A copa terminou mas deixou em seu rastro as violências políticas, as violências contras as mulheres, as violências de um esporte feito por homens, para os homens e pelos homens e o comportamento vexatório de governos, turistas e torcedores num país sede que teme suas próprias verdades e pune e extermina os opositores do governo. Não foi, de fato, uma festa. Todas essas violências foram escancaradas com a performance do corajoso grupo russo Pussy Riot no último dia do campeonato, com a reação das ativistas russas e de outros países num país que não pune e tolera a violência contra as mulheres.
Republicamos um artigo de Paulo Endo, publicado na Revista Polêmica em 2009, para prosseguir e contextualizar esse debate.
Jack, o estripador cometeu seus crimes em 1888. Em meio à revolução industrial e a agitação social da Londres vitoriana e o crescente movimento dos trabalhadores espoliados nos bairros proletários, juntavam-se os primeiros movimentos em prol das mulheres. Será nesse período que a mulher alcança uma de suas vitórias significativas: a idade mínima para o casamento sobe de 13 para 16 anos em 1885.
Whitechapel, um bairro pobre e mal afamado na periferia londrina, simbolizava toda a miséria social da Londres dos pobres e miseráveis. Foi ali, num bairro proletário, com trabalhadores semi-escravos e sem qualquer sinal de prosperidade que são encontradas 4, das cinco vítimas do assassino batizado de Jack, o estripador. Nome ‘artístico’ do assassino que atingirá notoriedade como espetáculo séculos adiante. Todas as vítimas eram prostitutas pobres, símbolos da ‘degradação moral e social’ da ‘próspera’ Londres.
As vítimas, que jamais foram justiçadas, foram oferenda para a criação de uma figura fantástica e fascinante: meio homem, meio monstro, que excitou a imaginação de milhões de homens e mulheres em todo o mundo. O personagem inspirou livros, romances, filmes, series de TV, roteiros turísticos[1]e comentários de todos os tipos.
Todos se lembram de Jack, que jamais foi identificado, mas ninguém se lembra do nome de qualquer uma das mulheres assassinadas, todas elas identificadas na ocasião em que foram cometidos os crimes. Jack, o estripador se torna um herói desconhecido, uma espécie de justiceiro moral, um vingador da ordem que coloca nos trilhos o mundo caótico da pobreza e da virilidade.
De modo espetacular um grave problema é recoberto, recalcado por obra do medo e da violência. O desejo de aviltar o corpo da mulher, sua espoliação como fetiche ao mesmo tempo em que se povoa a produção imaginária coletiva com as possíveis e infinitas cruelizações que o estripador teria, habilmente, cometido. Tratava-se certamente de alguém, com habilidades técnicas destacadas. À época cogitava-se se seria um médico, um dentista, açougueiro, etc. Um profissional e especialista de todo modo.
Interessante e constrangedor é que, até hoje, esse mistério se insinua como exemplo bem sucedido de horror, mistério e prática sexual desinibida. Tudo isso apoiado sobre a inexorável violência do homem versus a absoluta passividade da mulher. Assim certezas são ratificadas e se afirma a necessidade da redoma moral onde deveria ficar encoberto o corpo da mulher. Redoma que, uma vez suspensa, autoriza todos os desmandos que reivindicam para si um papel educativo, protagonizado pela violência masculina sobre ‘os desvios de comportamento’ da mulher.
A burka ou purdah, que significa literalmente cortina, que invisibiliza completamente não só o corpo da mulher, mas sua própria singularização e expressão no espaço público nos países e lugares controlados por fundamentalistas como Paquistão e Afeganistão contemporâneos, nesses países são registrados milhares de casos de ataques por ácido contra o rosto de mulheres que ousaram exibir seus cabelos, ir à escola ou decidiram se divorciar.[2]
A questão central explícita é que a mulher representa para o homem risco sexual iminente. Perigo sexual que perturba, amedronta e ameaça e como tal deve ser controlada. Cobre-se, coíbe-se e prende-se a mulher porque é ela e seu corpo que se tornam perigoso e é ela que deve ser escondida e desnuda segundo os imperativos masculinos e é ainda sobre ela que a face áspera da moral deve recair. Nesta equação o homem não seria senão a vítima inconsciente de uma artimanha, bruxaria e feitiço aspergido pela mulher. As mulheres plenamente visíveis, livres e autônomas castram o homem e o desvirilizam.
