Seria um pássaro? Um avião? Não, era Superman cruzando os ares e colocando todo seu esforço para fazer a Terra girar ao contrário e, assim, voltar o tempo salvando Lois Lane – seu amor – da morte. Enquanto voava enfurecido para a estratosfera, ouve a voz de seu pai lembrando-o que não deveria manipular a história humana, ao mesmo tempo em que pondera que com todos os seus poderes ele não pôde salvá-la… Cena emocionante que provavelmente muitos de nós assistimos incontáveis vezes nas televisões de tubo que reinavam nas salas quando éramos crianças. Superman cede em um princípio ao resolver garantir o que lhe parecia justo, uma vez que tinha os meios para tanto: será que qualquer semelhança com a nossa realidade brasileira, nesse final de década, é mera coincidência?
Foram os seguidores do juiz Moro que lhe deram a alcunha de super-Moro e, posteriormente, já como integrante do governo vitorioso no pleito turbulento em 2018, de super-Ministro. A operação Lava Jato trabalhava no sentido de esclarecer os prováveis crimes de corrupção que aparentemente se multiplicaram ao final do governo Lula.
Desamparados com a possibilidade do Partido dos Trabalhadores ter se tornado não só compincha dos políticos sanguessugas que sempre habitaram Brasília, mas ele próprio corrompido em suas entranhas, revelando-se como mais um exemplar da tradicional politicagem brasileira, os intelectuais de esquerda se viram perplexos e descrentes da política partidária como garantia da democracia. Falas como “sem partido” ou “sem bandeira” passaram a ser toleradas como uma forma de expressão do que, avaliando hoje, me parece ter sido um período turvado por uma anestesia social geral. Será que isso explicaria o inexplicável fato de um parlamentar ter enaltecido um torturador no momento de votar se o processo de impeachment era válido ou não? Aparvalhados, choramos silenciosamente enquanto muitos aplaudiam, soltavam rojões e, pouco tempo depois, elegiam-no presidente do país.
Tudo parecia fora da ordem, como um pesadelo digno de fazer qualquer Superman girar a Terra ao contrário para voltar no tempo e refazer a história. Humanos que somos, providos da razão para pensar dilemas e de estruturas sociais ancoradas em princípios civilizatórios, ainda que sofridos e abobados, resolvemos disputar dentro do campo político: resistir seria, em primeiro lugar, insistir em nossa existência – acho que é só por isso que escrevo, aliás!
Acontece que os novos heróis – alçados a legisladores, governadores, ministros, presidente – acreditaram tanto na imagem de si que viram refletida na multidão que passaram a circular com suas capas por aí, sem se importar se o que faziam estava dentro da lei, pois, justamente, estavam acima dela (na certeza que seriam eles mesmos sua garantia). Se o respeito às estruturas jurídicas podia falhar em produzir justiça, os poderosos, convictos de seus julgamentos acerca do que seria justo, podiam construir os caminhos para que sua versão justa dos fatos prevalecesse. Uma forma de nomear esse fenômeno veio de Denis Burgierman quando disse que esse tipo corresponde ao mafioso – veja o texto dele aqui: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2019/A-palavra-n%C3%A3o-%C3%A9-mil%C3%ADcia.
(Apenas uma observação: já repararam que nem Batman, Superman, Homem-Aranha ou até Capitão América nunca somaram a função de governantes à de heróis? Falo propositalmente apenas “heróis” do universo típico do nosso patriarcado, homens e brancos)
Os mafiosos resolveram não só fazer justiça e privilegiar a famiglia. Eles batalharam pelo embrutecimento da nação. Fragilizados que estávamos nesse fenômeno de massa que rebaixou nossa razão quando aderimos ao discurso misógino e assassino, esse projeto encontrou passagem. Não à toa tem se propagado a ideia do terraplanismo como forma de refutar todo conhecimento humano construído desde a Grécia antiga. Achatar nossa existência, comprimir as subjetividades, planificar o mundo. Tudo volta a caber na territorialidade de uma moeda e passa a ser decidido entre cara ou coroa. Não um cara ou coroa dos jogos de azar, mas num maniqueísmo valorativo entre os cidadãos de bem e os bandidos ou quase bandidos de tão defensores dos direitos humanos que são. Se você não está no time do “bem”, só pode estar no outro…
É aviltante a fala do ministro da Educação que toma o microfone em um restaurante em Alter do Chão, no Pará, e afirma ser um cidadão pagador de impostos e não uma figura pública; motivo pelo qual alega que não deveria ter sido interpelado por manifestantes com cartazes enquanto jantava com sua família em férias pelo norte do país. Pergunta: quem será que mais expôs aquelas crianças? Dois jovens com cartazes e um terceiro com um prato de kafta ou o pai que vocifera e bate boca no restaurante provocando reações de vaias ou aplausos? Ele decide o que pode e o que não pode e se autoriza a fazer um escarcéu público – uma espécie de auto escracho – colocando, claro, a culpa no PT – esse refrão que virou salvo conduto para a barbárie.
