Publicado originalmente em Revista Lacuna
Por André Ricardo Nader
Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições.
Gilles Deleuze, Conversações
Parte 1 | Franco Basaglia e o campo de concentração brasileiro
O ano era 1979, e o Brasil, após mais de uma década de ditadura, encontrava-se em um processo de transição no qual a abertura política ganhava cada vez mais força. A lei da anistia, assinada no mês de agosto, permitiu a volta de banidos e exilados pelo regime militar. Pouco antes, em junho, desembarcava em São Paulo, visitando o país pela terceira vez, o renomado psiquiatra italiano Franco Basaglia. Principal animador do movimento de Psiquiatria Democrática da Itália e feroz crítico do opressivo poder que a psiquiatria exercia — e ainda exerce — sobre a população, Basaglia vinha ao Brasil para um ciclo de conferências a serem realizadas durante os meses de junho e julho em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Nelas, ainda que os locais, públicos e temas propostos fossem diferentes, a cena era basicamente a mesma. Basaglia fazia uma breve fala, traduzida simultaneamente para sua plateia, sobre o controle que a psiquiatria exercia sobre a população, em especial às classes miseráveis; e expunha o uso perverso do discurso científico dessa disciplina que, utilizando-se da instituição manicômio, fazia a gestão das massas de indesejáveis do ponto de vista econômico (na figura daqueles que não produzem), social (na figura daqueles que não seguem a ordem moral) e político (na figura daqueles que não obedecem ao regime vigente). Transmitia também as experiências práticas que acumulara na Itália nas décadas de sessenta e setenta: relatava as mudanças de papel conquistadas juntos aos trabalhadores do manicômio de Goriza, permitindo uma maior horizontalidade nas relações entre profissionais e pacientes; a abertura do manicômio em Trieste, que em oito anos diminui sua população de mil e cem internos para menos de cem; e a promulgação da Lei 180 na Itália, que impedia a construção de novos manicômios, incentivava a desativação dos existentes e extinguia a atribuição de periculosidade à doença mental. Após sua breve fala, num clima que favorecia o debate, iniciava-se uma discussão com os participantes. Sua mensagem era clara: além de denunciar a situação da psiquiatria, queria incentivar que seus ouvintes abandonassem a discussão e fossem à prática iniciar mudanças — “contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática”, dizia ele. Dia a dia, cidade a cidade, o ritual era basicamente o mesmo. No entanto, algo mudou quando chegou a Minas Gerais. Após sua visita ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, conhecido como Colônia ou Cidade dos Loucos, não pôde proferir sua conferência. O horror era visível e, segundo relatos, Basaglia pareceu ter ficado profundamente deprimido. Declarou que o que vira era “pior que um campo de concentração”[1].
Parte 2 | La Borde, entre a liberdade e a prisão
Situada a aproximadamente duzentos quilômetros de Paris, no Vale do Loire francês, La Borde é uma clínica psiquiátrica sui generis. Alocada em um castelo do século XVIII, em meio a uma paisagem bucólica, tem em média cem pensionistas — modo como são chamados os internos da clínica —, além de algumas dezenas de pacientes que frequentam o local como hospital-dia. Nela trabalham quase uma centena de profissionais, incluindo estagiários vindos de diferentes locais da França e do mundo. Entre eles alguns brasileiros; e, entre os brasileiros, Izabel Passos[2]. Nossa guia na incursão a La Borde relata que, chegando à clínica, teve uma forte impressão de liberdade, favorecida pela ausência de diferenciação entre as pessoas: era difícil discernir quem eram os trabalhadores e quem eram os loucos. Todos podiam expressar-se livremente. Em La Borde, as esquisitices que cada um de nós passa o dia a dia tentando esconder, principalmente quando estamos em público, apareciam sem qualquer constrangimento. Izabel conta que tal clima de laissez-faire era bastante sedutor, especialmente para parte dos estagiários que passavam alguns meses na clínica, assim como para alguns dos profissionais que lá trabalhavam. Todos podiam experimentar a possibilidade de viver a vida de um modo diferente daquele de onde vieram, e essa era de fato a intenção. Jean Oury, fundador da clínica, defendia a ideia de que aquele local