Santo Agostinho, em seu livro “Confissões”, escreve sobre uma criança dominada pela inveja. Inveja de um irmão menor que mamava no seio de sua mãe: “Ele ainda não falava e já contemplava, muito pálido e com um olhar envenenado, seu irmão de leite”. A criança, de um ano e sete meses, foi despojada do objeto de seu desejo, escreveu Lacan. Ver o bebê mamando reativou a dor da frustração primordial do menino na separação da mãe. Essa inveja fraterna gera ódio, afeto anterior ao amor. A chocante frase “o ódio é anterior ao amor” foi escrita durante a Grande Guerra, que revelou o quanto à crueldade em busca do poder não tem limites. Na cena da inveja do menino pelo seio da mãe está em jogo o poder, diferente do poder em jogo entre as nações, mas em jogo está sempre o poder. Poder fálico baseado numa equação de equivalências simbólicas como o dinheiro, o ouro, entre outros. As relações entre a Psicologia individual e a social constam na abertura do livro “Psicologia das Massas e Análise do Eu” de Freud. Entretanto, o “Eu” pode ser analisado, a massa é só objeto da Psicologia, onde são abolidas as diferenças. Do semelhante ao mesmo é o lema da massa, o incompatível é atirado para fora.
O primeiro crime narrado no Gênesis é efetuado por Caim, que mata seu irmão Abel por inveja. Sobram crueldades na Bíblia, bem como na “Ilíada” e “Odisseia”. A inveja, nesse sentido, advém como protótipo de um drama social: o outro constitui, ao mesmo tempo, o modelo e o obstáculo à satisfação do desejo pela substituição dos objetos desejados. O assustador nessa história é quando o ódio está a serviço da paixão fanática, do amor ao ódio, dos irmãos que se unem no ódio ao inimigo. O inimigo precisa ser torturado, preso, eliminado, como no racismo, nas guerras religiosas, a guerra civil.
Há ao menos dois destinos para o ódio: um é o ódio como potência de ação, gerando um renascimento, a criação do novo. É o ódio transformado através das sublimações: amor, trabalho, esportes, arte, humor. Um segundo destino ao afeto do ódio é o do amor à destruição dos adversários, que podem ser irmãos, guerras fraternas, ou o ódio da melancolia voltado contra si próprio. O ódio é central nas paranoias, nos fanatismos, em que o inimigo é o culpado por tudo de ruim que ocorre. E sempre é o poder que está em jogo através dos preconceitos, a segregação, como a que existe contra os negros, os estrangeiros, índios, pobres. São pesadelos sociais, capazes de maldades como ocorreu, por exemplo, na Alemanha Nazista. Impressiona como a pátria de Goethe, Kant e Beethoven, projetou nos judeus o grande inimigo a destruir. O livro “Os Alemães”, de Norbert Elias, narra como os alemães abandonaram os valores humanistas a partir do século XVII. No Iluminismo cresceu o antissemitismo chegando ao nazismo; muitos não acreditaram nas ameaças de Hitler. Foi a partir de uma vitória eleitoral de uns trinta por cento do eleitorado que se chegou a uma das mais cruéis ditaduras.
Aliás, aqui também o candidato vencedor anunciou o que faria se eleito; numa campanha de guerra, ele foi ajudado pelas mídias e uma misteriosa facada. Porque o ódio no Brasil cresceu tanto? Após 25 anos da vitória da Constituinte de 1988, foi sendo organizada uma poderosa força conservadora. Hoje voltou transformada, a velha Casa Grande, até os fãs da ditadura militar. É um ódio represado, pois já Maquiavel tinha alertado que preconceitos são mais poderosos que princípios. Hoje uma minoria pode tudo: corromper, destruir a natureza, matar. Seu lema: Tudo para nós, nossas famílias, as migalhas para a maioria. Santo Agostinho ficaria espantado com a violência da dança da morte ocorrida, recentemente, num restaurante da cidade de Gramado, Agora, lentamente, os artistas se levantam, assim como um grupo da torcida do Corinthians. O povo silencioso segue os corajosos governadores. O confronto é entre a crueldade dos que ambicionam tudo e a maioria que luta para sobreviver.
Imagem: George Grosz, “The God of War” (1940). Art Institute of Chicago.