Na carne . Manuela Lanius

Na carne . Manuela Lanius

Há alguma bicha aqui esta noite?

Ponha-os contra o muro!

Lá está um no holofote, ele não parece certo pra mim

Ponha-os contra o muro!

Aquele parece ser judeu!

E aquele é um preto!

Quem deixou toda essa escória entrar?

Tem um fumando maconha e

Outro com espinhas!

Se fosse do meu jeito, eu fuzilaria todos vocês!

Are there any queers in the theatre tonight

Get ‘em up against the wall

Now that one in the spotlight, he don’t look right to me

Get him up against the wall

That one looks Jewish

And that one’s a coon

Who let all this riff raff into the room

There’s one smoking a joint and

Another with spots

If I had my way I’d have all of you shot

(In the Flesh / Pink Floyd)

 

Como vestígios de um passado jogado ao abismo, palavras e símbolos que pareciam falar de outra época, retornam desde o desfiladeiro, mais vivas do que nunca. Eu não diria que são fantasmas que nos assombram, porque a força com que circulam mostra que jamais morreram. Fascismo, nazismo, fanatismo, ditadura, militarismo, censura, tortura reingressam em nosso vocabulário cotidiano.

Os mêmes se tornaram palavras de ordem que são repetidas como se fossem por autômatos. Imperativas, são postas em ato por quem as recebe e reproduz um discurso no qual a alteridade e o lugar subjetivo estão excluídos. O que sentem para estar neste estado automático? Conseguiriam ainda ter alguma reflexão sobre si quando perante a arte, com a literatura? Como as pessoas vão se tornando burocratas de um processo que acaba em uma pedreira?

A sociedade precisa se fortalecer e não estar dividida entre mocinhos e bandidos, como diz o même que circula hoje pelas redes sociais: “Ninguém tentou matar Lula. Ninguém tentou matar Dilma. Ninguém tentou matar Temer. Ninguém tentou matar FHC. Sabe pq? Bandido gosta de matar polícia e gente honesta e não seus pares.” Nesta forma de ver o estado atual que passamos, não há espaço para a dúvida de quem está do lado do mal e que deveria ser exterminado. É isto e todo tipo de motes rouquenhos que vociferam em microfones, pois não há mais pudor, não está mais reprimido o ódio ao diferente, como se a vacinação ao fascismo estivesse com seu prazo de validade vencido. A tragédia que se anuncia é que ao final todos morrem.

A complexidade dos problemas que passamos atualmente não pode ser solucionada com respostas simples que cabem na palma de uma mão, escrita com caneta Bic. Os problemas não desaparecerão com o extermínio dos malvados. Mas é preciso perguntar: por que pessoas tão próximas de nós, foram tragadas por este discurso? Dar uma escuta que os redireciona a um lugar de sujeitos de sua enunciação não seria nossa possibilidade de inserir uma reflexão, de abrir brechas para que ali advenha uma questão sobre si e o outro? Sobre a quebra das certezas?  Lembro aqui de um filme atual que me marcou muito, “O insulto”, um filme libanês lançado em fevereiro deste ano, dirigido por Ziad Doueiri, no qual o certo e o certo conseguem sair do espelhamento agressivo para a empatia e consideração, e a intolerância cede quando se examina a história e se percebe que são/somos todos marcados pelas distorções fundamentalistas de quem quer livrar o mundo do mal.

 

A entrevista com o delegado que insiste reiteradamente perante os olhos e ouvidos mais perplexos, perante a pergunta mais uma vez colocada pela jornalista, de que a suástica gravada na carne/in the flesh da jovem atacada por 3 homens, não é uma suástica, mas um símbolo budista da paz, amor e harmonia, mostra a recusa ao reconhecimento de um ato violento e principalmente, do que este significa. O cinismo, a hipocrisia perante a atrocidade dá flagrante a perversão. “O mal-estar na civilização hoje, se apresenta como um cinismo universal e difuso”, disse Peter Sloterdijk em seu livro “Crítica da razão cínica”, de 1983, que fala do cinismo como fenômeno social. E não é difícil constatar logo na primeira parada de ônibus. Na delegacia. Na sala da casa da tia. É um cinismo como discurso radical que veicula uma caricatura da moral que tem peso de injunção.

Ao que porta o canivete como arma, ofereço alguns versos da “poesia é uma arma carregada de futuro” de Gabriel Celaya:

 

Quando se olham de frente
os claros olhos vertiginosos da morte,
dizem-se as verdades:
as bárbaras, terríveis, amorosas crueldades.

Dizem-se os poemas
que dilatam os pulmões de quantos, asfixiados,
pedem ser, pedem ritmo,
pedem lei para o que sentem excessivo.

Poesia para o pobre, poesia necessária
como o pão de cada dia,
como o ar que exigimos treze vezes por minuto,
para ser e enquanto somos dizer um sim que glorifica.

 

Assim é a minha poesia: poesia-ferramenta
e ao mesmo tempo pulsação do unânime e cego.
Assim é, arma carregada de futuro expansivo
com que aponto ao peito.

 

 

Estou às voltas com esta pergunta posta por Deleuze e Guatarri, em “O Anti-Édipo” (1972): “Porque os homens suportam, desde séculos, a exploração, a humilhação, a escravidão, até o ponto de as quererem não só para os demais, mas para eles mesmos? Nunca Reich foi antes melhor pensador do que quando se nega a invocar um desconhecimento ou uma ilusão das massas para explicar o fascismo, e quando pede uma explicação a partir do desejo, em termos de desejo: não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo em determinado momento, em determinadas circunstâncias, e isso é que precisa explicação, essa perversão do desejo gregário”.

Another Brick in the wall. Pink Floyd. Reprodução internet.

 

 

A música de resistência e denúncia crítica de Roger Waters não deveria causar surpresa ao seu público contrário a manifestação do músico nos shows do clássico The Wall que tem feito em sua turnê mundial e que passa agora pelo Brasil. “O ponto de vista político censurado” está grifado às vistas de todos. Afinal, cantam em coro pela queda dos muros que “não precisamos de controle mental”/ We don’t need no thought control. Na saída, fazem boletim de ocorrência contra o artista.

Imagem do vídeoclipe Another Brick in The Wall. Pink Floyd. Reprodução: internet.

 

Vamos seguir. Tenho um compromisso que nada tem de idealismo. E este é com a democracia.

 

Manuela Lanius é psicanalista, membro da APPOA. Doutora  em Psicanálise pela UERJ.

 

 

Referência de imagem (por Psicanalistas pela Democracia)

Another Brick in the wall. Pink Floyd. Reprodução internet. . Disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=-_bOh9OIHbY . Acesso em 14 de outubro de 2018.

Imagem do vídeoclipe Another Brick in The Wall. Roger Waters. Legendado. Reprodução: internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=mP-ZAgsMAkE . Acesso em 14 de outubro de 2018.

Ordem. Imagem do vídeoclipe Another Brick in the Wall. Pink Floyd. Reprodução internet. Disponível em  https://www.quora.com/What-are-some-interesting-facts-about-the-band-Pink-Floyd .  Acesso em 14 de outubro de 2018.