Sobre sonhos, amor e desejo em tempos de guerra. Por Rosana de Souza Coelho.

Sobre sonhos, amor e desejo em tempos de guerra. Por Rosana de Souza Coelho.

Um médico sonha que ao chegar em casa e se instalar confortavelmente na poltrona da sala, todo o seu apartamento fica sem paredes. Apavorado, olha à sua volta e os apartamentos vizinhos também estão sem paredes. Nesse momento ouve a voz que sai de um megafone dizer: “De acordo com o edital sobre eliminação de paredes, datado dia 17 deste mês…”.[1] Uma jovem mulher sonha com quadros colocados em cada esquina para substituir as placas de rua proibidas. Nesses quadros anunciavam-se, em letras brancas sobre um fundo negro, vinte palavras que estavam proibidas de serem pronunciadas, das quais a sonhadora lembra claramente de duas: a palavra Lorde a palavra Eu.[2] Uma moça de 22 anos acreditava que todos a consideravam judia. Ela sonha que está em um café, com sua pasta de documentos debaixo do braço. Em dado momento ela passa a ser perseguida. Desesperada, busca um local onde se esconder. Primeiramente escolhe um armário, depois o alto de uma árvore. Finalmente, se vê deitada em um monte de cadáveres e pensa: “Felicidade plena, sob um monte de cadáveres e com minha pasta embaixo do braço”.[3] Em outro sonho, um funcionário público experimenta a indigesta combinação de culpa e angústia: “Como toda noite, às oito horas converso ao telefone com meu irmão, meu único confidente e amigo. (…) Depois de, por precaução, elogiar a atuação de Hitler e a qualidade de vida do povo no país, afirmo: ‘Não encontro alegria em mais nada’. (…) O telefone toca no meio da madrugada. Uma voz inexpressiva diz: ‘Aqui é o Serviço de Controle de Telefonemas’ – e nada mais. Percebo imediatamente que meu crime foi a tal falta de alegria, ouço-me dando justificativas, pedindo e implorando que me perdoem daquela vez, que não me denunciem, não passem a informação adiante e não me culpem por nada. Ouço-me falar como em um tribunal. A voz permanece absolutamente muda e desliga, deixando-me em uma incerteza torturante”.[4]

Os relatos dos sonhos acima compõem o livro de Charlotte Beradt, ensaísta e jornalista alemã, amiga e tradutora de Hannah Arendt, a qual fez um trabalho que merece o sincero agradecimento dos psicanalistas: a compilação, entre os anos de 1933 a 1939, de mais de 300 sonhos de pessoas que estavam sob o Terceiro Reich, as quais foram condenadas, como se expressa a autora, a ter sonhos muito similares. Beradt ressalta que é impossível não identificarmos a época e os acontecimentos que estão na origem dos sonhos mais diversos. “O tempo e o local – diz ela – são claros: eles só podem resultar da existência paradoxal sob um regime totalitário do século XX e, em sua maioria, especificamente da existência sob o regime hitlerista na Alemanha”.[5]Como bem assinala a autora, ao conhecermos o conteúdo dos sonhos, fica claro que os sonhadores não se ocupam com questões de âmbito privado, “mas com conflitos conduzidos no espaço público e por sua agitação carregada de meais verdades, suspeitas, fatos, boatos e suposições”.[6]São sonhos que “(…) têm suas raízes diretamente no momento político que envolve os sonhadores, no qual eles crescem e se multiplicam”[7]

Hannah Arendt, por seu turno, nos legou uma bela obra. Faz parte dela Origem do Totalitarismo, um dos livros mais inquietantes que eu já tive a oportunidade de ler.[8] Nele, Arendt destaca, em várias passagens, o gosto exacerbado e obsceno que o regime totalitário tem no que diz respeito a colonizar os corpos alheios. Para o poder totalitário o domínio de um Estado é pouco. Ele almeja dominar tudo que é vivo, paralisar tudo o que possa se contrapor à sua lógica egocentrada. Habitar os lares e colonizá-los com suas palavras de ordem é mero aperitivo. Seu desejo mais candente é endereçado aos corpos, visando cooptá-los com supremo deleite. E sua meta final é o completo apagamento da fronteira entre a esfera pública e a esfera privada.

