Os manicômios modernos e o horror 2.0. Por André Nader

 

As recentes mudanças na política nacional de Saúde Mental, assim como grande parte das mudanças propostas até aqui pelo governo Bolsonaro, não são retrocessos, mas “avanços” – modernizações. São alterações políticas que modernizam as técnicas de controle e de sujeição dos nossos corpos; modernizam-se também as lógicas discursivas, tornando-as capazes de transformar o horror em um suposto avanço científico.

Essa modernização da Política Nacional de Saúde Mental teve início em Dezembro de 2015, em pleno governo Dilma Rousseff, com a indicação de Valencius Wurch para a Coordenadoria Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, do Ministério da Saúde. Em 2017, com Michel Temer no poder e Quirino Cordeiro Júnior no cargo de coordenador de Saúde Mental, a modernização ganhou contornos mais claros. No mês de dezembro daquele ano, com a publicação de uma série de portarias e resoluções[i], a Coordenadoria reconduziu os Hospitais Psiquiátricos para a política de atenção em saúde mental. Ao mesmo tempo, posicionou-se em defesa da legitimidade da luta contra os manicômios e da Lei 10.216/2001 – marco legal que redirecionou o modelo de atenção em saúde mental, afastando-se da lógica hospitalar para pensar o cuidado em meio aberto, e dispôs sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. O que pode parecer uma contradição ou um retrocesso disfarçado é o que nomeio como modernização.

Na época, foi possível acompanhar o discurso de Quirino, entremeado por discursos de especialistas e de representantes de associações de familiares de usuários de Saúde Mental, defendendo a qualificação de todos os equipamentos da rede, para que as necessidades dos usuários fossem acolhidas de modo integral, respeitando cada singularidade e seu grau de complexidade. Esse todos incluía os Hospitais Psiquiátricos. Assim, conforme cada caso, se necessário fosse, a internação psiquiátrica ocorreria de forma cuidadosa e qualificada, no tempo mais curto possível, garantindo uma rápida reinserção social. Era um discurso que se dizia contra os manicômios, mas a favor dos Hospitais Psiquiátricos qualificados – discurso que exige uma posição de desconfiança. Há uma espécie de sequestro de uma narrativa que, desde o fim da década de 1970, defende outras formas de cuidado para a loucura: formas descentralizadas, em serviços abertos e inseridos no território em que a pessoa reside. É um sequestro discursivo que, para conquistar sua eficácia, faz parecer que o Hospital Psiquiátrico modernizado é mais um parceiro na rede de assistência.

O recém-lançado documento, denominado Nota Técnica nº11/2019, ao discorrer[ii] sobre as mudanças na política nacional de Saúde Mental, segue a mesma lógica do sequestro. Defende os preceitos da Lei 10.216/2001, ostenta números vultuosos em investimentos na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) – R$1,5 bilhão –, discorre sobre a criação de um novo modelo de Centro de Atenção Psicossocial para atender a usuários de álcool e outras drogas (CAPS AD), propõe seguir com o investimento nos serviços já existentes e, ao mesmo tempo, inclui os Hospitais Psiquiátricos na lista dos serviços da rede de atenção (RAPS). Para justificar a ampliação nos investimentos em hospitais e a inclusão simbólica deles como parceiros da rede, tece uma provocativa crítica a uma ideia central da Reforma Psiquiátrica Brasileira: “o Ministério da Saúde não considera mais Serviços como sendo substitutos de outros, não fomentando mais fechamento de unidades de qualquer natureza. A Rede deve ser harmônica e complementar. Assim, não há mais porque se falar em ‘rede substitutiva’, já que nenhum Serviço substitui outro.” Dois dias após sua publicação, esse documento foi retirado do ar. Tal fato em nada altera as resoluções e portarias que vem sendo implementadas desde 2017, ou seja, a modernização segue seu curso.

