Bate-se na história. Por Paula Fontana Fonseca.

Bate-se na história. Por Paula Fontana Fonseca.

            Outro dia me peguei pensando naquele comercial que era famoso nos anos 80 e com o qual todos, de alguma maneira, se identificavam: uma adolescente entrava no elevador apressada, tomando um refrigerante Sukita no canudinho; um senhor bem apessoado num gesto cordial segurava a porta para que a garota não perdesse a viagem e ficava todo animadinho com a presença da beldade teen; começava a puxar um papo besta, típico de elevador (nos anos 80, talvez), até que a mocinha dizia: “Tio, aperta o 21 pra mim?”.

            Basicamente, víamos encenada uma situação corriqueira, domiciliar até, e que desvelava algo do imaginário social masculino: se dar bem com a menininha linda e charmosa. Na época, o comercial foi um grande sucesso. Parecia que o homem não enxergava a diferença óbvia de idade que existia entre eles e ríamos do “fora” espontâneo que ela dava no “tio”. A cena era tão agradável e espirituosa que deu origem a uma pequena sequência de filmes publicitários que sempre tocavam nesse ponto: o “tiozão” querendo se dar bem com a jovem que, graciosamente, dizia estar mais interessada em curtir com a moçada da sua idade.

            O que nos assombra em 2019 e que pode ter relação com o “tio Sukita” dos anos 80? Bem, imaginem que se, hoje, sua filha entrasse no elevador do prédio e o vizinho “solteirão” – ou “casadão”, tanto faz – do 81 mandasse esse papinho pra cima dela. Será que você acharia a situação cômica?

Os anos 80 foram importantíssimos, afinal o que seria de nós sem os Titãs, por exemplo? Sem o movimento pelas “Diretas já”? Mas também foram anos de convivência com sentimentos díspares: por um lado a democracia, a possibilidade de experimentar uma liberdade na rua – andar, falar, pensar coletivamente no espaço público –, por outro lado, o coronelismo seguia dando as cartas em casa e na política. Acho que não é à toa que a moda abusava de cores tão chocantes, talvez aquele verde-limão fosse uma tentativa de sublinhar com marca texto o que estávamos aceitando junto com o pacote da redemocratização: podemos votar, podemos circular pelas ruas, trabalhar, ter acesso à educação, pensar… mas ainda devíamos deixar as coisas importantes para os que tinham gabarito para tanto.

            Foi apenas com a chegada do novo milênio que as bases da sociedade brasileira começaram a sofrer alterações estruturais. Primeiro, tivemos um presidente intelectual, sociólogo, que havia sido exilado durante o período da ditadura militar. Depois, um ex-metalúrgico, nordestino, homem carismático, graduado na luta política e, finalmente, uma mulher que não era nem “bela recatada” e nem “do lar”, na verdade era alguém que convocava pouca condescendência por parte dos políticos de carteirinha, alguém que diante de um tribunal militar ousou apresentar-se de cabeça erguida e olhar nos olhos de seus detratores.

            A coisa parecia avançar – com percalços, claro, mas é inegável que a pauta social foi ganhando protagonismo junto com a econômica. Acreditamos piamente que o sonho de uma sociedade igualitária – europeia até – estava ao alcance de nossas mãos. Para isso, teríamos que abordar fraturas crônicas como o racismo e o machismo estrutural. Seria difícil olhar-se no espelho e ver que você não era apenas prafrentex. Era também filho de seu tempo e carregava todos os vícios que o brasileiro médio podia ter. Mas estávamos buscando meios de lidar com essa ferida narcísica nacional.

            Pelo menos foi nisso que parte de nós acreditou, imaginando ser um solo comum no qual nossa bandeira nacional seria hasteada com seu verde, amarelo, azul e branco. E seguiríamos de braços dados, somando cores, fazendo a hora, decididos que estávamos em não esperar mais para a nação sonhada acontecer.

            Esse final de década que vivemos, obriga-nos a olhar para trás à luz dos acontecimentos e experiências atuais. Aquilo que foi um sopro de esperança, uma lufada de ar libertário, um idílio de crescimento enquanto nação foi também momento de invisibilização de camadas populacionais menos favorecidas, os famigerados pretos ou quase pretos de tão pobres. Para o esquema funcionar – e ele era tão rosa choque – alguns tinham que seguir inferiorizados. Nós não sabíamos disso, ou sabíamos sem saber… me explico.

            Freud (1919), em um daqueles seus textos brilhantes, debruçou-se sobre uma cena que escutou de alguns de seus pacientes na qual uma criança era batida por alguém. A esse enredo consciente, anônimo, subjazia outro: o pai bateria numa criança que não seria eu. Há vergonha e há também a delícia de ser aquele que é amado por alguém tão decisivo em nossas vidas: sou amado pelo pai, ele não me bate. Ao contemplarem essa situação, viviam um sentimento ambivalente de prazer e culpa. O que restava indizível nesta cena fantasmática era construído em análise e concernia ao próprio sujeito que a relatava: no inconsciente, ele seria a criança espancada.

            Ao considerar a dimensão fantasmática – a ficção que recobre o desencontro do sujeito com o mundo – como ler o Brasil contemporâneo?

            Voltando aos anos 80… Alguns de nós percebemo-nos amados justamente porque havia aqueles que não o eram. Era um sentimento ambivalente, que foi fazendo sintoma por aí: a tentativa de velar a culpa vivida ao ver uma criança pobre pedindo esmola na rua por meio dos vidros fumês dos carros, dos prédios com recuos e grades demarcatórias ou adensando o discurso meritocrático que pregava oportunidades iguais – asilos para nossa paz de espírito. Mas, se seguirmos os passos de Freud, podemos nos aventurar a pensar que o que resta indizível nessa cena é que somos nós que apanhamos.

