Escrevo em meio a um momento conturbado: para mim, que elaboro o projeto de qualificação do mestrado em psicanálise; para o país, que vive uma série de retrocessos políticos. Esses dois aspectos acabam, então, se articulando na minha escrita por estarem, a meu ver, indissociados. Meu projeto, sobre os caminhos de uma clínica psicanalítica em redes e espaços públicos, depara-se com a atual proposta do Plano Nacional de Saúde Mental.
Em meados de dezembro de 2017, as manchetes anunciam a novidade sobre os retrocessos do atual governo brasileiro: “Governo Temer desmonta, com uma canetada, programa de saúde mental modelo para o mundo”[1]. Uma canetada bastou para dar vários passos para trás em décadas de trajetória de luta antimanicomial. Isso ocorreu na reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) – que tem o ministro da saúde em sua composição –, onde foi aprovada uma resolução alterando a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) ao estabelecer novas diretrizes para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que desconfiguram a política construída a partir dos princípios e diretrizes da Reforma Antimanicomial e do Sistema Único de Saúde (SUS). Tudo isso menos de uma semana depois de comemorados, num encontro simbólico e emblemático em Bauru (SP), 30 anos de uma sociedade sem manicômios[2].
Tal resolução foi aprovada através da publicação de uma portaria que viola determinações legais sobre o cuidado e a atenção a pessoas em sofrimento psíquico, indo de encontro a lei Paulo Delgado (10.216/2001) acerca da desinstitucionalização psiquiátrica[3]. Além do teor da portaria, várias entidades diretamente relacionadas à atenção e ao cuidado em saúde mental, bem como à gestão, se posicionaram contra a maneira antidemocrática com a qual foram tomadas essas medidas: a CIT se recusou a escutar os argumentos dos manifestantes que se organizaram em frente ao prédio onde ocorreu a reunião e também negou a palavra ao presidente do Conselho Nacional de Saúde, que apesar de não ter direito a voto, tinha direito a voz. A quem serve tal mudança?
Para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), “o Ministério da Saúde não está preocupado com a política de saúde mental e prefere o recorte mercantilista em detrimento da política de saúde coletiva ou de saúde pública”[4], já que a alteração traz de volta ao cenário medidas que foram abandonadas pela sua ineficácia e violação aos direitos humanos em detrimento da rede de atenção montada e articulada durante décadas. A modificação não tem apenas efeitos legais. Com essa portaria, os hospitais psiquiátricos voltam a ser financiados pelo governo, assim como as comunidades terapêuticas, cujo aporte de financiamento chega a ser oito vezes maior do que o necessário para implementação dos demais dispositivos da rede[5].
Além dos aspectos legais e financeiros, existe, acima de tudo, o aspecto subjetivo. Onde ficam os usuários desses serviços com todas essas mudanças? Internados, hiper medicalizados e abstêmios? Isolados num sistema asilar que visa não a possibilidade de um espaço de escuta para emergência do sujeito, mas subjugados a uma perspectiva de alienação e marginalização.
Bombardeada por retrocessos em diferentes esferas da vida social e política do país, como escrever sobre caminhos da clínica psicanalítica em redes e espaços públicos quando o que é público vem sendo desconsiderado e revogado? Como pensar em caminhos futuros com tanta nebulosidade no presente?
Há cem anos, Freud[6] falava sobre um futuro voltado para o amplo acesso da população à psicanálise num presente que envolvia o fim da Primeira Grande Guerra[7]. Ali, falando não só para seus pares, mas também para representantes dos governos envolvidos naquele conflito bélico, ele defendia que era necessário a admissão da incompletude do conhecimento psicanalítico para revisitar as práticas adotadas pelos psicanalistas e assim propor inovações técnicas e teóricas para atender a um número maior de pessoas e a outras formas de sofrimento psíquico. Também apontava para a importância de ofertar assistência anímica à população, destacando a responsabilidade do Estado nisso. Hoje, o Estado parece não apenas tentar se eximir de sua responsabilidade, mas também vai de encontro ao caminho percorrido até então. A esfera pública é cada vez mais ameaçada por questões de interesses particulares.
Se na época o texto de Freud fora considerado um ato político contra o dogmatismo e contra um saber hermético, atualmente falar dos caminhos da clínica é também um ato político. É uma ação pela manutenção das possibilidades de atenção e cuidado à saúde mental através de serviços públicos a partir de dispositivos que sustentem pacientes e usuários enquanto sujeitos garantidos de seus espaços de fala.
A concepção de sujeito adotada pela psicanálise é resultado do giro na noção de cuidado proposto por Freud à época da criação dessa teoria. Tais modificações acompanham a subversão realizada à perspectiva de clínica até então vigente, inaugurando uma clínica da escuta marcada pela existência de uma outra cena, o inconsciente. Mais tarde, Lacan adiciona a essa concepção a noção de sujeito de desejo estruturado como linguagem, que estabelece laço social através do discurso[8]. O inconsciente é, então, tomado a partir de um estatuto ético, sendo a ética aquilo que dirige os atos do sujeito. Para Lacan, a ética da psicanálise é a do desejo[9].