Nos fundamentalismos em geral a mulher e seu corpo assumem, explícita ou implicitamente, um aspecto demoníaco. Como demônios tornam-se fascinantes e assutadoras e, como demônios, não são protegidas pelas leis dos homens. O corpo indômito da mulher revela o irracional no homem. Bebida e mulheres tornam-se então uma espécie de recompensa, de descanso para a racionalidade masculina sempre atenta, vigilante e moderna.
Jack, o estripador matara seis prostitutas miseráveis no bairro mais miserável de Londres e, ao fazê-lo, transformara-se num ícone da masculinidade vitoriosa e violenta. Ao estripar suas vítimas e eviscerá-las ele praticou um tipo peculiar de exorcismo. Entende-se, portanto, porque uma das vítimas do assassino ter seu útero arrancado.
De outro lado um paradoxo se recompõe: o homem é originalmente puro e, como tal, deve ser protegido do demoníaco da mulher, frequentemente violentado-a antes que ela o faça. A violência masculina é continuamente restaurada então como purificadora do mal na mulher.
Aqui uma rápida digressão psicanalítica:
Num importante trabalho da psicanalista Monique Schneider, ela chamou a atenção para o lugar do afeto nos primeiros trabalhos pré-psicanalíticos de Freud até os Estudos sobre a histeria, publicados em 1895. Freud trabalhava arduamente, nesse período, com a sintomatologia observada nos quadros histéricos pela via do método catártico e da hipnose.
Tratava-se nesse momento, para Freud, de extrair o afeto perturbador, escoá-lo, pois a gênese do sintoma neurótico e histérico era o efeito de um afeto aprisionado e sem nome. Seria pela via da justa representação que se realizaria, pelo método catártico, a sangria psíquica necessária ao bom andamento do tratamento. Foi, certamente, a crise desse modelo, a crise do modelo da hipnose e da ab-reação que possibilitou que a psicanálise adviesse.
Digo isso apenas para destacar que antes da Psicanálise, antes de Freud, a histeria (doença uterina) ainda era uma doença de mulheres: suscetíveis, ardilosas e exageradamente sensíveis eram as mulheres histéricas ou, em outras palavras, demoníacas. Sedução, dissimulação, traição eram (e ainda são) características atribuídas à histeria antes de Freud. Melancolia e histeria, causadas pela bile negra, eram vizinhas do mal, das trevas e da escuridão.[3]
Na penumbra de sua própria perturbação esse conjunto que compõe o efeito Jack, o estripador, inclui os assassinatos em série, o perfil das mulheres assassinadas, a impunidade do crime e a notoriedade e espetacularização de um assassino cuja identidade permaneceu oculta, e que por obra da ocultação e da expiação fantasmática, foi celebrizado e eternizado apenas pelo valor libidinal investido em seus atos. Ele representa o paradigma que declara infame e ofensiva toda e qualquer insubordinação feminina.
Ao assassino coube fazer dos corpos das mulheres um troféu que realiza o chauvinismo mais degradante: só a violência pode vencer os corpos que não foram domesticados, corpos demonizados.
Entre em cena a fórmula universal que deixa evidente que sob a perspectiva da manutenção do poder masculino, o corpo demoníaco e insubmisso deve ser controlado a fim de proteger a frágil e preciosa virilidade masculina. Notem que, nesse caso, são os homens que reivindicam para si a legitimidade do uso da violência, para salvaguardarem uma suposta e primária fragilidade masculina. Talvez por isso a violência de gênero busque sua legitimação pela via do cinismo.
Se quisermos agora generalizar um pouco, no que tange ao corpo dos pobres, do miserável, do encarcerado (cabeça para baixo e mão para trás), do hospitalizado, asilado e da mulher, o corpo parece viver numa zona de indistinção e degradação, de onde só sairá pagando o preço do submetimento, da exposição heterônoma e da cruelização. Submetimento à, heteronomia à e cruelização por uma posição de comando viril muito específica que ordena valores e rejeita quaisquer diferenças.
