Uma reflexão sobre o significante Psicanalistas pela Democracia
Gabriela Costardi[1]
Aproximadamente 1 ano e meio se passou desde que um ato de resistência ao golpe fundou este espaço, o qual é destinado à conversação entre pessoas reunidas sob o significante Psicanalistas pela Democracia. Uso esta ocasião para indagar que tipo de fundação está em jogo a partir dessa nomeação e também para reafirmar nosso compromisso em pensar e se manifestar sobre o que acontece em um Brasil que padece as consequências da ruptura sofrida.
A denominação Psicanalistas pela Democracia me intrigou de pronto. O termo psicanalistas implica que não falamos em nome da psicanálise, senão em nome próprio, enquanto cidadãos. No entanto, reconhecemos que nossa posição de cidadãos está atravessada por nossa posição de psicanalistas, ou seja, pelo fato de que escutamos aquilo que está censurado no laço social. A princípio poderia se considerar a psicanálise como uma experiência privativa do indivíduo, mas um olhar mais avisado faz ver que a experiência psicanalítica subverte as noções de público e privado. Pois o que está censurado ao indivíduo em sua intimidade não pode ser dissociado daquilo que está censurado no laço social. E, na maioria das vezes, não se trata de uma ação afirmativa e localizável de censura, mas do fato de que aquilo que não encontra correspondência nas normas e nos ideais que regem os laços sociais, não é visível, nem audível, a não ser como sintoma – é claro.
Lacan[2] disse que um dos laços sociais hegemônicos de nossos tempos tem por condição reprimir o reconhecimento de que o saber que produzimos serve a um amo, em outras palavras, que as narrativas que forjamos e viralizamos não são meramente modos de acessarmos os fatos como eles são, senão escondem relações de poder. O psicanalista, por sua vez, sustenta uma posição discursiva apoiada em um modo muito específico de utilizar-se do saber: prestando mais atenção naquilo que se manifesta com seus tropeços e ambiguidades do que naquilo que ele denota. Daí que afirmamos que nossa posição enquanto cidadãos está centralmente perpassada por esse tipo de relação com o saber.
Sobre o termo democracia, o sentido antigo que se baseia na noção de maioria me traz certa desconfiança. A maioria é uma categoria que engolfa dissidências e, muitas vezes, perversamente constitui uma ditadura. Como, então, apostarmos na noção de democracia se temos lutado contra a ditadura da maioria e pela coexistência da pluralidade? Daí que um segundo sentido, mais aparentado a uma concepção republicana da vida política, se apresenta para posicionar nosso debate, a saber, no regime democrático, a coisa pública não é monopólio de nenhum setor da sociedade. Quer dizer, a democracia depende do fato de que diversos grupos/instituições independentes coexistam, tendo responsabilidade pela coisa pública, poder de deliberar sobre a distribuição dos bens sociais e funcionando como limitação para os demais setores. É uma lógica plural que não vai bem com ideologias unívocas, como, por exemplo, aquela que apregoa que a vida deve ser regulada pelas leis do mercado, nem com ideologias binárias que se fundam no facista nós versus eles.
Nesse sentido, o golpe que teve lugar no Brasil no ano passado (e que se renova no dia a dia da usurpação dos direitos da classe trabalhadora) foi antidemocrático não apenas porque os que tomaram o poder não governam com um programa que recebeu maioria dos votos nas urnas, mas também no sentido de que deu-se em nome do monopólio do Estado pelos interesses da classe dominante. Para tal, inúmeros grupos se aliaram. Além do parlamento, do sistema jurídico e da mídia, foram agentes desse processo a classe média e setores da classe trabalhadora que se identificam com as aspirações da classe média — as quais defino aqui, rapidamente, como a condescendência com os privilégios da classe dominante desde que seja possível partilhar palidamente com ela certos símbolos de poder ligados ao estilo de vida, à possibilidade de consumo, à aquisição de títulos acadêmicos que conferem reconhecimento e distinção social, tudo isso às custas da exclusão da grande maioria das pessoas de condições dignas de sobrevivência.
A mobilização desses grupos baseou-se na alimentação do poderoso afeto da indignação através do discurso do combate à corrupção. As pessoas tomaram as ruas movidas pela divisão entre dignos e indignos e professavam a convicção de que tinham o dever de corrigir a imoralidade que tomava conta da coisa pública. Ninguém duvidou que a indignidade da corrupção era uma realidade que enlameava nossas instituições; no entanto, o andamento dos acontecimentos mostra que a narrativa da indignação contra a corrupção é manca, pois as panelas permanecem silenciosas diante da corrupção escancarada do atual governo. Aqui a lição da psicanálise é elucidativa: os afetos não são o lugar da verdade imediata do sujeito, senão ganham sua tonalidade ao se ligarem a representações que respondem aos disfarces comandados pela repressão. Por ser seletiva, a indignação perdeu sua prerrogativa de idoneidade e a genuinidade de seu alvo tornou-se questionável. Um governo também corrompido está sendo tolerado por apresentar uma agenda que penaliza, mais uma vez, os menos favorecidos. E, assim, reafirma-se que direitos básicos são privilégio de uma minoria.
[1] Psicanalista com prática clínica em Los Angeles. Membro dos Fóruns do Campo Lacaniano de Los Angeles e Colorado. Doutora em Psicologia pelo IP/USP.
[2] LACAN, J. O seminário, livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1969-70/1992.