es lässt sich nicht lesen – assim começa o narrador do conto O Homem da Multidão escrito por Edgar Allan Poe em 1840, destacando de um livro alemão que há o quê não se deixa ler. Poe se tornou um escritor e poeta célebre no século XIX sobretudo por seus escritos policiais que convocam o leitor à investigação. Esse estilo aponta para o ímpeto de uma literatura realista, clássica, mas o que resta dos escritos de Poe é o efeito, um arrepio de morte, uma dúvida misteriosa, uma sensação de estranhamento pela transposição de certos limiares.
O conto se inicia com o narrador sentado em um café de Londres de onde observa animado a retórica das ruas. Os trajes, os aspectos, as expressões, as formas de caminhar fazem o narrador dividir a multidão em grupos pela uniformidade de vestimentas e de comportamentos. Para o filósofo Walter Benjamin (1989) as partículas da multidão descritas por Poe chegam a imitar a produção em série capitalista. Desta forma, o narrador identifica na multidão o movimento do mundo presentificado nos grupos que circulam pela cidade, “podia eu ler frequentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos” (Poe, 2008, p. 262). No entanto, o observador distingue um anônimo, chamando-o de homem da multidão, que rouba completamente a atenção por surpreender, diferenciando-se do esperado “dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira qualquer coisa que se lhe assemelhasse, nem de longe” (Poe, 2008, p. 263). O narrador, espantado, passa a conjecturar a história desse homem que, em verdade, parece fazer uma fratura à história.
A partir do conto escrito por Poe, Benjamin (1989), atravessado pelas consequências do avanço do capitalismo e da destruição em massa que se anunciava na Segunda Guerra Mundial, lê a multidão não apenas como um reflexo da história, mas também como um novo tipo de entorpecente, “onde ninguém é para o outro nem totalmente nítido nem totalmente opaco” (p.46), aproximando-a à mercadoria. Neste sentido, a multidão teria o efeito de entorpecer, ou seja, alienar, como se as singularidades pudessem ser diluídas na massa. O efeito de enigma que o homem da multidão produz no narrador faz, então, ruptura. Esse homem, mesmo imerso e aparentemente dependente da multidão, ao olhar do observador não se encaixou nos diversos estratos sociais, fazendo com que o narrador se perguntasse sobre a sua história. Que história possui um anônimo? “Que extraordinária história – disse a mim mesmo – não estará escrita naquele peito!” (Poe, 2008, p.263).
Parto desse pequeno conto, escrito há quase dois séculos, em que o narrador se esforça em ler a multidão para me auxiliar a desdobrar algumas questões colocadas por Matheusa, Theusinha, em sua interrompida obra, sobretudo sua investigação da poética do Corpo Estranho. Matheusa ou Matheus Passareli era negra, do interior do estado do Rio de Janeiro, não binária quanto a identidade de gênero, militante anticapitalista e da causa LGBTIQ+ e cursava graduação em artes visuais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Em uma cena de horror não rara, ela foi executada no início de maio (2018) pelo tribunal do tráfico carioca na zona norte da cidade, segundo declaração da Polícia Militar. De acordo com o jornal O Globo, em matéria virtual de 7/52018, “o corpo teria sido queimado. O motivo do crime ainda é investigado”.
meus corpos se negam ser
o que parecem ser.
exposição de corpos.
Em sua pesquisa, Matheusa perguntava-se sobre seu corpo, sobre os outros corpos que habitam a cidade, sobre os encontros entre corpos e, ainda, sobre a cidade como corpo. Ela fez parte do coletivo Seus Putos que desenvolve ações estético-políticas[3]na cidade desde 2015, além de críticas às opressões e aos padrões de normatividade. Segundo o próprio coletivo, “Seus Putos é um grande corpo fragmentado espalhado por entre as margens. Ele nasceu de um abraço”, sendo rede e casa de afetos, proteção e resistência. “Resistimos juntas para poder existir”[4]em um contexto de desigualdades imensas, segregações que alcançam a execução de muitos, individualismos e identidades rigidamente fixadas.
Além disso, Matheusa trabalhou como mediadora em várias exposições de diferentes instituições culturais do Rio de Janeiro. Apesar do pouquíssimo tempo de vida, ela foi morta logo após completar 21 anos de idade, Matheusa deixou muito, entre fotos, vídeos, performances e textos. Em sua obra, ela testemunhou sensações sentidas no corpo a partir dos olhares, dos comentários ao circular pelo Rio de Janeiro, metrópole que parecia até o início de sua graduação impossível, distante da realidade em que ela nasceu. São também muito frequentes registros da segregação que Matheusa identificava nas práticas universitárias, nos centros culturais, nas ruas, como nos dois exemplos abaixo.
ir para a aula de gravura me proporcionou
encontro com diferentes corpos
toda segunda feira
(que consegui chegar na aula)
me encontrei com os oito corpos produzidos por
mim e que estão expostos no olha geral.
produzi este trabalho partindo do conceito de
negativo.
fui orientado a pensar negação.
nem todos os alunos estão conseguindo acessar
a universidade, não temos bandejão, não temos
bolsas em dia.
tenho me perguntado se as pessoas realmente
olham geral ou se olham só um pouquinho.
será que todas pessoas conseguem olhar os trabalhos expostos no coarte?
