Cancioneiro de Lampião. Por Edson Luis André de Souza

 

Morreu em 26 de Março, em São Paulo, Naomi Munakata (1955), uma das principais regentes do Brasil, vítima do coronavírus.

Começo a escrever este texto ouvindo o Cancioneiro de Lampião (1980), composta por Marlos Nobre e, na versão que escuto, regido por Munakata.  O encontro das vozes nos apresenta um Brasil que sonhamos, um Brasil da delicadeza, da aposta na arte, na cultura, no encontro, na história, na memória, na solidariedade, no respeito, na esperança.

“Olê muié rendera…” o som do nordeste, trazendo o ar do SERTÃO, que inunda o Brasil e que devemos nos orgulhar, sobretudo pela força de resistência da história de um povo construída diante de tantas adversidades. Eu, particularmente, sei destas adversidades, pois sou filho de um cearense que com 15 anos teve que deixar o Ceará para lutar por uma vida melhor. Ouvir esta música conduzida por Munakata conecta-me com os fios desta história, um tecido da vida que vamos inventando sem saber ao certo onde chegaremos.

Travessias… Naomi nasceu em Hiroshima, ainda sob a sombra de uma bomba atômica. Com dois anos atravessou o oceano de navio vindo com seu pai, também regente, Motoi Munakata. Durante a travessia seu pai montou um coral com os passageiros e, assim, trouxe a semente da música para sua filha e para nosso país. Isto se chama transmissão.

A cada perda dolorosa como esta aumenta nossa responsabilidade com tudo o que nos conecta com a VIDA. Estamos todos contaminados, intoxicados com o desprezo pela vida em cada ato e palavra deste capitão reformado que envergonha nossa história. O vírus desafia todas as nações do mundo, revelando de forma cristalina o quanto as estratégias de combate contra ele mostram os valores que estão em causa. Por aqui, o capitão, nos chama para o sacrifício da vida , incentivando, convocando as pessoas a saírem às ruas e voltar a trabalhar, contrariando as políticas de todas as nações do mundo e as indicações da OMS (Organização Mundial da Saúde) para que busquemos, neste momento, o isolamento social da forma mais radical possível.

Os profissionais de saúde, que estão nas UTIS lotadas pelo mundo, têm feito alertas preocupantes para que sigamos este caminho. A fala do capitão colocou milhares de pessoas na rua que estavam cumprindo voluntariamente a quarentena, pois seguem a risca o que ele diz, mesmo se a direção for o abismo. Este país tem uma história de abismos, de desigualdades, de violências. Sem uma memória deste passado não teremos nenhuma chance.  Por sorte, todos os governadores e centenas de prefeitos têm atuado na direção contrária, pois como escreveu Byung Chul Han: “o vírus não pode substituir a razão”.

No dia em que o Brasil perde Munakata, na mesma tarde, em Brasília, ouvimos do capitão a seguinte declaração quando o repórter compara a situação do Brasil com a dos Estados Unidos no combate ao coronavírus. Ele diz:

“Eu acho que não, não vamos chegar a esse ponto [tantos casos quanto os Estados Unidos], até porque o brasileiro tem que ser estudado. O cara não pega nada. Eu vi um cara ali pulando no esgoto, sai, mergulha… Tá certo?! E não acontece nada com ele”.

Para os incrédulos segue o vídeo desta declaração:

https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/26/brasileiro-pula-em-esgoto-e-nao-acontece-nada-diz-bolsonaro-em-alusao-a-infeccao-pelo-coronavirus.ghtml

Quanto desprezo pela vida! Mais do que nunca precisamos nos proteger destas intoxicações de palavras e buscar estratégias de sobrevivência e resistência. Uma delas tem sido esta resposta maciça de ficarmos em casa. Nem todos podem, mas o quanto mais conseguirmos mais chance teremos de evitar o pior. É a hora também de sermos solidários e pensarmos naqueles que tem que pular o esgoto. Há muitas redes solidárias que se espalham pelo Brasil. Entre em uma delas, em algum momento, colabore. Este gesto fará história.  A urgência do momento intoxicou o meu texto em homenagem a Munakata. Não queria falar aqui em gente “pulando esgoto e que não pega nada”. Mas acho que homenageá-la é continuar batendo na mesma tecla. #fiqueemcasa. Este é o ato político do momento.

Temos que ter a coragem de estar à altura do desafio compartilhado e preservar a vida. Assim teremos todos a chance, neste outro dia que virá, de sairmos à rua para celebrar a vida e para protestar contra este desastre que desgoverna esta nação.

Mas voltemos um pouco à delicadeza que nos ajuda a respirar, gesto que vamos precisar cultivar em nosso refúgio, buscando as preciosidades que a cultura deste país produziu, na literatura, no cinema, na música, na arte, na dança.  Deixo a gravação do Cancioneiro de Lampião com o Coral Jovem de São Paulo e regido por Munakata. Ouvi-la será nossa homenagem e ela.

Escutem no link abaixo

https://www.youtube.com/watch?v=KLYnFt9n8vk

Cancioneiro de lampião