Publicado originalmente em O Povo
“Eu venho cedo demais, não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram!”
Esse trecho do célebre aforismo 125 n‘A Gaia Ciência’, de Nietzsche, ocupa meus pensamentos nesses tempos de ferocidade política. Aí o filósofo denunciava, por meio de um “louco” ridicularizado pelos sábios, o assassinato de Deus, por todos nós cometido. Longe do júbilo, ele adivinhava o tamanho do problema: “o mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue?”. É curioso que seja o louco, e não os sábios ateus, o que sofre a angústia prometeica. Na verdade, trata-se do descolamento do eixo de um mundo que, antes sustentado pelo dogma inquestionável, agora se precipita “para trás, para os lados, para frente, em todas as direções”. Desenhando: anunciava-se a morte dos objetivismos universalistas em favor dos relativismos, não sem receio de estarmos aquém desse feito. Certeiro.
Em sentido oposto, mas na mesma direção, Chesterton em “Ortodoxia” reconheceu a necessidade de um dogma fixo como condição verdadeira da liberdade. Crítico dos liberais considerava que “…o livre pensamento é a melhor salvaguarda contra a liberdade. (…) Basta ensinar o escravo a se preocupar em saber se quer realmente ser livre, e ele não será capaz de se libertar”. Bingo.
Quem de nós reconheceu desde o início o crime que estava sendo cometido contra a democracia e o estado social brasileiro, permaneceu nas ruas nos últimos três anos, gritou, esperneou e está sendo seguidamente derrotado de modo inédito (nem os militares desmontaram a CLT) agora se assemelha ao louco nietzschiano. Dia desses, uma colega professora, doutora da área de humanas, pesquisadora CNPq chegou a mim com olhar preocupado e disse: “Tenho notado que você não anda bem, esse ‘negócio’ da política mexe muito com você”. Perplexa, respondi: “E não mexe com você, não vê o que acontece ao redor e como isso nos afeta a todos?” E ela, me olhando com ainda mais compaixão: “Sabe, acho que as coisas estão tão péssimas que elas mesmas vão se ajeitar, não podem continuar assim, cuida mais de você, tá abatida”, e se foi na anestesia acumpliciada de seu pensamento mágico. É uma boa pessoa como milhares delas, enojada com tudo, liberta da escuridão da ignorância que tem tantos afazeres importantes no seu cotidiano e não se pode dar o luxo de caminhar nas ruas, faltar ao trabalho para salvar seu trabalho e o futuro comum de sua gente humilde.
Por outro lado, é tão doloroso saber que o roteiro aterrador do golpe em curso tem a sua assinatura, a dos bem-pensantes de bom coração inativo politicamente. Essa é a verdade insuportável que o mito quer encobrir: no fundo, “sábios” ateus acreditam que o deus virá salvá-los e, ao fim, tudo dá certo.
O tempo lhes alcançará cruel, indiferente. Eu fico com a loucura das mulheres que ocuparam a mesa do Senado e de tantas outras que na luta insistem em fazer o próprio tempo.
Sandra Helena é Professora de Filosofia da Unifor e membro do Instituto Latino-Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia (ILAEDPD)