No momento em que o mundo atravessa, planetariamente e de forma inédita, a escalada de uma pandemia de efeitos devastadores e letais em ampla escala populacional e em que todos os países, do Oriente ao Ocidente, estão adotando medidas bastante semelhantes e convergentes em seus eixos e princípios, fundamentados na Ciência, na Saúde Coletiva e na Epidemiologia, tais como a redução radical de atividades coletivas – laborativas, educativas, culturais e de lazer –, isolamento social, reclusão domiciliar, entre outras – medidas onerosas em vários níveis, mas entendidas e internacionalmente comprovadas como as mais eficazes e, portanto, exigíveis para conter a disseminação da doença e reduzir ao mínimo o número inevitavelmente elevado de óbitos, o Sr. Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, na data de 24 de março, vem a público, em cadeia nacional de televisão, fazer declarações em sentido absolutamente contrário a todas essas medidas lúcidas, necessárias e protetivas à população.
Ele afirma que a pandemia, que já atingiu mais de dois mil e matou meia centena de brasileiros, não passa de uma “gripezinha”, que existe uma “histeria coletiva” em torno dela, que a economia não pode sofrer os efeitos dessas medidas exageradas e desnecessárias de isolamento social, “que outros vírus já mataram muita gente e ninguém fez esse estardalhaço” e convoca a sociedade a sair do isolamento que a tem protegido: os trabalhadores devem retornar aos seus postos de trabalho, os estudantes às salas de aula, os idosos a saírem às ruas, e assim por diante.
É curioso pensar que o isolamento social que temos tido que praticar não guarda qualquer relação com uma postura individualista ou egoísta: pelo contrário, de modo aparentemente paradoxal, o isolamento é social em um outro sentido: solidário, coletivo, até amoroso, e portanto com elevado senso de alteridade. Afastamo-nos fisicamente porque estamos juntos socialmente, ligados no outro. Isso é inédito em um país como o nosso, no qual a antropológica « cordialidade » nunca significou uma verdadeira consciência solidária ou coletiva, e onde sempre vigeu a famosa « lei do Gérson », a de levar vantagem em tudo e o princípio do « meu pirão primeiro »! Esses traços, tão típicos, familiares e contumazes entre nós são exatamente os pontos de identificação do « brasileiro médio » com seu atual presidente.
Este mesmo que, em frontal desrespeito às autoridades científicas das áreas envolvidas, total desprezo pela imprensa que tem feito um admirável trabalho de informação, conscientização e, portanto, de proteção à população, inaceitável anulação do empenho dos profissionais de saúde de ponta que, correndo risco de contaminação, não recuam de sua tarefa assistencial e preventiva, e finalmente em abominável descaso pela vida humana do povo brasileiro, Jair Bolsonaro atira a sociedade inteira no risco de morte e no caos, num momento em que, como presidente, ele deveria ser o primeiro a assumir a postura responsável e protetiva que todos os setores e atores da sociedade estão assumindo, cada um por seus meios próprios, exceto ele próprio e um séquito felizmente cada vez menos numeroso de seguidores cegos pelo fanatismo e pela ignorância voluntária.
É preciso indignar-se com isso, enraivecer e, para dar a essa posição um lastro que a situe além do nível do pathos, evoco o verso de Ruy Guerra e Milton Nascimento em Canto Latino de 1970, auge daquela ditadura: A calmaria é engano! Mas penso também que precisamos ir além da perplexidade e da indignação e entender, com frieza de guerra, que as declarações deste presidentezinho maligno (a sua “gripezinha” dá salvo conduto a este diminutivo) tem uma lógica, não são frases desconexas ou loucas, nem de um louco: que em suas reações e atos ele revele uma evidente posição paranóica, sobretudo em suas querelas pessoais com inúmeros ex-aliados com os quais vive rompendo não deve nos iludir: ele não é louco quando profere suas barbaridades políticas. Esta lógica, devemos admiti-lo, torna-se mais inteligível na boca de empresários safados, porém com maior desenvoltura na língua portuguesa: é bem melhor que morram milhares de pobres do que parar a economia acarretando perdas de lucro e capital. Adotar uma política globalmente protetiva da vida da população ao preço de perder lucro pela redução da máquina econômica é inaceitável nessa lógica. O que são milhares de pobretões ou velhos não necessariamente pobres, em 210 milhões de brasileiros, diante dos balancetes das empresas? Por mais difícil que seja dizer isso, faz sentido! Um sentido perverso, o que podemos dizer sem qualquer pathos ofensivo e com a serenidade da discursividade científica da Psicanálise, posto que na base da voracidade de lucro está a recusa da castração e da perda, no caso, de capital, o que deve ser evitado a qualquer custo, preferindo-se a morte (dos outros, dos pobres, bien sûr). É uma escolha. Bolsonaro não está louco, mas escancarando uma escolha: o lucro ou a vida? Sabemos, na Psicanálise, aonde isso leva… Se não pudemos ler o sentido e a lógica necroliberal das declarações insanas, porém coerentes, do presidentezinho e só ficarmos enraivecidos, enfraqueceremos nosso arsenal nessa guerra. Pra viver nesse chão duro tem que dar fora ao fulano!
Mas como psicanalista, que segue outra lógica discursiva e exerce no laço social uma função à qual, nas palavras de Lacan, deve renunciar todo aquele que não puder encontrar em seu horizonte a subjetividade de sua época, não posso silenciar diante das declarações de Jair Bolsonaro e quero expressamente designá-las aqui como desastrosas, irresponsáveis, insanas, deletérias e mortíferas. Associo-me a todas as entidades, instituições e cidadãos que já vem se manifestando, desde ontem à noite, contra as declarações de Jair Bolsonaro, a começar pela totalidade de governadores dos estados brasileiros, que demonstram lucidez, coragem e espírito público – qualidades que faltam ao “presidente”, os médicos sanitaristas e epidemiologistas e suas sociedades científicas, os demais profissionais de saúde, os pesquisadores, as universidades, a imprensa, enfim, todos aqueles que tem defendido a população da grave ameaça que pende como espada sobre a sua cabeça e tem feito tudo que está a seu alcance para reduzir os danos da situação que todos temos que atravessar. Não podemos deixar de lastimar o agravante de ter que atravessar tudo isso sem um presidente da República à altura de liderar esse combate em defesa da vida, e, o que é pior, com um soi-disant presidente que, não podendo ajudar, tenta jogar todo o trabalho coletivo que vem sendo realizado no chão. Mas ele não vai conseguir isso, a sociedade parece estar acordando do seu torpor e querendo fazer outras escolhas.
Para concluir, reconvoco Ruy & Milton no seu canto latino-americano:
A primavera que espero,
por ti irmão e hermano,
só brota em ponta de cano, em brilho de punhal puro. Brota em guerra e maravilha, na hora, dia e futuro
que a espera virar