No canto IX da Odisseia, Homero relata a história dos lotófagos, os que comem loto, um fruto gostoso que gerava esquecimento. Nosso Brasil, desnorteado com a violência crescente, está, aos poucos, aprendendo a não se embriagar com lotos. O dia 14 de março pode entrar para a História como o dia da memória do assassinato da vereadora Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes. Lembrar sua vida, sua luta pelos Direitos Humanos, incomoda, inquieta. Mandaram matá-la. Lembrar de Marielle é dar voz a ela e ao seu trabalho, logo ela está viva na memória e na prática de sua luta. Aliás, indico o documentário O silêncio dos outros, que relata a luta dos espanhóis pelo dever da memória dos enterrados sem identificação na Guerra Civil Espanhola. Vi o filme com um casal amigo, nos encontramos no cinema; ela espanhola, teve seu pai morto quando era um bebê. Falamos muito do filme, de nosso dever de memória e fui alertado: não esqueça dia 14, dia da Marielle e do movimento feminista.
Na Espanha, no Brasil e no mundo todo, o dever da memória é hoje um novo imperativo categórico. O dever da memória é, na verdade, um dever de humanidade. E esse dever foi seguido no carnaval, no desfile da escola de samba da Mangueira, ao contar a história de índios, negros e pobres esquecidos no País. Houve um carro alegórico corajoso lembrando a ditadura assassina. Aliás, em 2014, nos cinquenta anos do golpe militar, foi editada uma revista de psicanálise, Percurso, número 52. Entre outros temas estão os traumas externos, a tortura, os indígenas, a memória, a clínica do testemunho. É a psicanálise enfrentando o desafio de pensar, escrever sobre o trauma psíquico, o silenciamento, a dor dos filhos desaparecidos em que as marcas do sinistro, do irrepresentável, se fazem presentes. Nenhuma geração pode ocultar das gerações seguintes o que ocorreu, escreveu o velho e bom Freud: temos o dever da memória.
Cedo aprendi que devia conhecer o passado, ao comemorar a festa judaica do Pessach, a festa da passagem da escravidão do Egito à liberdade. Não demorou para fazer a ponte com o Brasil ao aprender o quanto sofreram os negros escravos. Há uns trinta anos, convidado a escrever sobre o colonialismo e os judeus, optei por apresentar “As marcas da escravidão”, que consta no livro Psicanálise e Colonialismo, organizado pelo amigo e professor da UFRGS Edson Luiz André de Sousa. Na adolescência percebi como diferentes identidades podiam se integrar na luta pela liberdade. Muito escutei no velho Bom Fim dos que se mostraram indiferentes diante do antissemitismo e da tragédia do Holocausto. E aí pensei que não podia ficar indiferente ao racismo, ao preconceito contra os judeus, negros, índios, LGBT e pobres. E também não podia ignorar os que foram assassinados, torturados e desapareceram nos tempos ditatoriais e do temível DOPS. Tempos em que se criou a expressão “os inimigos internos” para justificar a luta fratricida. O ódio do passado está de volta hoje, abrindo o caminho ao autoritarismo, à ditadura e ao pior do humano.
Na realidade psíquica, há as marcas mnêmicas, as marcas da memória, que não são esquecidas. Num sonho noturno, essas marcas têm a chance de chegar à consciência. É quando recebemos a visita dos mortos que vivem na memória de cada um. Essas marcas constituem o sistema inconsciente. Hoje, entretanto, me refiro às marcas da memória da História, marcas que não devemos permitir que as águas de março lavem e levem para o esquecimento. Marielle está presente mesmo depois da morte, e a cena das bandeiras da Mangueira com seu rosto tremulam corajosamente. Em 14 de março ocorreram dezenas de manifestações nas cidades do Brasil e também no exterior. Aqui em Porto Alegre milhares cantavam: “Mariele presente, virou semente”. Quem mandou matar Marielle é a questão a não ser esquecida. Definitivamente Marielle Vive. O dever da memória é um dever de humanidade.
Imagem: Reconstrucion del Retrato de Pablo Miguel – estátua de ferro representando um adolescente desaparecido na ditadura militar argentina. Artista: Claudia Fontes.