rompesse com o mundo normopata e suas regras de conduta aprisionantes. Para tanto, La Borde estruturou-se de forma a incluir todos seus integrantes nas decisões e nas tarefas cotidianas, contando para isso com uma série de dispositivos institucionais[3] criados ao longo dos mais de sessenta anos de sua história. Izabel, como estagiária em La Borde, morou durante um tempo na clínica antes de regressar ao Brasil. No dia de sua partida, na estação de trem, teve uma última conversa com uma pensionista que só conhecia de vista. Ouviu o relato da pensionista sobre as dificuldades que viveu em casa, junto de sua família, e sobre sua preferência em morar na clínica. Falaram do clima e, ao final da conversa, Izabel respondeu à pergunta da pensionista sobre o que havia achado de La Borde. Ao dizer o quanto julgou interessante o que tinha vivido, foi interrompida por uma interlocutora visivelmente ofendida: “É interessante para vocês, não para nós!”. “Vocês, os ‘sãos’, os que vêm e vão ao bel-prazer; nós, os ‘loucos’, que precisamos ficar”[4] — refletiu Izabel, frente à contradição que La Borde suscita por, apesar de toda aparente liberdade, ser uma instituição que aparta a loucura da sociedade.
Parte 3 | De volta ao Brasil: os Serviços Residenciais Terapêuticos e a luta antimanicomial
De volta ao Brasil, estamos na cidade de São Paulo, nas duas primeiras décadas dos anos dois mil. Após a visita de Basaglia muito se conquistou: o Colônia de Barbacena, após uma série de denúncias, foi fechado e transformado em um museu; uma lei federal foi assinada[5], redirecionando o modelo assistencial em saúde mental e garantindo o direito das pessoas portadoras de transtornos mentais; e uma série de dispositivos substitutivos foi criada, para colocar em prática aquilo que passou a ser previsto em lei[6]. Com a progressiva diminuição de leitos em hospitais psiquiátricos, alternativas precisaram ser criadas para garantir o direito à moradia daqueles que, por anos, foram excluídos da sociedade ao permanecerem presos nos manicômios. Assim foram criados os Serviços Residenciais Terapêuticos: imóveis residenciais de três ou quatro quartos, localizados em diferentes bairros do município, nos quais foram alocados oito moradores de hospitais psiquiátricos. Algumas casas são exclusivamente masculinas ou femininas, e outras são mistas. Nelas trabalham equipes composta por um coordenador, que possui formação superior, e sete ou oito acompanhantes comunitários, que possuem formação fundamental, e revezam-se vinte quatro horas por dia na casa. Como na experiência francesa de La Borde, a proposta é de que a gestão seja compartilhada. Assembleias são realizadas entre moradores e trabalhadores, no esforço de que as decisões sejam tomadas conjuntamente. As tarefas são divididas e quase todos auxiliam no cuidado da casa — da compra do pão para o café da manhã até a lavagem da louça após o chá com bolachas antes de dormir. Do horror dos campos de concentração a um imóvel localizado numa região de classe média, muito se caminhou desde a partida de Basaglia.
Os avanços conquistados são inegáveis. Não há dúvida de que a mudança de endereço causa impacto em diversos âmbitos da vida de uma pessoa, justamente por ser, além de uma mudança de localidade física, um ato que traz consigo uma série de outros rearranjos simbólicos. Não é incomum, inclusive, que casos tidos pela psiquiatria organicista como crônicos e refratários a qualquer tipo de tratamento apresentem uma significativa melhora após a troca de CEP. Há pessoas que chegaram às residências sem falar, evitando contato visual, rastejando pelos cantos da casa e dormindo debaixo da cama. Sinais que um psiquiatra qualquer poderia ler como indicativos da doença-mental-geneticamente-herdada também podem ser lidos como indicativos das formas de vida que um manicômio é capaz de produzir. O que se viu foi que muitas dessas pessoas voltaram a se comunicar, deixando de evitar o contato com o outro; passaram a ocupar a casa como um morador da mesma, e não como um prisioneiro que precisa esconder-se de tudo e de todos; e recobraram a postura ereta. Em alguns casos, tais avanços estenderam-se para além dos muros das casas, chegando a fronteiras mais distantes: nos armazéns e padarias do bairro, nas conversas com a vizinhança, no reencontro com familiares, nos passeios pela cidade e em viagens ao litoral ou interior.
