Todos sabemos que a função do psicanalista é prioritariamente a escuta. É com essa escuta, atenta e ao mesmo tempo desinteressada, errante, que esperamos interrogar as certezas do paciente e permitir que ele se desconstrua e, ao desconstruir-se, possa encontrar novos devires para o que é e o que acredita ser.
Mas há momentos em que não acreditamos ter o tempo necessário para a escuta, para aquilo que Freud desde o início nomeou análise, para a decomposição, para a fragmentação e a posterior reconstrução.
Momentos em que tudo que parece nos restar é o desabafo e o apelo. Quando o paciente se encaminha para a morte, quando pensa em se matar,quando deseja aniquilar o outro,dar um fim a tudo. Quando o medo fala mais alto e o sujeito se encontra dilacerado pelo ódio, pelo ressentimento, pela impotência.
Momentos em que, como analista, sinto a necessidade de falar, de agir. Momentos que querem me fazer desabafar e pensar que a escuta deve ceder lugar ao apelo.
Mas como desabafar, falar da nossa inquietação com o outro, da angústia que nos provoca, apelar a algo dentro dele que parece perdido, sem, contudo, desqualificar aquilo que ele sente e diz, sem desrespeitar seu medo, seu desespero, sem desrespeitar mesmo sua decisão, por mais equivocada ou mortífera que ela nos pareça?
No consultório muitas vezes, a saída para esse tipo de impasse está precisamente em recusar a posição de quem diz ao outro o que ele deve fazer, recusar-se a barrar o gozo do outro, a apaziguar seu sofrimento. Deixar que ele assuma o risco de entregar-se a esse gozo. E simplesmente lembrar-lhe o que está fazendo, lembrar-lhe o que ele de algum modo já sabe, pedir que pense nas consequências, dos seus atos. Nada mais do que isso, que já é bastante.
Sozinho com seus fantasmas, liberado para colocar em palavras a sua pulsão de morte, na maior das vezes, o sujeito pode assim renunciar ao ato. Vagando em meio a seus fantasmas, o sujeito acaba de um modo ou de outro tropeçando também em seus desejos, e esses desejos demandam realizar-se e lhe fazem suportar tanto a vida quanto a presença do outro.
Mas ali, na clínica, estamos protegidos por esse espaço transicional, entre realidade e fantasia, esse playground que se chama transferência. Não é assim na vida cotidiana, na rua, na cidade, no espaço público da vida em comum.
Não é assim agora.
Nesta eleição que se aproxima, o medo parece ter definitivamente vencido a esperança Votando em um ou outro candidato, votaremos por medo ou votaremos com medo.
Mas nem todos os medos são iguais, e há muitos destinos para a angústia que nos invade. Podemos nos matar, ou podemos procurar ajuda. Podemos partir para a destruição do outro, ou podemos seduzi-lo, podemos buscar outros que fiquem a nosso lado, podemos também nos aproximar daqueles que antes nos pareciam tão distantes.
Podemos ainda, todos, falar do nosso ódio lentamente, longamente, e assim deixar que ele se revele dor, desesperança, ressentimento, medo e, quem sabe, desejos e sonhos.
Mas como fazer isso quando não temos tempo? Como propor isso a quem não quer nos escutar? Que direito temos de conversar com aquele que não nos escolhe como interlocutor?
Talvez não tenhamos mesmo direito, talvez não tenhamos muito a fazer. Talvez só possamos deixar esse outro sozinho, talvez devamos pedir que ele fique sozinho, e que pense, e que se possível sonhe.
Deixar o sujeito à sós com suas fantasias, com a esperança de que, em algum momento, como fantasmas, elas também o assombrem.
Fantasias de crianças com armas em punho, de mães sendo torturadas, de prisões cheias, de gays sendo banidos dos espaços públicos, fantasias de eliminação daqueles com quem não concordamos, que nos feriram, que talvez até tenham destruído alguns dos nossos sonhos e esperanças.
Fantasias, talvez, no fundo, de não mais sonhar.
Talvez, então o desejo de sonhar o faça sentir para além do ódio, talvez assim ele possa pensar que é preciso estar vivo para que a decepção, o medo e o ressentimento desapareçam. Talvez assim ele possa ver que o outro pode estar a seu lado, que adversários podem ser vencidos sem que sejam destruídos, que a paz é possível.
Talvez ele possa pensar que a escuta, enfim, é possível, e também a palavra, antes que os atos nos calem (e também nos ceguem).
Talvez se as pessoas puderem acreditar que isso tudo seja possível, elas insistam um pouco mais e suportem um pouco mais antes de entregar-se ao ódio, à violência e ao desejo de punir ou aniquilar o outro.