Imaginar a Vitória – Por Edson Luiz André de Sousa e Fernando Araújo

 

“Talvez os pássaros sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido”

Rainer Maria Rilke

 

Conta uma lenda medieval que um velho agricultor ia ser condenado à morte injustamente, como bode expiatório e assim inocentar o verdadeiro culpado, que era simpatizante do rei. Para convencer o povo do seu espirito de justiça, o Rei, simulando compaixão, disse que ia lhe dar uma ultima chance. Escreveria inocente em um papel e culpado em outro. Caberia ao condenado contar com a sua sorte.  Diante da difícil escolha, o condenado escolheu um dos papéis e imediatamente o colocou na boca e o engoliu. Todos ficaram surpresos com seu gesto abrupto. Então disse: “Bom, agora vamos ver o que está escrito no papel que restou.  O que engoli é o contrário.” Evidentemente, na mão do Rei estava escrito culpado. O agricultor percebeu, imediatamente, que a cena era só uma simulação e que nos dois papéis estava escrito a mesma coisa.

Diariamente estamos sendo confrontados com estes dois papeis diante de nossos olhos e muitos ainda acreditam que é possível fazer esta escolha. O momento é difícil e as decisões não são fáceis. O Coronavirus tem exposto a fragilidade e a desigualdade de nosso laço social e, mais do que nunca, evidenciado o quanto, nestes momentos traumáticos, precisamos do conhecimento da ciência e de lideres políticos sensatos que tenham a serenidade de tomar as decisões que abram espaço para a vida.

Não podemos virar as costas para o saber científico que, dentro da limitação do que sabemos até agora, em todo o mundo, tem recomendado o mais rápido possível o isolamento social e a adoção imediata de políticas de compensação do dano inevitável em termos econômicos que isto vai resultar, sobretudo para a população mais carente.  A congregação da Faculdade de Saúde Publica da USP, com seus 102 anos de história, divulgou nota aberta à Imprensa que, entre outras informações, diz: “O isolamento exclusivo de pessoas em maior risco não é uma medida viável, especialmente em um país com as características do Brasil, com elevados índices de doenças crônicas não transmissíveis que constituem comorbidades relevantes diante da incidência do novo coronavírus. É importante ressaltar que a Covid-19 pode ser assintomática, tem largo potencial de propagação e, como revelam os dados de outros países, pode acometer igualmente jovens saudáveis que, com a sobrecarga dos serviços de saúde públicos e privados, podem vir a engrossar as estatísticas de óbitos evitáveis.”.

Cada dia são novas informações e desencontros nas tomadas de decisões que nos chegam de Brasília. De um lado, começam surgir as carreatas com seus buzinaços, com o slogan “O Brasil não pode parar”, ignorando a experiência que o mundo inteiro está passando de intensificar a quarentena. Do outro lado, o apelo dos profissionais de saúde e pesquisadores em todos os cantos do planeta,  que além de estarem  no front dos hospitais  e dos laboratórios, precisam abrir espaço para nos alertar, que o que podemos fazer neste momento, é respeitar, o máximo possível, o isolamento social. A histórica e prestigiada revista norte-americana ”The Atlantic,” fundada em 1857, publicou ontem uma matéria criticando a postura negacionista do Bolsonaro, contrariando as orientações do conhecimento científico disponível até este momento, e as recomendações da Organização Mundial da Saúde.(OMS)

Link da matéria:

https://www.theatlantic.com/politics/archive/2020/03/bolsonaro-coronavirus-denial-brazil-trump/608926/

Na última quinta-feira fomos surpreendidos com um decreto do governo federal incluindo as casas lotéricas e as igrejas como serviços essenciais, autorizando seu funcionamento. Interpelado pela imprensa, Bolsonaro declarou “Fechar casa lotérica, pelo amor de Deus. Casa lotérica tem vidro blindado, não vai passar o vírus ali.” Na sexta feira, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu este decreto a pedido do Ministério Público Federal.

Podemos imaginar estas lotéricas, pequenos aquários de esperança, funcionando como usinas de contaminação. Neste momento, seriam usinas de morte! Não é desta loteria que precisamos neste momento.

Em um dos seus silogismos, Emil Cioran escreve: “Um dia vou desaparecer de uma hora para outra. O homem tem todas as chances de desaparecer e desaparecerá mais cedo do que pensa, mas, por outro lado, tem razão em prolongar essa tragicomédia, nem que seja por distração ou por vício”.

A aposta no sonho, no acaso e no mistério é uma aposta pelo desejo e pela vida. No horizonte do mistério acena sempre um porvir inantencipável e inesgotável. Mallarmé o disse, em chave poética: “nenhum lance de dados abolirá o acaso”.

Daí a potência da metáfora do “jogo” como imagem de um futuro indecidível: é dessa indeterminação que surge a nossa chance (em francês, chance significa sorte). Chance de criar jogadas que relançam a vida.

Há um detalhe fundamental que a lenda medieval nos revela: é preciso imaginar a vitória. Nem que pra isso seja preciso engolir o papel que quer nos levar pela estrada reta e dura da derrota.

Emma Goldman, figura fundamental do movimento anarquista do início do século XX, nos diz de algum canto da eternidade: “Não me convidem para uma Revolução em que eu não puder dançar”.

O jogo é a dança erótica e desejante entre a sorte e o seu avesso, entre a luz e as regiões de sombra de que precisam os mistérios para sobreviver.

A porta blindada, fria e lisa, 100% opaca, não deixa entrever nenhum mistério. Ela é a impossibilidade da recusa. O material das arquiteturas de guerra – de que os profissionais da violência tanto amam.

Mas nós, os jogadores, já decidimos que continuaremos jogando, deste outro lado das vidraças blindadas.

 (A imagem que acompanha o post é de um dado grego datado de 580-590 A.C)