Marie-Hélène Brousse (2002) em um seminário promovido pela seção São Paulo da Escola Brasileira de Psicanálise, sugere a segregação como um modo atual de ‘tratamento’ dado ao gozo. Neste sentido, segregar um grupo de sujeitos específicos, o exemplo utilizado por ela são os campos de concentração, localiza um resto, uma espécie de fora que daria, então, contorno ao restante, para continuar utilizando-me dos termos de Brousse, contorno ao sistema do mercado que, em sua articulação com a ciência, faz uso do saber de forma a ordenar o gozo apagando o que não se reproduz, o que não se torna mercadoria, as singularidades, a diferença.
Assim, para Brousse (2002), no discurso do mestre moderno, tomando o mercado como S1, o S2 seria o saber dos procedimentos, dos contratos jurídicos, resgatando o trabalho de Jacques-Allain Miller e Jean-Claude Milner de 2003, Voulez-vous être évalué?,que considera que as trocas sociais na contemporaneidade se dão como os contratos, pela substituição por equivalência, sem resto. A localização de um resto pela segregação daria consistência a esse discurso, situando fora alguns, como registrou Matheusa, aqueles que não podem acessar as universidades, o bandejão, as bolsas, ou os que não tem acesso aos trabalhos do Coart[7].
É um saber que ordena juridicamente o gozo, e que ao fazer isso faz desaparecer a singularidade. Em todos os Mcdonald’sdo mundo tanto o hambúrguer como o sorriso daquele que o vende são os mesmos. Ou pelo menos fazem de tudo para serem o mesmo. O campo de concentração no discurso do mestre ocupará o lugar do pequeno a, o lugar do gozo. Isto é, o modo predominante de gozo atualmente é o da segregação, portanto, a segregação é a nova solução dada ao gozo (BROUSSE, 2002, p.45, grifos da autora).
No entanto, o Trabalho de Sobrevivência– título de um texto de Matheusa que originalmente precedeu os relatos da disciplina de gravura já citados – que ela precisava fazer já na cidade do Rio de Janeiro, ou seja, após passar da periferia à metrópole com a possibilidade de ocupar uma cadeira em uma universidade pública, nos adverte que a inclusão não é suficiente ou que a esse tipo de segregação tratado por Brousse (2002) hoje somam-se outros.
Por um lado, a inclusão é realmente feita de forma insuficiente, “apôs todo esforço de adentrar a universidade preciso me esforçar para me manter dentro dela. Me prometeram auxílio, apoio, suporte”; por outro lado, é preciso considerar o quê Matheusa encontrainstituído na cidade, ou no “corpo estranho dessa cidade”, segundo ela.“Desde que cheguei aqui nada é maravilhoso!!!!! não quero ajudar a construir essa imagem de cidade espetáculo. mentirasas”[8].
De fato, há uma discussão importante sobre a condição atual de se construir ou se inventar a representação de mundo na medida em que o capitalismo avança, já que, no mundo dos contratos, tudo pré-programado, definido, substituível, tudo é preenchido. Para o filósofo Jean-Paul Dollé (2010), esforça-se em abolir intervalos, vazios, e como efeito nas cidades, onde a consistência de mundo é encarnada, o urbanismo trata de criar zonas definidas para lazer, trabalho, compras, sem ligações entre setores diferentes. Ou seja, a consistência do mundo parece ameaçada pelo excesso e Dollé (2010) não entende que a nossa crise seja apenas na economia, advertindo que o dispositivo capitalista coloca em questão o modo como os humanos habitam o mundo e sua existência.
Na universidade, Matheusa passou, então, a desenvolver um outro tipo de cidadania, distinto do movimento de saída de um lugar de segregação identificado. Em muitos fragmentos deixados por ela, pode-se ler a vivência de um corpo estranhona cidade, um corpo que causa estranhamento, um corpo inclassificável, que não se lê, irredutível a qualquer tipo de categoria, mesmo aquelas listadas por mim ao apresentar a artista. Ela parecia fazer um resgate de sua herança, ancestralidadecomo ela dizia, transformando-a em outra coisa.
Taxonomia alguma explica as vivências do meu corpo. Corpo livro. Conteúdo infinito. A partir do momento em que me identifico enquanto pessoa negra, processo de autonomia e consciência de si, consequência da floração dos meus cachos, em resposta à interrupção de um processo de poda compulsória que vivia em meu corpo/território, matéria/trajetória que jogada ao lixo se perde no tempo. O meu tempo agora é outro. O meu corpo também[9].