É conhecida a análise de Arendt sobre o perfil típico daqueles que mais facilmente aderiram ao regime nazista e multiplicaram suas horrorosas ações: foram os “indivíduos normais”, aqueles que são “acima e antes de tudo, empregados eficazes e bons chefes de família”.[9] Essa particularidade possibilitou que em poucos anos de poder e organização sistemática, Robert Ley, um dos chefes do partido nazista, observasse que “a única pessoa que ainda é um indivíduo privado na Alemanha é aquela que dorme”.[10] Mas o que Ley, em sua ignorância não queria saber – certamente com perverso cinismo – é que não há uma separação stritu censu entre realidade interna e realidade externa, entre subjetividade e política. “O inconsciente é a política”. Lacan dixit. E as “formações do inconsciente” vêm atestar esse íntimo enlace entre o sujeito e Outro da política. Porém, se os sintomas, lapsos, atos falhos e chistes “falam” com mais frequência na vida de vigília, os sonhos precisam de um ambiente acolhedor e secreto para aparecer. Por isso eles visitam o sujeito na calada da noite. Por isso eles são a via para o inconsciente que Freud adjetivou de régia, tamanha sua importância nos desvendamentos do desejo.

Ao assistir o filme A Tabacaria[11]sua delicada narrativa me reenvia ao livro de Beradt. Isso porque há nela um jovem herói, sonhador e encantador, posto que encantado com seu primeiro e impossível amor. Em meio à adolescência, etapa onde a assombrosa pergunta “Quem sou eu?” atormenta e inquieta, ele encontra um dileto interlocutor, com quem tem a honra de partilhar suas fantasias e angústias: ninguém menos que Sigmund Freud. A partir desse encontro conhecemos o herói pelas suas fantasias, e mais precisamente pelo  que dele nos conta sua vida onírica, esse mundo interno habitado por desejo e paixão, por medo e angústia, encantado e assustador, como só o mundo interno sabe ser. A escalada do nazismo vai, paulatinamente, se infiltrando em seu cotidiano, destruindo as felizes expectativas de amor realizado, arrancando figuras parentais que lhe serviam de esteio. Seus sonhos, claro, não são poupados: em um deles precisa salvar Freud da morte por afogamento e, em outro, de cristalina verdade sobre o que quer e pode um governo totalitário, vê refletida a palavra “futuro” em um espelho que se parte em mil pedaços. Mas, se os sonhadores de Beradt puderam proteger-se, narrando seus sonhos anonimamente, na qualidade de herói foi preciso dar a ver ao mundo o conteúdo de seus sonhos. Escritos e fixados na parede externa da tabacaria, eles atraem curiosos, mas também os que estavam a serviço do regime nazista. A ousadia do herói me convoca a usar o filme como uma lupa que ilumina os contornos do que vivemos aqui e agora. Então, me pergunto: o que estamos sonhando nós, em meio a um Brasil que declina politicamente? Como fazer passar à palavra oque habita nosso teatro de sombras, de maneira que sejam possíveis atos que estanquem dias de maior horror?

Certamente nenhum ato é sem consequências, e o do herói sonhador não foi. No entanto, ele nos inspira a pensar que a descoberta freudiana sobre o lugar central do desejo no psiquismo, e a afirmação lacaniana de que o inconsciente é a política se conjugam para a compreensão de que o encontro com um sonho pode cumprir a importante função de sustentar um ato embalado pelo desejo de que o nosso futuro não venha a se estilhaçar.

 

 

[1]Beradt, C. Sonhos no Terceiro Reich. Tradução de Silvia Bitencourt. São Paulo: Três Estrelas, 2017, p.44.

[2]Idem, p. 58.

[3]Idem, p. 95.

[4]Idem, p.58.

[5]Idem, p. 38..

[6]Idem, p. 39-40.

[7]Idem, p. 39-40.

[8]Arendt, H. Origens do totalitarismo. Anti-semitismo, Imperialismo, Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[9]Idem, 1989, p. 388.

[10]Idem, 1989, p. 388.

[11]A Tabacaria. Direção Nikolaus Leytner. Áustria, Alemanha. 2018.