Entre memória e ficção. Um espaço moebiano por onde se desliza dentro/fora, em que sujeito e coletivo estão em continuidade. Nele, o íntimo e o social encontram-se nesse entre, a tal ponto que não mais os distinguimos. Muitas análises já foram feitas do filme Roma, do diretor Alfonso Cuarón. Desde situa-lo como um filme pessoal, em que homenageia a empregada da família que o cuidou na infância; até como uma representação da luta de classes no México (Zizek). Entre esses extremos, outras análises destacam cada detalhe, dos mais evidentes aos mais enigmáticos, que permeiam sua narrativa.
O que faz com que esse filme produza tantas análises? Certamente sua qualidade, de uma obra aberta, que não se fecha. Que convoca leituras. Roma fica habitando o pensamento, teimando na lembrança, como num reino de histórias que queremos rever. Como num corpo ainda sem domínio das palavras, na inconsciência que faz presença na infância. Como num looping temporal, que enuncia no agora o sonho que superpõe passado e futuro, expresso na frase do caçula Pepe, que diz à sua babá Cleo: “quando eu era grande, estavas aí, mas eras outra”. Ela interroga o tempo verbal: “quando fores grande…”. Mas não se tratava de um erro de gramática. Tratava-se de uma presença que já estava ali, com ela, antes dele nascer, no mundo do sonho, que deseja que ele seja piloto, talvez dos tantos aviões que sobrevoam a cidade do México e que a câmera de Cuarón registra de tempos em tempos no filme. Pepe reafirma: “quando eu era grande… antes de eu nascer…”, o sonho do Outro que estava antes.
O que primeiro me convocou no filme foram as falas do menino Pepe, que parece falar por Cleo. Que sinaliza que ela está muda, depois do episódio de parir uma menina morta. Que antecipa um afogamento, num outro looping do tempo: “sabias que quando eu era grande fui marinheiro? Mas um dia me afoguei numa tempestade… era de noite… e eu não sabia nadar…”. Cleo não sabe nadar. Nesse exato instante em que Pepe diz essa frase, ela vê que precisa entrar no mar para salvar dois irmãos de Pepe, que estão se afogando. Depois que sai do mar, ela finalmente fala: “eu não queria que ela nascesse”, referindo-se à filha morta. E ali reconhecemos que ela se afogou, junto com a esperança que todo filho carrega.
O filme de Cuarón faz uso de suas memórias, mas não se trata de uma memorialística banal. É também uma memória dispersa nos elementos acessórios, que servem de interpretantes das situações, constituindo-se em personagens vivos na narrativa. Um dos principais é o corredor de entrada da casa, que serve de garagem para os carros. É uma passagem, no sentido utilizado por Walter Benjamin. Um espaço moebiano em que interior e exterior estão em continuidade. Vale a pena lembrar como Benjamin situa, em seu Livro das Passagens, as especificidades que assumem as ficções memorialísticas a partir de Proust:
Proust só pôde surgir como um fenômeno sem igual numa geração que havia perdido todos os recursos corporais e naturais de rememoração e que, mais pobre do que as anteriores, havia sido abandonada a si mesma, só podendo, por isso, se apoderar dos mundos infantis de maneira isolada, dispersa e patológica. (pg. 405)
As Passagens – galerias que reuniam pequenos comerciantes, antes da imposição da grande indústria – serviram a Benjamin como uma alegoria, como um lugar que guarda o sonho no século XIX. Para Benjamin, a obra de Proust traz a referência a uma memória singular, porque contém em si o esquecimento. É uma tessitura de Penélope, em que o texto contém seu direito e seu avesso. Assim, essa memorialística não trata simplesmente da evocação de algo vivido, ela contém em si um impossível, um não realizado. Como da ordem de um Real, que podemos propor a partir da psicanálise.
Assim como as Passagens, em Benjamin, são uma alegoria de um fora/dentro – um extimo não reconhecido, que tensiona a interpretação – também nesse sentido a garagem do filme de Cuarón pode ser situada como passagem. Por ela entra aquele tão aguardado em sua ausência e tão saudado pelas mulheres e crianças quando chega: o Pai. A cena de sua chegada é patética, fazendo entrar na garagem um carro de tamanho excessivo para o lugar, com manobras meticulosas para não macular tão precioso bem. Bem, este, para o qual se volta a ira da mulher quando, deixada pelo marido, despeja toda sua raiva no carro, batendo com ele insistentemente, como representante daquele que a abandonou. Num dos momentos em que manifesta sua dor pelo abandono, se reconhece como mulher, na mesma posição de Cleo, que foi abandonada grávida pelo namorado: “estamos sozinhas. Não importa o que te digam, sempre estamos sozinhas”.