Sair do manicômio em direção à cidade é ter a possibilidade de sair de diversos lugares que estão diretamente ligados ao processo de institucionalização produzido pela lógica psiquiátrica brasileira no século XX. O lugar de doente mental é com certeza o principal, mas junto dele vêm também diversos outros, como o de miserável, incapaz, improdutivo, perigoso, abandonado e esquecido. Os manicômios foram o dispositivo engendrado para dar conta dessa massa populacional que não convinha à cidade e a psiquiatria erigiu sua racionalidade como uma forma de cientificamente tornar-se guardiã de uma verdade sobre essa população; e, assim, portar um direito de tratá-la em nome de um suposto bem estar comum: as cidades ficam protegidas dos loucos, e estes, protegidos da cidade. Fechar os manicômios e abrir casas na cidade foi uma forma de abalar uma estabilidade que tornava a loucura invisível para a população em geral e permitia que, por anos, fossem invisíveis também as atrocidades observadas por Basaglia quando visitou o Brasil no fim da década de setenta.
Parte 4 | Entre o pessimismo da razão e o ideal de igualdade
Com todos esses avanços segue, no entanto, algo que Izabel vislumbrou ao deixar sua estadia em La Borde. Uma espécie de linha divisória mantém-se demarcando, com alguma clareza, a fronteira que exclui os loucos da sociedade. Seria possível transpor tal barreira? Apagar essa linha? Muitos dirão que o problema observado por Izabel — ela, inclusive — está no modelo de reforma psiquiátrica adotado na França. A aposta de tal programa é a de que o que faz um manicômio não são os muros, mas as pessoas. Sendo assim, na reforma psiquiátrica francesa os muros são mantidos; e os hospitais seguem existindo, mas passam a investir na produção de novas relações dentro do mesmo. Para muitos, contrários a esse modelo, enfrentar dessa forma o problema do manicômio não passa de uma espécie de modernização manicomial que deixa tudo com um aspecto “limpinho”, mas não altera as estruturas de poder que, permanecendo intactas, seguem desenhando linhas que dividem nós e eles. Por isso, a aposta italiana de reforma é claramente anti-institucional. Para eles a instituição precisa ser demolida, e não remodelada. Basaglia, na mesma visita ao Brasil relatada acima, teria chutado as paredes da enfermaria psiquiátrica do Instituto Raul Soares[7], num gesto interpretado por seus interlocutores como a necessidade de demolir as paredes dos manicômios para construir uma nova prática. A abolição dessas instituições seria, então, o caminho para acabar com todas as fronteiras que mantêm excluída a loucura da sociedade. Uma sociedade sem manicômios[8], dessa perspectiva, seria uma sociedade onde todos teriam os mesmos direitos e chances; e, assim, seria devolvido aos ditos loucos algo que lhes fora negado: a condição de cidadãos.
Os Serviços Residenciais Terapêuticos brasileiros foram criados como forma de enfrentamento desse problema e têm como proposição central realizar a “inserção do usuário na rede de serviços, organizações e relações sociais da comunidade. Ou seja, a inserção em um SRT é o início de longo processo de reabilitação que deverá buscar a progressiva inclusão social do morador”[9]. Vimos acima a efetividade de tal proposta e não resta dúvida da necessidade da ampliação da oferta de vagas para que as pessoas que permanecem vivendo em hospitais psiquiátricos tenham a chance de tentar reconstruir suas vidas fora dele.[10] No entanto, segue a necessidade de refletirmos sobre algo que fica velado quando o discurso da inclusão torna-se um a priori maciço.