Tudo isso acontecendo agora, em 2019, que também é o ano em que o belíssimo texto Das Unheimliche de Freud completa cem anos, ganha uma edição comemorativa e uma nova e sublime tradução: “O infamiliar”. Como não quero achatar o ensaio – inevitável explicitar essa contradição aqui – vou direto para o preciso comentário de Ernani Chaves (2019) que integra o volume publicado pela Editora Autêntica. Ele retoma uma entrevista dada por Peter Eisenman por ocasião da inauguração do Monumento ao Holocausto, idealizado pelo arquiteto, localizado em Berlim. Diz que quando viu, pela primeira vez, as pessoas caminhando por entre os blocos de concreto e suas cabeças desaparecendo nesse percurso, lembrou-se de uma imagem de Primo Levi quando escreveu que os prisioneiros estavam submergidos num inferno pessoal, não estavam vivos nem mortos.
Ernani Chaves nos conta o que experimentou por ocasião de sua visita, num inverno gelado, a alguns desses caminhos intranquilos: “o sentimento da mais absoluta perdição, do desamparo inominável, dessa espécie de unheimliche que marca nosso tempo, a nossa época, aquele que a própria razão, que nos é tão familiar, engendra e nos revela – o da crueldade absoluta, da violência sem limites, do direito de matar em nome da suposta garantia de uma vida plena e feliz. Afinal de contas, não é frequente perceber-se a si mesmo desaparecendo em algo que parece plano” (p. 171).
Esse é o passo a ser dado em 2019: não podemos continuar a desaparecer em algo aparentemente plano ou até mesmo super plano. Quando me lembrei dessa passagem do filme original do Superman, dei-me conta de que esse seu ato não produziu em nós, expectadores, o sentimento de inquietante estranheza próprio ao infamiliar freudiano. Ele se corrompe, nós até torcemos por ele e ficamos felizes que o amor – esse sentimento tão humano – possa ser vivido pelo herói. Mas Freud já havia advertido de que nem sempre as histórias fantásticas produzem o sentimento de estranha familiaridade e isso pode se dar, pois, justamente, essas narrativas ficcionais estão dispensadas da prova de realidade: “O resultado paradoxal que ressoa aqui – escreve em 1919 – é que na criação literária não é infamiliar muito daquilo que o seria se ocorresse na vida e que na criação literária existem muitas possibilidades de atingir efeitos do infamiliar que não se aplicam à vida” (p. 107).
A distopia brasileira é cotidiana e não uma peça de ficção ou um case a ser analisado nos anos vindouros – o “Wild, wild Brazil”, como já afirmei anteriormente neste mesmo blog (https://psicanalisedemocracia.com.br/2019/06/wild-wild-brazil-por-paula-fontana-fonseca/). É necessário estranharmos, agora, o que nos tem acometido. Quem é esse e em nome de qual valor humano e civilizatório ele sustenta seus atos uma vez no poder? Para que nossa Terra não vire plana e expropriada da gravidade – uma aparente planície na qual submergimos –, temos que exigir que o Supremo Tribunal Federal faça valer seu lugar de garante da lei no pacto brasileiro. Ou será que nossa ordem de anciãos vai simplesmente deixar desmoronar tudo que foi construído em nossa curta democracia?
Resta-nos, quero crer, pelo menos duas possibilidades que estão estruturalmente articuladas: 1) espantarmo-nos com isso do infamiliar que nos assombra na realidade brasileira e fazermos valer as estruturas civilizatórias: respeitar princípios democráticos em julgamentos (promotores e juiz não podem entrar em conluio e acordar um procedimento em prol ou contra um dos interessados, muito menos usar parcialmente a informação interferindo diretamente no pleito nacional), em pronunciamentos (mesmo os que se valem do twitter ou qualquer rede social) ou no uso da máquina pública (helicópteros incluídos) deve ser exigido TAMBÉM desse governo – eles não estão acima da lei e isso tem que ser apontados pelos colegiados e órgãos competentes que carregam essa função na estrutura social; 2) buscar na arte formas de experimentar o infamiliar para que não nos tornemos permanentemente planos. Gilberto Gil, em “Super Homem – a canção”, fala da ilusão de que o mundo masculino daria tudo que se quisesse ter. Manter essa ilusão tem, a cada dia, esmagado e exterminado mais e mais vidas. Basta.
“Quem dera, pudesse todo homem compreender, oh mãe quem dera, ser o verão o apogeu da primavera… e só por ela ser” – Ouçam!
Paula Fontana Fonseca é psicanalista, doutora em educação pela Faculdade de Educação da USP e desde 2010 é psicóloga do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da USP.
Imagem: Superman 3. Dir. Richard Lester. Warner Bros pics. 1983.