O marco legal da Lei 10.216/2001 tem sua importância por propor, no combate ao horror que ocorria nos manicômios, um redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental, retirando o investimento financeiro das instituições de internação e, simbolicamente, retirando da Psiquiatria a exclusividade enquanto campo de saber (e poder) sobre a loucura. Em substituição, foram propostos serviços de base territorial e de portas abertas, assim como lógicas multiprofissionais de cuidado. Ao afirmar que nenhum serviço substitui outro, a Coordenadoria de Saúde Mental faz uma provocação à proposição central da Reforma Psiquiátrica brasileira. Ao mesmo tempo, e isso torna a questão mais complexa, há, nessa afirmação, uma resposta à demanda de diversos setores do campo, incluindo as de trabalhadores e de familiares, por locais de internação, serviços com muros, ou seja, seguros, com equipes preparadas para garantir a proteção, a segurança e, em situações-limite, a vida de pessoas em momentos de graves crises.

Por muito tempo, e com alguma eficácia, barrou-se o desejo por muros a partir da denúncia do significado deles: encarceramento, violência, abandono, esquecimento e morte. Há, no entanto, e pelos mais diversos motivos, um desejo por muros que se renova. Crises ou surtos intensos, medos, preconceitos, ineficácia dos tratamentos, precarização dos serviços, relações familiares conturbadas, desinformação e esquecimento: muitas são as razões para essa renovação do desejo por muros. Algumas, inclusive, são legítimas, especialmente quando o muro é compreendido como necessidade de contorno e de cuidado intensivo – a invenção dos CAPS III, serviços nos quais os usuários podem ficar alguns dias, é um exemplo disso.

Independentemente dos motivos e da legitimidade, o desejo de internar está entre nós. Classificá-lo como manicomial e excluí-lo do campo das possibilidades funcionou nas últimas décadas: denunciar o horror, a violência, os maus-tratos e a mortes foi uma arma muito potente na luta contra os manicômios. A questão é que, talvez agora, não seja mais suficiente.

Insuficiência análoga a essa foi vista recentemente com a eleição de Bolsonaro. Conforme acompanhamos, as denúncias de fascismo, racismo e homofobia, como forma de enfrentamento de sua figura, não foram suficientes para impedir que 55 milhões de pessoas o escolhessem como presidente. É aí que a modernização produz seus efeitos: as demandas, os desejos e as insatisfações de grande parte da população não foram, de maneira eficaz, escutadas e trabalhadas pelo campo progressista, mas sim pela direita conservadora. Esta conseguiu oferecer nomes, sentidos e propostas que, com grande eficácia, ainda que por meios suspeitos, capturaram as insatisfações, dando-lhes um tratamento discursivo e inserindo-as em uma narrativa. Tal narrativa, por sua vez, passou a decidir quem seriam os culpados pelos males do mundo e a eleger seus salvadores. É esse mesmo efeito que a Nota Técnica referente às mudanças na Política Nacional de Saúde Mental parece querer conquistar. Não somos contra a reforma psiquiátrica, diz a nota em suas entrelinhas, muito menos apoiamos os manicômios; quem, afinal, nesses tempos modernos, apoiaria algo assim?

Outro exemplo dessa retórica pode ser visto na entrevista que o Ministro da Saúde, Luiz Mandetta, deu à Folha. Respondendo sobre a inclusão dos aparelhos de eletroconvulsoterapia na lista de equipamentos do Fundo Nacional de Saúde, ele afirma: “Lógico que aquela cena retratada nos filmes da pessoa tomando eletrochoque gritando amarrada não existe mais, graças a Deus. […] ciência se entende no campo da ciência […] não vamos censurar.” De fato, os aparelhos e as técnicas não são iguais às de antigamente, o ministro tem razão. Isso não significa, porém, que a modernização das técnicas sejam necessariamente boas, nem que se posicionar contra elas seja ruim – uma censura. O que se visa obter com tal retórica é a ideia de que as denúncias são ultrapassadas e sem propósito, seus autores não passariam de censores; contra o antigo, nos oferecem o supostamente “novo”, a moderna ciência.