Elas estão sozinhas vivendo juntas na casa: a avó, a mãe, duas empregadas e as crianças. Compõem o reino da intimidade, alijadas das decisões e de um poder dos homens, do qual sofrem os efeitos, mas que parecem não participar. São testemunhas silenciosas, cada vez que saem da casa e que pela rua cruzam com um ridículo micro desfile militar, tão patético quanto o carro que não cabe na garagem. Cuarón não poupa os personagens masculinos, representando-os como garotos inconsequentes, fugindo de responsabilidades. O ponto de fuga principal dizendo respeito ao exercício da paternidade: seja Fermín, não assumindo que engravidou Cleo; seja Antonio (o pai da classe média), abandonando os filhos sem lhes dar explicação e não os sustentando economicamente.
Dessa novela familiar – no sentido freudiano – as mulheres são jogadas num acontecimento social, justo no momento em que vão comprar um berço para a filha de Cleo que está por nascer. O acontecimento encena um massacre realizado por grupos paramilitares na cidade do México, que matou pelo menos 120 pessoas em junho de 1971, atirando em estudantes desarmados que faziam uma passeata de protesto contra o governo. Fermín, fazendo parte do grupo paramilitar, entra na loja em que Cleo estava. Fica parado, com uma arma na mão, olhando-a. É nesse momento que Cleo entra em trabalho de parto, que resulta no nascimento da menina morta.
A complexidade implicada na representação desse episódio merece algumas considerações. Situo ali outra passagem, dizendo respeito a um certo resto desse encontro individual/coletivo. Ou mesmo o que poderia ser representado como encontro da novela familiar, com um trauma social. Trauma que deixa fantasmas sociais e que compõem silêncios nas tramas individuais. Como a menina Cleo, indígena que perdeu seu lugar de origem para o colonizador. Ou mesmo os jovens pobres da periferia, treinados como milicianos (os falcões) para manutenção da força de um governo que não tolerava oposições. Na franja dessa passagem, nesse litoral em que retorna um Real não tratável que se repete no episódio, temos o assassinato dos jovens que se revoltam. Desta revolta, dependia o enlace entre passado e futuro, na condição de denunciar um poder totalitário mortífero, que anula as condições de uma transmissão.
Para concluir provisoriamente um comentário, a partir da multiplicidade de questões que me despertou assistir a Roma, retomo o tema das memórias. A originalidade na construção do filme é que as memórias não são compostas desde um saber exterior à montagem das cenas, não há um eu narrador que sabe sobre os acontecimentos. Os comentadores do filme precisamos investigar em outro lugar as histórias encenadas, na medida em que Cuarón não nos informa sobre elas. O ponto de vista da narrativa é do lugar das empregadas e das crianças, além das mulheres “donas” da casa, que nada comentam sobre os acontecimentos sociais, como se isso não lhes concernisse. No entanto, seu padecimento – que pareceria restrito à novela familiar – encontra um ponto em comum com o trauma social. O abandono e submissão dessas mulheres com suas descendências, resulta da imposição de uma forma de poder que se esgota em seu puro exercício. Deste, a classe média sempre foi concessora, assim como aqueles que compõem as milícias, fazendo a máscara de seus patrões. Roma vem nos lembrar de uma atualidade de colonizados que insiste de tempos em tempos, até que advenha uma suposta calmaria que nos faz esquecer. É o que a psicanálise reconhece como retorno do recalcado.
Muitos outros elementos do filme mereceriam comentários (a cena no sítio é, em si, complexa e diz da posição dos colonizadores e daqueles que os sucederam, como o domínio econômico americano), mas fico com as passagens antes destacadas, porque penso situarem suficientemente essa relação entre memória e o que retorna como sintoma, efeito de um recalcado, ou mesmo de uma recusa. Estes efeitos de esquecimento, resultam do rompimento da malha simbólica de transmissão entre passado e futuro, tão bem analisado por Hanna Arendt a propósito de totalitarismos, e que nas Américas produz excrecências, tal como temos testemunhado insistentemente em seus retornos.
Imagem: divulgação do filme Roma, de Alfonso Cuarón, 2018.