Temos lutado contra um lugar social que foi dado ao louco. Lugar que lhe nega a condição de cidadania e o exclui da cidade. Tal luta acaba por produzir, pelo avesso, um imperativo de inclusão[11] que engendra, no entanto, o perigo de fazer com que uma série de impasses fique escondida atrás de ideais como cidadania plena, direitos iguais e inclusão social. A título de exemplo, imaginemos uma residência terapêutica qualquer, na qual vivem oito pessoas com histórias de vida e dificuldades diferentes, mas ligadas pela chaga da institucionalização. Após a saída do hospital a vida com certeza é outra, mas tamanha mudança pode conter pelo menos uma semelhança com a situação anterior. Sigamos imaginando que um desses oito moradores, Jonathan[12], apresente uma condição bastante particular de grande instabilidade do afeto e humor, fazendo com que, diversas vezes por dia, de alguém afável e tranquilo, torne-se irritadiço, chegando a ficar bastante agressivo. A situação é agravada pela sensação de que tal mudança pode ocorrer a qualquer momento e sem qualquer sinal. Os outros moradores e trabalhadores são abordados corriqueiramente de forma abrupta, acusados num momento de serem os assassinos dos povos; em outro, de estarem dormindo com sua esposa ou de fazerem parte de um complô para derramar o sangue de seu pai. Tais abordagens intensificam-se no dia a dia, chegando, algumas vezes, a se transformar em agressões físicas. Janelas, espelhos e acabamentos de vidro dos móveis da casa não permanecem inteiros por muito tempo, ainda que a reposição seja constante para evitar que a moradia tenha um aspecto degradado. O “quebra-quebra” geralmente ocorre durante a noite, criando uma cena de terror que impede que os outros durmam tranquilamente.
O cotidiano da casa, tanto para quem trabalha quanto para quem mora, torna-se bastante desgastante. Os moradores que têm mais condições vão inventando maneiras de passar o maior tempo possível fora, seja indo ao CAPS, à padaria ou perambulando pelo bairro. Os outros vão tentando construir itinerários dentro da casa que garantam uma maior sensação de segurança, seja mais próximo aos trabalhadores ou reclusos em seus quartos. De todo modo, fala-se muito em fugir da residência, desejar morar em outro lugar e, algumas vezes, em voltar ao hospital. Os profissionais envolvidos nessa situação — coordenador e trabalhadores do serviço, bem como outros parceiros no cuidado ligados ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da região —, empenhados em evitar o retorno da lógica manicomial, conseguem evitar constantes internações de Jonathan, assim como dissuadir os outros moradores da ideia de que seria melhor voltar ao hospital psiquiátrico. Mesmo assim, alguns moradores tentam fugir, voltando após algum tempo por conta própria ou ao serem encontrados vagando sozinhos na rua. O próprio Jonathan, nos momentos em que está mais desorganizado, grita pedindo ajuda da polícia, dizendo que residências terapêuticas são proibidas por lei e que ele quer a sua liberdade para voltar para a Inglaterra. Apesar disso, nunca tenta fugir, e é o morador que mais se preocupa em lembrar aos outros de trancar a porta quando estes saem e a esquecem aberta.
Os trabalhadores sustentam todas essas contradições, garantindo que as internações sejam raras, e o processo de cuidado mantenha-se no território. Porém, um dado nos revela algo. Nos poucos anos de existência dessa casa nenhum coordenador ou acompanhante comunitário permanece no serviço por mais de um ano. Portanto, os únicos a permanecer ao longo dos anos são os moradores. Nós e eles. Livres para ir e vir, e presos a uma situação da qual, quem pode, foge! O dilema de Izabel volta à tona.
Tal situação ilustra que em nossas práticas o perigo está sempre à espreita, ainda que nos empenhemos em construir um caminho alternativo àquele que criticamos. O paradoxo se mostra quando, no ato de incluir, produzimos exclusão; e a seguinte questão se impõe: será que o ponto que queremos alcançar é mesmo aquele no qual não haja mais essa fronteira que divide nós e eles? Abolindo a segregação? Ou estaríamos correndo o risco de repetir o mito pineliano?