Não é à toa que diversas e importantes análises sobre a matança dos jovens entre 17 e 24 anos no Brasil repousam, em grande parte, sobre a luta íntima pelo poder viril. Quais machos prevalecerão: o jovens bem armados no alto dos morros, os policiais corruptos e torturadores, os pit boys da zona sul carioca, os skinheads, as ‘valentes’ torcidas organizadas de futebol ou os grupos de extermínio. Todos componentes de gangues que não toleram as diferenças e que soçobram na endogenia de suas próprias práticas, acima de qualquer razão e compromisso público. Todas expressões de uma virilidade autofágica, regida pela pulsão destrutiva que as ordena em torno da menor e última célula grupal que põe fim ao convívio e onde predomina o choque entre corpos violentos e corpos violentados.
São hordas tirânicas, que privatizam tudo que tocam e o fazem rasgando, golpeando, perfurando, esquartejando, estripando. Possuindo pela via da destruição e afirmando a máxima: “Se destruo é porque é meu”.
Gostaria então de voltar ao nosso argumento pela via de um exemplo:
Em 2006, o Instituto de acesso à justiça (IAJ) de Porto Alegre realizou uma experiência fundamental e pioneira. A implementação de um observatório de direitos humanos na única penitenciária feminina do Rio Grande do Sul, a penitenciária Madre Pelletier. Em 2007 foi publicado o relatório das atividades do Observatório repleto de informações importantes.
Um dos aspectos destacados do relatório é o impasse e o sofrimento gerado nas mulheres presas pela ausência do convívio, presença ou visita dos filhos. Os motivos reais ou imaginários, concretos ou fantasmáticos, exigiriam uma pesquisa e reflexão em separado que necessitaria, entre outras coisas, a disposição à escuta dessas mulheres. Entretanto, tanto social quanto pessoal e subjetivamente, esse sofrimento e reivindicação das mulheres privadas de liberdade nos deslocam para um problema de gênero e diferenciação numa situação onde todas as diferenças tendem a ser abolidas ou não reconhecidas: o sistema prisional brasileiro.
De maneira geral as mulheres presas exigem proximidade e convívio com seus filhos durante o cumprimento da pena. Preocupam-se com as situações e os cuidados básicos que envolvem um cuidador fora da penitenciária, ou um abrigo para os filhos e querem acompanhar a vida dos filhos enquanto estão privadas de liberdade. A recusa ou a impossibilidade disso pode resultar em atitudes de revolta e protesto, comumente interpretados, no contexto prisional, como atos de indisciplina.
A realidade social prévia à prisão indica algumas diferenças fundamentais, entre homens e mulheres encarceradas, que não são abolidas durante o cumprimento da pena: 1) o alto índice de monoparentalidade das mães, que as coloca como única mantenedora da casa, da família e dos filhos.
2) o alto índice de envolvimento com o tráfico diretamente ligado à participação do companheiro no tráfico e à necessidade de procurar meios de subsistência familiar.
3) A freqüente ausência de assistência do pai na manutenção e cuidado com os filhos.
Essas situações sociais concretas perduram e se agravam durante a prisão. A monoparentalidade na situação limitante da encarcerada pode constituir uma situação desesperadora de degradação pessoal seja como presa, como mãe ou como mulher; a participação no tráfico, que de algum modo a unia ao companheiro fora da prisão, não perdura na situação prisional e a assistência paterna na maioria dos casos inexiste. Ao contrário da situação dos penitenciados masculinos onde as mulheres são presenças e visitas constantes aos presos.
Tal situação é agravada com a visão comum dos funcionários de que “só agora as presas se importam com os filhos”. Discurso que opera numa lógica de punição redobrada e ilegal que pretende privar as mulheres do direitos de exercer sua maternidade seja em que condições forem.
