despedida final daqueles que amamos exige a presença física, o corpo, o calor do afeto para espantar o frio da ausência. Eu sinto muito, Célio, que não haja outra maneira de te dizer adeus a não ser assim.

Resta a esperança de que, dos pedaços do mundo tal como o conhecemos, que já se desfaz, que se vai aos poucos, nasça algum outro mundo, algumas outras possibilidades mais férteis, alguns caminhos mais ousados.  Lutar por este mundo é também lutar para que a lembrança de Célio-Melquíades produza seus efeitos na formação das novas gerações; para que sua mochila-baú continue a abrir-se, inesgotável, generosa, na oferenda dos mais saborosos frutos da cultura.