É verdade que uns seguem tendo a pele marcada pelo ferro bruto, pela palavra hostil e pelo olhar preconceituoso. Meu intuito não é minimizar essa diferença, ela mata uns e não outros. Meu ponto é afirmar que, quando batemos na história, fustigamos a nós mesmos. E é isso que estamos fazendo neste instante, queremos negar a ambivalência e para isso colocamos em seu lugar uma certeza polarizada: exalta-se o torturador, homenageia-se o assassino e difamam-se os que ousam pensar, problematizar e pesquisar nosso momento histórico.

O “tio Sukita” ressurgiu das cinzas. Ele andava pelos cantos, tinha guardado o pulôver em tom pastel no fundo do closet e conversava sobre a meteorologia nos elevadores da vida. Só que ele não estava curtindo esse papel coadjuvante, no qual até o presidente dos Estados Unidos era afro-americano, as piadas já não eram mais engraçadas e sim racismo ou homofobia, as mulheres passaram a ser chefes (ou talvez pudéssemos dizer “chefas”?!) e os crimes ditos “passionais” revelavam-se como feminicídio. Por vezes, discutiam nas mesas dos bares os malefícios do politicamente correto: “Não podemos falar mais nada que vem um grupo protestar, povo chato…”.

            Estavam quietos, hibernando nisso que, para eles, era apenas um longo inverno. Reapareceram com seus ternos e gravatas, suas camisas de promoção de futebol ou de lubrificante para carros, seus chinelos de dedo soltos nos pés ou sapatos de bico fino e dominaram a situação. Devolveram a mulher para o lar, voltaram a decidir sobre o corpo delas, a julgar seus comportamentos sob o crivo do pai da tradicional família brasileira. Resolveram fazer justiça com as próprias mãos, formaram milícias, aparelharam o Estado, passaram não só a legislar como também decidir sobre o valor da vida: quem tem direito de ter uma vida digna são os cidadãos dignos e esses são feitos à sua imagem e semelhança. E com esse pensamento “tostines” – totalmente anos 80, aliás – viraram coronéis globalizados, que passam as férias em uma quinta em Portugal, fazem negócios com chineses e criticam o que chamam de “assistencialismo brasileiro” enquanto brindam na cobertura-própria do cunhado que se beneficia de um (ou serão dois?) auxílio moradia.

            Hoje, o “tio Sukita” está na moda. Ele virou um abusador chancelado pelo poder público em conluio com a sociedade civil organizada. E para tudo isso dar certo, está valendo até apelar para a mão-forte do governo: damos todo poder para um autoritário de plantão, pois, assim, ninguém vai perder tempo implicando com a forma como usufruímos de nossas influências cotidianamente, sempre usando a balança para favorecer os que são como nós. O “tio Sukita” não só segue frequentando elevadores, agora também é síndico de prédio! E para não ter seus atos questionados por assuntos de convivência e solidariedade, ele se cercou do regimento. Diz jogar dentro das regras e como um prestidigitador muda o acontecimento sob os nossos olhos – afinal, você provavelmente não tinha atentado que “na alínea 4 do parágrafo terceiro o regimento prevê que…”.

            A fantasia serve para organizar nossa relação com a realidade, transformando-a para o bem e para o mal, não importa. Mas quando é a perversão que se encarna nos atos cínicos e escancara nossas contradições à luz do dia, nossa culpa neurótica tem que ser deixada de lado. Eu sei, não sou melhor que ninguém, faço um monte de besteiras, me defino como contraditória – vejam só como sou bagunçada! Afinal, por que algo que eu tivesse dito faria a diferença no agora? Esse pensamento tão incrustrado em nós deve ser deixado para o divã. Lá podemos divagar sobre as mazelas de sermos quem somos, chorarmos nossa miséria.

E o “tio” da Sukita? Ele vai voltar a se autocontrolar, a falar do tempo no elevador, vai disfarçar-se de cidadão comum e destilar seu machismo nos estádios de futebol, esperando a nova chance para desfilar como um pavão, para ser o galo do galinheiro. Então, mais do que pensar nele, temos que pensar naqueles que foram esquecidos nos anos 80, pois só com as pautas das ditas “minorias” – que, na verdade, são a maioria da população – que um projeto de Brasil vai se fazer morada de sonhos, terreno de disputas políticas e de construção de um presente digno.

Não é nada fácil nos olharmos no espelho e vermos refletida a imagem de uma sociedade machista, racista, homofóbica e autoritária. Mesmo que seja penoso, será que há motivo que justifique golpear a história? O dia 31 de março devia ser espaço para o luto daqueles que morreram subjugados pela violência do Estado ditatorial, que foram torturados ao som do hino nacional, assassinados nos porões da repressão e desovados em valas comuns, no leito dos rios.

A luta pela dignidade humana, vivida nos anos de chumbo, é um marco da nossa democracia. Depois dela, retomamos o espaço para crítica, discordância, debate. Depois dela, nos aventuramos em promover avanços no campo da garantia de direitos de modo a possibilitar que aqueles destituídos de poder tivessem meios para, cada vez mais (e ainda era tão pouco), serem cidadãos de fato. Num esforço ativo de desnaturalizar funções subservientes como se elas fossem intrínsecas aos sujeitos – seja por seu gênero, seja por sua cor. Esses rearranjos mexem com toda a estrutura e acabam por desarranjar aqueles que iam muito bem, obrigado.

A quem interessa deletar a história? Apenas os que pretendem seguir com a política de extermínio legitimada em 64 e que perdurou ao longo desses anos. Aos que apostam que entre o sujeito e mundo só há o pior.