Não faltava ao famoso alienista Philippe Pinel a suposição de que, via tratamento, haveria uma possibilidade de tornar os doentes iguais a nós: não doentes. Para ele, a constituição de uma sociedade idealmente organizada dentro do hospital permitiria aos loucos superarem a desrazão em benefício da razão que também os habitaria. Pereira (2004) defende que, relendo os textos de Pinel, é possível verificar:
[…] sua crença nas capacidades mutativas de certas intervenções sobre o paciente, seu rigor com o respeito à dignidade e humanidade do outro, e suas concepções sobre o uso clínico-terapêutico da humanidade, do relacionamento caloroso e da ênfase na responsabilização do sujeito por seus atos e suas consequências em seu contato com os outros.[13]Hoje em dia lutamos contra a exclusão da loucura em instituições fechadas e apartadas da sociedade, e apostamos na ideia do restabelecimento da condição de cidadania como meio de inclusão. No entanto, segundo Birman (1992), a aposta pineliana e a atual contêm em si um mesmo princípio: a suposição de que haveria uma positividade a ser reconhecida por trás da condição da loucura que, quando restabelecida — seja pela via do tratamento moral ou da inclusão social atual —, tornaria os loucos mais um entre todos:
[…] o enfermo mental seria positivamente um cidadão que não foi reconhecido devidamente pelo Estado brasileiro, constituindo-se então a privação e sua consequente condição negativa de cidadania, que caberia ser politicamente resgatada.[14]Em outras palavras: o resgate dessa condição “devolveria” o louco ao mundo da razão. A ideia de negatividade nos leva a crer que algo falta, e assim, passamos a desejar suprimir tal falta para chegar a um ponto ideal de completude, onde nada faltaria, não haveria contradições e o louco seria mais um entre nós — um igual. Basaglia (2010) é assertivo ao criticar tal concepção idealizada, afirmando que as contradições do real precisam ser enfrentadas, “em vez de serem ignoradas ou programaticamente afastadas, na tentativa de criar um mundo ideal”[15]. O contexto dessa crítica em sua obra é o de luta contra o projeto inglês das comunidades terapêuticas[16], que se propunham a criar sociedades ideias dentro de seus muros. Ainda assim, vale recolher uma importante lição que acompanha essa luta: a afirmação de que as contradições não podem ser afastadas, sob o risco de manter o louco aprisionado à obrigatoriedade de adesão a uma ordem preestabelecida — idealizada e não contraditória. Aqui, a crítica é válida tanto para o projeto da psiquiatria clássica como para as tentativas de modernização dos hospitais ou de sua superação. Ainda que existam importantes descontinuidades, há também o que Birman (1992)[17] localiza com uma continuidade do dispositivo, que estaria sempre buscando o retorno de um ideal no qual se realizaria o sonho inaugural da razão psiquiátrica e iluminista de romper com o universo das trevas ao qual a loucura estaria presa a partir de sua libertação — das correntes, das relações de poder ou dos muros do asilo.
A atual abominação do discurso antimanicomial em relação às categorias psicopatológicas, assim como a retórica dos trabalhadores da área que investe na produção de eufemismos para a condição de seus usuários são claros exemplos da aposta em um ideal de igualdade. Tal estratégia é problemática em ao menos dois pontos, relativos à sua eficácia e aos efeitos que produz. O que se alcança, para o bem e para o mal, é algo da ordem do constrangimento, em seus diferentes sentidos: “obrigar por força, coagir”; “dificultar os movimentos”; “tolher a liberdade”; e causar “embaraço” (cf. Michaelis: Moderno Dicionário Língua Portuguesa). Não é raro ver tal estratégia em ação quando profissionais mais engajados lutam para que outros profissionais, familiares ou pacientes não utilizem categorias diagnósticas para localizar as diferenças que verificam. Impedir a utilização de tais categorias não faz muito mais do que embaraçar aqueles que tentavam nomear as diferenças percebidas. Ainda que sejam problemáticos os efeitos iatrogênicos que certas nomeações trazem consigo, dizer apenas “não” a elas mostra-se pouco eficaz, dificultando movimentos, produzindo embaraços, sem com isso alcançar o projeto de aproximar a loucura da normalidade a fim de evitar processos excludentes.