Assim, pode-se ler na obra deixada por ela a construção de um fazer com esse corpo estranho, ‘ser um corpo estranho é ser cidadão’[10], que parece significar rasuras ao texto da cidade. Nos relatos/ cena, por exemplo, Matheusa guarda descrições de encontros entre seu corpo e outros corpos nas ruas, destacando o efeito que ela causava e de como sentia no corpo esses encontros.
relato/cena 1
saindo da uerj.
passando pela praça maracanã:
homem fala em minha direção “que porra é essa”
estou vestindo um camisão verde folhado, nas cores verde azul amarelo e preto.
Matheusa parece desrealizara realidade, escancarando o não sentido do texto instituído a partir daquilo que tem de mais singular, nomeado por ela de corpo estranho. Como o homem da multidão, Matheusa faz uma ruptura à história, causa espanto ao circular pelas ruas, contando a história a contrapelo, “através do meu corpo me comprometo a ir contra uma história de poucos leitores”[12]. Não à toa e muito infelizmente Matheusa é executada pela própria cidade, pelo nosso contexto histórico que parece matar cada vez mais os corpos não controláveis, a vida. Sobre isso, Mbembe (2016) trabalha uma atualização do conceito biopolítica de Foucault, defendendo que passamos do controle da vida à execução do que resta incontrolável de vida.
Em 1908 Sigmund Freud se deu conta de que os artistas precedem a psicanálise, antecipando a descoberta do inconsciente, como é o caso de Poe. Talvez também Matheusa, ao soltar a língua das rédeas da linguagem, “negando imposições atribuídas ao meu corpo, aprendi de novo o significado e a possibilidade de ressignificação das palavras”[13],desde essa posição ímpar, sem valor de troca, escreve o que não se deixa ler, desvelando haver um real em jogo no tecido social para além das empresas de si mesmo.
Referências Pesquisadas
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo.Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989.
DOLLÉ, J.P. L’inhabitable capital. Crise mondiale et expropriation.Paris: Nouvelles Éditions Lignes, 2010.
FREUD, S. Escritores Criativos e Devaneios.
MBEMBE, A. Necropolítica.Arte & Ensaios. Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (Escola de Belas Artes / UFRJ). n. 32, dez 2016.
MILLER, J.A.; MILNER, J.C. Voulez-vous être évalué?Paris: Bernard Grasset, 81 p. 2003.
POE, E. A. Histórias Extraordinárias.São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1840].
https://coletivoseusputos.wordpress.com/
[1]Parte da 21°sentença do coletivo Seus Putos em homenagem a Matheusa, ‘Viva Theusinha!’.
[2]Matheusa. Trecho do zine: O Rio de Janeiro continua lindo e opressor. relatos da disciplina de gravura – uerj.
[3]As ações estético-políticas são proposição desenvolvida pelo coletivo 28 de Maio, sendo definidas como uma prática anticapitalista, uma tomada de posição política contra o mercado das artes. É uma ação que pode ser realizada por todos e qualquer um, “é arte sem artista”, fazendo uma despossessão que age contra a serialização dos objetos artísticos e dos artistas. Além de não importar a autoria, para uma ação estético-política não importa definir se é arte, protesto, crime ou abismo, pouco importa o universal. O coletivo 28 de Maio é formado por dois professores universitários do Rio de Janeiro e foi fundado em 2014 a partir da necessidade de criar modos de fazer teoria que fizessem ruptura tanto com as hierarquizações da academia, quanto com as produções artísticas que respondem ao mercado. No Brasil, sobretudo após as manifestações de 2013, a noção de coletivo ganhou força e espaço nas ruas, com a formação de novos coletivos, da mídia, do direito, das artes, de bairros ou coletivos com temáticas específicas, por exemplo, hortas comunitárias, troca de roupas e objetos, alimentos sem agrotóxicos, cosméticos naturais etc. Para mais: COLETIVO 28 DE MAIO. “O que é uma ação estético-política? (um contramanifesto). Revista Vazantes, no.1. Dossiê: Matéria, Materialização (Novos Materialismos). PPGArtes. (UFC), 2015.
[4]Citações retiradas da página virtual do coletivo Seus Putos.
[7]Projeto de extensão universitária da Universidade Estadual do Rio de Janeiro que promove diversas atividades a partir de variadas linguagens artísticas.
[8]Matheusa. Trechos do zine: O Rio de Janeiro continua lindo e opressor. relatos da disciplina de gravura – uerj.
[9]Matheusa. Cartografia Social do Crescimento e Desenvolvimento.
[11]Matheusa. Trecho dos ‘relato/ cena 1 à 6’.
[12]Matheusa. Cartografia Social do Crescimento e Desenvolvimento.
Texto originalmente publicado no site Subversos