Razão pela qual as mulheres revoltadas são categorizadas como mentirosas, ardilosas e histéricas- novamente a demonização o que provavelmente têm impacto no “alto índice do uso de medicação psiquiátrica verificado.”(Wolff, 2007, p.169)
Aquilo que habitualmente denominamos de servilidade ou submetimento dos corpos passa a evidenciar aqui o seu sentido mais sutil e menos ostensivo, porém de consequências gravíssimas. Na prisão, soma-se à privação da liberdade, ao distanciamento e fratura dos laços sociais, aos efeitos deletérios implícitos no próprio convívio em situação prisional e à representação de prisioneira e criminosa que recairá sobre os ombros da presa, também e sobretudo, a impossibilidade de manter-se diferida, identificada e assegurada como mulher.
Como se um imperativo fosse repetido na prisão: aqui dentro você é homem!
Essa seria então a suprema erradicação da mulher, do feminino: que ele deixe de existir, não porque as mulheres seriam fisicamente erradicadas, mas porque as mulheres se tornariam homens.
A violência do assassino apelidado de Jack é cruel-por isso atrai tanta a atenção e excitação. Se tivesse assassinado aquelas mulheres atirando à queima roupa, possivelmente não teria adquirido tanta celebridade. É a certeza de que as mulheres sofreram – quase ritualmente – de que foram estripadas, é o que excita.
É também uma violência sexual- como vimos, acompanhada da prática de evisceração das vítimas – porque enraizada na moral masculina e vitoriana que indica com exatidão aqueles sobre os quais a violência pode incidir sem que qualquer punição recaia sobre os que que cometeram o crime -as prostitutas pobres. Uma lição aos pobres, mas, sobretudo, às mulheres pobres. Sexualmente livres e transitando sexualmente no espaço público sem permissão, transitando fora do confinamento dos bordéis, onde os homens podem se refestelar sexualmente sem se sentirem ofendidos. A violência aqui aparece também nas batalhas que se travam para controlar e domesticar a presença da mulher na polis e que reaparece na violência do estupro, por exemplo.
Tantas vezes a violência do homem no lar é absolvida como loucura momentânea e, então, perdoada sem jamais ser esquecida.
-‘Não sei onde eu estava com a cabeça’ frase que o agressor repete indicando a inconsciência do ato, que por seu estatuto inconsciente deveria ser perdoado e suportado.
Assim a inconsciência serve como álibi para que “perder a cabeça” se torne uma passagem franqueada para a loucura da violência e a desresponsabilização do que se faz. A “loucura” do homem engendraria seu perdão.
Deste modo a violência que ele comete poderia ser praticada e perdoada desde que assumido seu caráter não intencional, insano e inconsciente. Ou seja, só pode ser qualificado de violento aquilo que se inscreve no jogo das ações e reações conscientes. Mas quem define o que é consciente ou inconsciente? O que foi intencional ou sem querer? E porque a inconsciência em relação ao próprio ato, ao próprio querer apaga o dano sofrido àquela que foi atingida pelos impulsos masculinos, descontrolados e violentos?
Talvez aqui estejamos nos umbrais da razão secreta que autoriza os desmandos de gênero e que o paradigmático Jack homicida exemplifica tão bem. A mulher deve permanecer no lócus privado, íntimo, pulsional e secreto como refúgio e receptáculo das loucuras masculinas. Deve suportá-las de modo a endereçar seu sacrifício ao ‘bem’ da vida pública e política à qual o homem retornará e onde, necessariamente, seus impulsos, irracionalidades e violências terão de ser controlados.
Mulheres, filhos e empregados devem suportar as mazelas masculinas em nome da vida citadina vital para a família, mas onde o homem é o principal e único protagonista. A mulher é a primeira-dama: lugar implícito do sacrifício da exposição e do protagonismo político pífio, somado à suposta existência de segundas, terceiras e quartas damas.
Previamente a mulher, o corpo feminino tornam-se alvos prováveis e possíveis das violências porque elas enlouquecem os homens e os fazem perder a cabeça. Como esclarece Peter Demant (2004) sobre o mundo muçulmano: A mulher é coberta, controlada para a manutenção da boa razão masculina.