É tomando a ética do desejo e o sujeito do inconsciente como bases fundamentais da psicanálise que, na minha pesquisa do mestrado, procuro tecer redes que articulam as dimensões da psicanálise e da saúde mental pública a partir da dimensão do cuidado. Ao utilizar as noções de rede, aposto na pluralidade semântica dessa palavra para trabalhar com conceitos e imagens – principalmente a imagem de uma malha com aberturas, feita por entrelaçamentos ligados através de nós em pontos de cruzamentos. É a partir da potência dessa imagem e desse conceito que teço uma rede de articulações que envolvem o “entre”, a relação da psicanálise com a rede de atenção psicossocial.
Entre as elaborações para pensar esses caminhos de uma clínica psicanalítica e o envolvimento por notícias e notas sobre os retrocessos das políticas de saúde mental, percebi-me mobilizada em meu desejo. Lembrei-me de Thomas Morus que finaliza o livro A utopia[10] com a frase: “Desejo, mais do que espero”[11]. Desejo que não sabe de seu objeto, que ainda não encontrou sua palavra. O desejo não apenas como verbo, mas como substantivo, quase também como imperativo. O desencontro entre o desejo e seu ideal como aquilo que move o sujeito. Desejo, mais do que espero. Esperar: aguardar, contar com algo, ter esperança.
E como está difícil ter esperança em meio aos desequilíbrios provocados por todo desmonte e sucateamento do atual governo federal interino. Mas desejo produz esperança. Esperar e não temer. É a espera que produz, que movimenta. A potência da espera está justamente no instante que antecede o movimento: aquilo que ainda vai ser.
Se refletir sobre as condições que cuidamos dos usuários dos serviços públicos de saúde e sobre a ética desse cuidado mostra-se imprescindível face ao desfacelamento das políticas de atenção do atual governo federal, criar estratégias de manutenção e atualização dessas políticas e práticas mostra-se inadiável. Talvez sejam tais estratégias que funcionarão como agulhas para desativar essas bombas.
*Trabalho apresentado originalmente no seminário Agulhas para desativar bombas: utopias artísticas e políticas da imagem, realizado em dezembro de 2017 pelo Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte e Política/PPG Psicanálise Clínica e Cultura/UFRGS.
**Karla Julliana da Silva Sousa. Psicóloga/UFAL. Mestranda no PPG Psicanálise: Clínica e Cultura/UFRGS
Referências Bibliográficas
Conselho Federal de Psicologia (2017, dezembro). Carta de Bauru. Retirado de
http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/12/CARTA-DE-BAURU-30-ANOS.pdf
Conselho Federal de Psicologia (2017, 14 de dezembro). CFP repudia aprovação de mudanças
na política de saúde mental. Retirado de http://site.cfp.org.br/cfp-repudia-mudancas-saude-
mental/
Conselho Federal de Psicologia (2017, dezembro). Posicionamento do Sistema Conselhos
contrário ao Plano Nacional de Saúde Mental. Retirado de http://site.cfp.org.br/wp-
content/uploads/2017/12/Posicionamento-do-Sistema-Conselhos-contr%C3%A1rio-ao-
Plano-Nacional-de-Sa%C3%BAde-Mental.pdf
Freud, S. (2017). Caminhos da terapia psicanalítica (1919 [1918]). In Fundamentos da
clínica psicanalítica, Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Editora
Autêntica.
Lacan, J. (1992). O Seminário. Livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Lacan, J. (1988). O Seminário. Livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Morus, T. (2000). A utopia, L&PM, Porto Alegre.
[1]https://www.revistaforum.com.br/2017/12/14/governo-temer-desmonta-com-uma-canetada-programa-de-saude-mental-modelo-para-o-mundo/
[2] http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/12/CARTA-DE-BAURU-30-ANOS.pdf
[3] http://site.cfp.org.br/cfp-repudia-mudancas-saude-mental/
[4] Citação retirada da notícia intitulada “CFP repudia aprovação de mudanças na política de saúde mental” (http://site.cfp.org.br/cfp-repudia-mudancas-saude-mental/)
[5]http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/12/Posicionamento-do-Sistema-Conselhos-contr%C3%A1rio-ao-Plano-Nacional-de-Sa%C3%BAde-Mental.pdf
[6] Freud, S. (2017). Caminhos da terapia psicanalítica (1919 [1918]). In Fundamentos da clínica psicanalítica, Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Editora Autêntica.
[7] Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
[8] Conceito formalizado por Lacan no livro 17 de seu Seminário, intitulado “O avesso da psicanálise” (1969-1970).
[9] Lacan, J. (1988). O Seminário. Livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
[10] Morus, T. (2000). A utopia, L&PM, Porto Alegre.
[11] Em algumas traduções “Aspiro, mais do que espero”. Escolhi a tradução sobre o desejo pela potência do termo no contexto em questão.