Pelo contrário, observa-se que dizer apenas “não” tem como efeito a continuidade de um tipo de exclusão, já que acaba por produzir um apagamento das diferenças no campo subjetivo. Nesse sentido, Campos (2001) analisa que “a doença foi negada, negligenciada, oculta por trás dos véus de um discurso que, às vezes, e lamentavelmente, se transformou em ideológico”[18]. Ao negar que haja diferenças, corremos o risco de, sem perceber, deixar que volte pela porta dos fundos aquilo que lutamos para erradicar: os aprisionamentos. Agregar e segregar são elementos indissociáveis que constituem os processos de diferenciação. Se em La Borde tomamos como um elogio a ausência de diferenciação entre as pessoas, aqui podemos rever a questão, propondo que os processos de diferenciação são o que constituem os sujeitos. O estancamento de tal processo perante o imperativo da inclusão, com o apagamento das diferenças sob a ilusão de igualdade, é justamente uma das figuras do que aprisiona. Entendemos por aprisionamento todo processo que reduz a complexidade da vida social e dos processos de subjetivação. A partir dessa compreensão pode-se concluir que o conteúdo de uma ideia não necessariamente altera o efeito de aprisionamento que ela pode vir a ter na prática. Tomemos duas proposições opostas como exemplo: “loucura é a falta da razão e por isso precisa ser excluída do convívio com os racionais” ou “de perto ninguém é normal, logo, somos iguais e merecemos os mesmo direitos.” Tudo contra a primeira afirmativa, não resta dúvida. Já a segunda, ainda que concordemos com seu conteúdo, pode levar a práticas que tenham um efeito aprisionante. Do exemplo citado acima da residência terapêutica temos a certeza — junto com uma série de dúvidas quanto à como manejar uma situação tão complexa — de que libertar dos muros e ofertar cidadania são condições necessárias, porém não suficientes. Logo, pautar-se exclusivamente por uma direção do cuidado — libertar dos manicômios e ofertar cidadania —, sem estar atento à multiplicidade dos efeitos do encontro dessa direção com cada singularidade, pode tornar o cuidado um fazer aprisionante.
É importante frisar que o tema da cidadania pode servir justamente como o operador do reducionismo apontado acima, como uma máscara que se coloca no louco e torna invisível sua complexidade. Ser ou não cidadão tem fundamental importância, desde que não reduza a problemática a apenas essas duas variáveis. A própria ideia de cidadania, vale ressaltar, é tratada de maneira simplista, quando seria imprescindível nos aprofundarmos sobre o que é ser um cidadão hoje em dia e se é isso que queremos oferecer como locus social — tanto para o louco quanto para qualquer um de nós.
O enfrentamento da questão da loucura exige que não produzamos uma resposta definitiva, mas que percebamos que há algo da ordem do impossível. Ainda que se garantam os direitos — ação mais do que necessária, como visto acima —, algo permanecerá fora da razão, inassimilável. Nessa perspectiva, a constatação de Izabel, de que persiste uma divisão entre nós e eles, deixa de exigir uma resposta que elimine qualquer divisão e abre a possibilidade para que outros tensionamentos sejam produzidos. O desafio que precisamos seguir enfrentando é o de escutar a loucura sem reduzi-la àquilo que nela vemos como falta em relação à razão. Fazemos isso tanto ao reconhecê-la como desprovida de um equilíbrio químico, como supõe a psiquiatria, quanto ao reconhecê-la apenas como desprovida de direitos e cidadania. Em ambos os casos, olha-se para a loucura como aquela que deve algo à não loucura; e nós, pessimistas da razão, ficamos no lugar daqueles que a priori sabemos o que está em falta — fármacos, terapias, édipo, cidadania, limites, direitos ou inclusão.