É aí nesse registro do perdão e da inconsciência que o homem se vê no direito de exercer uma espécie de direito pessoal e social à violência, tendo como palco o corpo da mulher.
Trata-se também, é evidente, de acordos de foro íntimo, mas é evidente que um homem que se autoriza a isso com o corpo de outrem, também não reconhece uma corporeidade própria, fantasmática. Tendo a excitação assegurada por intermédio das concussões mecânicas, seu corpo torna-se uma carcaça animal que ele empurra sobre o corpo dos outros. E aqui uma semelhança notável com o torturador. Mas aqui já estamos no território de outras violências contra a mulher e dos avatares da aceitação e rejeição feminina na absolutização de seu corpo.
Gostaria então, a partir desse contexto geral de determinação da mulher como um corpo desejável, desde que pela ótica masculina; como um corpo belo desde que superexposto às fantasias do homem; como um corpo acolhedor, desde que obediente e dócil.
Dois exemplos podem nos dar a exata medida das atrocidades cometidas à mulher, à menina. Precisaremos sempre lembrar disso e nos opormos com força e contundência à franca determinação do violentador, que se escora num discurso prévio de determinação da força e da hegemonia masculina e do submetimento da mulher, da menina pela via do domínio físico.
Em novembro de 2007, uma menina de 15 anos foi presa e encarcerada no município de Abaetetuba, no Pará por tentativa de furto de um celular. Nada incomum numa realidade em que a ameaça aos bens privados supera em muito à preocupação com o bem-estar comum e o direito aos presos, sucessivamente violados em diversas carceragens do país.
Mas esse episódio foi marcado pela exposição pública de uma prática radical e repetida: o desrespeito e o aviltamento do corpo da mulher, o desrespeito às idiossincrasias da mulher e às diferenças que lhe são próprias e fundamentais.
Não se trata mais, infelizmente, de um discurso masculino e chauvinista, mas de um discurso e uma prática sustentada pela negação das próprias mulheres de suas diferenças e suas necessidades pessoais e próprias.
A adolescente L. foi encarcerada pela delegada Flávia Pereira numa cela com trinta homens adultos, por eles foi estuprada, queimada com cigarro e espancada. Ali permaneceu dois dias. Em seguida foi conduzida à presença da juíza, Clarice de Andrade. Na ocasião L. alegou que era menor (não uma mulher) A juíza, então, determinou que L. fosse devolvida à mesma cela. A situação revoltou alguns dos presos, que disseram aos carcereiros que, além de ser uma menina, ela não podia ficar na cela com homens. Os policiais, então, cortaram o cabelo longo, liso e negro de L. à faca e rente à cabeça de modo a assemelhá-la a um rapaz.
Impressionantemente a delegada a juíza e a Governadora do Estado do Pará foram incapazes de proteger L. do chauvinismo degradante, da indiferenciação sexual e da superexposição atroz. De que maneira negligenciaram que o que estava em causa ali era o risco a que L. estava submetida, não por ser menor, não por ser pobre, mas por ser mulher. Qual o recalque que silenciou todas essas mulheres em evidente posição de poder para evitar o pior e proteger o óbvio a sua posição feminina, sua condição feminina e um discurso feminino, único capaz de denunciar a violência masculina contra a mulher.
Depois disso, soubemos que o caso de L. não era isolado, mas comum em outros municípios do Pará, onde mulheres são encarceradas em celas predominantemente masculinas. Em apoio a essa pratica sobrevieram a ação intimidatória dos policiais para que a menina sumisse do município sob a ameaça de morte. Os pais de L. foram coagidos a mentir a idade das filha também sob a ameaça de morte dos policiais. A tentativa atroz de salvar a própria pele a golpes de martelo.[4]
O segundo exemplo teve seu desfecho no mês de março de 2008. Um menina de 9 anos engravida de gêmeos. Descobre-se que a gravidez é conseqüência dos abusos cometidos pelo padrasto desde que a criança tinha seis anos de idade. Para minorar os danos sofridos, a criança segue a legislação brasileira que autoriza o aborto em caso de estupro. E tudo poderia ficar assim, com os estragos já feitos e com encaminhamentos discretos e competentes para cuidar da menina.