A questão é que essa modernização do discurso vem acompanhada da modernização das técnicas de sujeição e de controle. Se vencemos, em parte, a batalha contra os manicômios, foi porque suas técnicas eram abertamente violentas: olhando atrás dos muros se encontrava o horror, e esse podia ser denunciado. Agora, no entanto, a batalha é outra. Quem não tem entranhado em si o horror representado pelos manicômios não é capaz de ler a nota e supor horror. Assim, a denúncia enquanto estratégia de enfrentamento, do mesmo modo que ocorreu nas eleições de 2018, não deve surtir o efeito esperado.

Se estamos vivendo um retrocesso e ocorrerá o retorno dos manicômios, voltaremos a presenciar, mais e mais, momentos de horror. Comprovada a previsão, denunciaremos esse horror e, mais uma vez – esperamos –, será difícil encontrar quem o apoie. No entanto, se o que estamos enfrentando é a modernização das técnicas de sujeição e de controle, o horror não estará mais escancarado, e será mais difícil torná-lo visível. Se assim for, corremos o risco de ficar procurando um tipo de horror e acabarmos engolidos, sem perceber, por sua versão 2.0.

O que virá ainda é insabido, mas não deixa de preocupar — pelo contrário. O que não podemos é nos contentar com a denúncia da volta de algo que talvez não volte, ou que volte tão transformado – modernizado – que não seja visível aos olhos daqueles 55 milhões. Mais uma vez a analogia com o novo governo parece válida. A ditadura militar, tal como existiu no Brasil a partir de 1964, provavelmente não voltará. Ainda assim, para grande parte da população periférica, ela nunca deixou de existir, só teve seus métodos aprimorados. O que já estamos vendo com o novo governo é um upgrade mais potente desses métodos, assim como sua generalização para parcelas maiores da população; e o enfrentamento dessa modernização com um denuncismo que olha para trás não tem sido efetivo. O poder de narrar uma suposta verdade está, cada vez mais, nas mãos dos modernizadores.

O texto da Nota Técnica é exemplar nesse ponto. Ainda que haja uma clara provocação e afronta aos direitos conquistados, ela é visível para poucos. Para as maiorias, o que se lê é a vanguarda técnico-científica. E uma vanguarda que respeita as lições que a história ensina: manicômios nunca mais. Nisso, o texto é claro: “É importante ressaltar que as mudanças nas Políticas descritas acima foram realizadas em obediência à Lei 10.206/2001, que redirecionou o modelo da assistência psiquiátrica no Brasil e estabeleceu direitos dos portadores de transtornos mentais.” Baseado na lei, diz a nota, é que se pretende “ofertar tratamento aos pacientes, de acordo com suas necessidades e complexidade de seu quadro clínico, sem desprezar nenhuma forma de tratamento.” Ou seja, sem desprezar as modernas técnicas de submissão e de controle:  microscópicas, quase invisíveis e, por isso mesmo, ainda mais poderosas.

O que se torna urgente, nesse cenário, é a necessidade de inventar novas estratégias para enfrentar esse horror 2.0.

André Nader é Psicanalista, Acompanhante Terapêutico, graduado e mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. Autor do livro O não ao manicômio: fronteiras, estratégias e perigos (no prelo).

[i] É possível encontrar a lista dessas Portarias e Resoluções na Nota Técnica Nº 11/2019 CGMAD/DAPES/SAS/MS.

[ii] E ele não faz nada além disso. As mudanças vem sendo feitas nos últimos anos através das portarias acima citadas. A Nota Técnica recém-lançada nada mais faz do que esclarecer o que já foi decidido.

Texto publicado no Ponte Jornalismo, em 17 de Fevereiro de 2019.

Imagem: cena do filme “Bicho de Sete Cabeças”. Dirigido por Laís Bodanzky. 2000