Saúde e doença, normalidade e loucura, incluído e excluído são tentativas humanas de encerrar em polaridades toda a complexidade da experiência. Se há algo que podemos localizar como aquilo que une a todos nós — e que ajuda a pensar a experiência humana, assim como a loucura —, é justamente a impossibilidade de abranger a complexidade em pares complementares: sempre resta algo inassimilável.
REFERÊNCIAS
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PASSOS, Izabel C. F. (2009) Reforma psiquiátrica: as experiências francesa e italiana. Rio de Janeiro: Fiocruz.
* André Ricardo Nader é psicólogo e acompanhante terapêutico. Atuou na rede pública de saúde por seis anos, quatro deles coordenando um Serviço Residencial Terapêutico. Mestrando do IPUSP.
[1] BASAGLIA, Franco (1979) Psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. Trad. Sonia Soianesi; Maria Celeste Marcondes. São Paulo: Brasil Debates, p. 137.
[2] Izabel Christina Friche Passos, que — em seu livro Reforma psiquiátrica: as experiências francesa e italiana (2009) — relata sua experiência como estagiária na clínica de La Borde, que aqui apresento.
[3] Para saber mais, ver MOURA, Arthur Hyppolito (2003). A psicoterapia institucional e o clube dos saberes. São Paulo: Hucitec, 2003.
[4] PASSOS, Izabel C. F. (2009) Reforma psiquiátrica: as experiências francesa e italiana. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 208.
[5] BRASIL. Ministério da Saúde (2011). Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, seção 1.
[6] Antes da promulgação dessa lei, já vinham sendo criados dispositivos substitutivos como o CAPS Itapeva, em São Paulo, e os NAPS, em Santos. A lei surge com um marco regulatório que acelera o processo de criação de mais serviços.
[7] Segundo depoimento de Antônio Benetti para o documentário sobre o III Congresso Mineiro de Psiquiatria. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=PG1DJXjk99M>.
[8] Lema criado em 1987 quando se realizou o II Congresso Nacional do MSTM, em Bauru, no qual se concretiza o Movimento de Luta Antimanicomial.
[9] BRASIL, Ministério da Saúde, Coordenação Nacional de Saúde Mental (2004) Residências terapêuticas: o que são, para que servem. Brasília: Ministério da Saúde, p. 6.
[10] Segundo o último censo realizado no estado de São Paulo, 4.439 pessoas seguem internadas, sendo que 3.325 já passaram mais de dez anos de suas vidas em um hospital psiquiátrico. CAYRES, Alina Zoqui de Freitas; et al (2015) Caminhos para a desinstituicionalização no Estado de São Paulo: censo psicossocial 2014. São Paulo: FUNDAP: Secretaria de Saúde.
[11] DUNKER, Christian Ingo Lenz; KYRILLOS NETO, Fuad (2004) Sobre a retórica da exclusão: a incidência do discurso ideológico em serviços substitutivos de cuidados a psicóticos. Psicologia, ciência e profissão. Brasília, vol. 24, n. 1, pp. 116-125, 2004.
[12] Os nomes e situações são ficções inspiradas nas práticas cotidianas dos serviços, vividas ou ouvidas pelo autor.
[13] PEREIRA, Mário Eduardo Costa (2004) Pinel — a mania, o tratamento moral e os inícios da psiquiatria contemporânea. Revista latinoamericana de psicopatologia fundamental, vol. VII, n. 3, 2004, p. 116.
[14] BIRMAN, Joel (1992) “A cidadania tresloucada”. In: BEZERRA Jr., Benilton; AMARANTE, Paulo. Psiquiatria sem hospício. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, p. 72; grifo do autor.
[15] BASAGLIA, Franco (2010) Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Org. Paulo Amarante; Trad. Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Garamond, p. 115.
[16] Que, para os italianos, contém a mesma problemática apresentada acima em relação a La Borde.
[17] Ibid., p. 83.
[18] CAMPOS, Rosana Onoko (2001) Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de Saúde Mental. Saúde em debate. Rio de Janeiro, vol. 25, n. 58, maio/ago. 2001, p. 10