Mas isso atiça a imaginação masculina e o Bispo de Recife e Olinda, d. José Cardoso Sobrinho, egrégio representante da igreja católica, instituição patriarcal desde sua gênese, condena publicamente o aborto realizado e acusa os médicos, e os que os apoiam, de praticarem o assassinato, atentarem contra a vida e demais ladainhas conhecidas.
O escândalo está feito. A polêmica assume o pleito e é o corpo da menina novamente que se constitui como o palco onde se encenam disputas viris e meio para se exercer o poder institucional, não raro às custas da dor alheia.
Como se não bastasse, ao emitir a opinião da igreja, o bispo desrespeita o estado laico, bradando que a lei de Deus está acima da lei dos homens e excomunga, em nome da mesma igreja, os médicos que auxiliaram no aborto seguro da criança.[5]
São dois exemplos que indicam a complexidade e o perigo a que está exposto o corpo da menina e da mulher em nossa sociedade. Não faltam argumentos para que a mulher se convença de seu assujeitamento moral e ético em nome de uma ética masculina-tal como a delegada e a juíza que atuaram exemplarmente no caso da adolescente do Pará – àquelas que não forem convencidas resta o recurso fácil de submeter seu corpo, que é o maior ícone do poder e da hegemonia dos valores, discursos e práticas masculinos.
Curiosamente o advogado da arquidiocese de Olinda e Recife, era uma advogada, Rilene Dueire, que sugeriu que a menina grávida e sua irmã de 14 anos cuidassem dos filhos por nascer.
Enfim, como observei antes, o triunfo do chauvinismo não é a erradicação física da mulher da face da terra, mas a metamorfose voluntária ou não – enfim consumada – das mulheres, em homens.
Referências Bibliográficas
Demant, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Editora Contexto, 2004.
Schneider, Monique. Afeto e Linguagem nos primeiros escritos de Freud. São Paulo: Editora Escuta, 1993.
Wolff, Maria Palma(coord). Mulheres e prisão: a experiência do observatório de direitos humanos da penitenciária feminina Madre Pelletier.Porto Alegre: Editora Dom Quixote, 2007.
Walkowitz, Judith. Jack the ripper and the myth of male violence. Feminist Studies, v.18, n.3, 1982, p.543-574.
[1]Parte das atrações londrinas inclui, ainda hoje, diversas agências que realizam passeios temáticos sobre Jack, o estripador pelas ruas de Londres. Ver, como exemplo, www.jack-the-ripper-walk.co.uk.
[2]Remeto o leitor à reportagem recente do New York Times disponível no site www.nytimes.com/2009/01/14/world/asia/14kandahar.html
[3]Ver Trillat, E. São Paulo: Escuta, 1991, p.43-58 e Starobinski,J. A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016
[4]Remeto o leitor às seguintes reportagens:
Capriglione, L. Moradores sabiam que menina estava em cela de homens no Pará. 25/11/2007. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u348436.shtmlData de acesso: 01/10/2011
Freire,S.Polícia do Pará tinha cela para isolar menina. 27/11/2007. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u348969.shtmlData de acesso
Pai da menina presa em cela masculina no PA diz que foi ameaçado por policiais para dizer que ela não era menor. Disponível em:http://oglobo.globo.com/pais/mat/2007/11/22/327262281.aspData de acesso: 01/10/2011.
[5]Magenta, M.Menina de 9 anos estuprada interrompe gravidez de gêmeos em Recife (PE). Disponível em:http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u529301.shtmlData de acesso: 01/10/2011.
Igreja critica aborto feito por menina de 9 anos violentada em PE. 04/03/2009.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u530525.shtmlData de acesso: 01/10/2011.
Menina de 9 anos estuprada por padrasto é submetida a aborto em Recife. 04/03/2009. Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/cidades/mat/2009/03/04/menina-de-9-anos-estuprada-por-padrasto-submetida-aborto-em-recife-754680349.aspData de acesso: 01/10/2011