Há pessoas que matam formigas.
Não me refiro àquelas que incineram ou dedetizam formigueiros enormes que infestam suas cozinhas ou que comprometem os alicerces de suas residências. Refiro-me àquelas que ao avistarem uma formiga passando perto de seu pé a pisam, sem muito motivo a não ser o ato incontinenti da pisada.
Por que o fazem, já pensaram? Seria pelo mesmo traço de ansiedade que nos faz estourar bolhas de plástico compulsivamente em presença delas? Ou seria pelo prazer da crocância que o ato de fazer pressão no corpo da formiga contra chão proporciona?
Ambas seriam puras denegações de um propósito que, se pudesse ser imediatamente confirmado pela conscientização de quem costuma praticar a matança de formigas, precisaria muito energia psíquica para considerá-lo apenas prosaico.
Minha melhor hipótese recai sobre aquilo que alguns autores e autoras, como Butler, classificam de “vidas que podem ser matadas”. Os banidos, os sujeitos de vida nua, como nos ensina Agamben. Trata-se dos indesejáveis de uma sociedade, como por exemplo, aqueles que não trabalham, não produzem (na verdade, o que está em jogo aí é que não consomem tanto quanto se desejaria, para azeitar a máquina do mercado).
A formiga seria uma vida que pode ser matada, que não fará diferença. Então, quem se importa? Você mata uma e logo outra aparece, para seguir o jogo. Quem se importa por uma formiga? Quem vai preso se matar uma delas? Aliás, quem se interessa por uma formiga?
Porém, o caso da formiga como vida “matável” traz um paradoxo. A formiga simboliza em nossa cultura o trabalhador, o trabalho, a previdência, a força de vontade. A parábola da cigarra e da formiga é exemplar para a moral que organiza a sociedade pós-revolução industrial. Inclusive o campo científico da biologia reforça a metáfora que organiza a sociedade contemporânea no capitalismo tardio, pois o formigueiro é uma perfeita empresa com hierarquização e racionalização do processo de trabalho. Até a referência imperial, para quem gosta, encontramos nesta sociedade quase perfeita que se chama formigueiro.
Sendo assim, o discurso que organiza a sociedade capitalista deveria produzir um respeito inestimável pelo simbólico que representa a formiga. Trabalhadora, produtora, obediente à hierarquia social, higiênica, incansável, previdente (sempre pensando e se preparando para os percalços do futuro), não propensa a reivindicações, nem exigente de leis trabalhistas. Possuidora de todos os valores que o mercado de trabalho necessita para subsistir e a sociedade valorizar.
Por que pessoas matam formigas? Por que é uma vida matável, se representa tudo que o discurso social aparenta valorizar sob o conceito de meritocracia? Por que a formiga, afinal? Por que não uma barata, improdutiva e parasita?
Aí, nos damos conta de que o elogio sobre a pessoa que trabalha, se esforça, sustenta o sistema, é apenas um discurso vazio. Não organiza valores de um laço social verdadeiro. O valor está naqueles pouquíssimos (Eleitos? Escolhidos?) que usurpam e acumulam o que o trabalho de muitos produz. Estas são as vidas valorizadas pela moral contemporânea. O trabalhador é uma massa disforme e anônima de formigas. Mata-se um, vem outro. É uma vida matável. A outra, não. Sua vida é regida por todos os direitos e a maioria dos privilégios garantidos, inclusive, pela lei que não está escrita, mas todos conhecem: a do $.
A formiga é pobre. Esforçada, mas para sempre pobre.
Quem mata formigas o faz pelo mesmo motivo que assume – nem sempre de modo consciente embora às vezes ingênuo – e dá materialidade ao fato de que nem todas as vidas valem o mesmo. Algumas se pode matar.
No fim das contas, uma conclusão possível: quem mata formigas não tem muito apreço pela vida humana…
(… em tempo: quem mata formigas, quase sempre tem medo de matar baratas).
Roberto H Amorim de Medeiros: psicanalista, professor do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura, da UFRGS.